A influência dos fibratos no risco cardiovascular tem sido o foco de vários ensaios clínicos. Esta revisão sistemática da Cochrane Collaboration avaliou o efeito dos fibratos na prevenção secundária de eventos cardiovasculares e acidente vascular cerebral, incluindo 13 ensaios clínicos aleatorizados, num total de 16112 participantes com antecedentes de doença cardiovascular. A terapêutica com fibratos demonstrou um efeito protetor no outcome composto acidente vascular isquémico não fatal, enfarte agudo do miocárdio não fatal e morte de causa vascular, especialmente devido à redução do risco de enfarte agudo do miocárdio fatal e não fatal. No entanto, estes resultados baseiam‐se em grande parte em estudos que incluem o clofibrato, fármaco retirado do mercado em 2002. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas relativamente a efeitos adversos entre fibratos e placebo. Embora insuficientes para sustentar uma prescrição rotineira de fibratos neste contexto, estes dados devem ser tidos em conta aquando da decisão terapêutica em doentes dislipidémicos com antecedentes de doença cardiovascular.
The influence of fibrates on cardiovascular risk has been the focus of several clinical trials. This Cochrane Collaboration Systematic Review evaluated the efficacy of fibrates for secondary prevention of cardiovascular events and stroke, analyzing 13 randomized controlled trials, in a total of 16 112 participants with a history of cardiovascular disease. Fibrates showed a protective effect for the composite outcome of non‐fatal stroke, non‐fatal myocardial infarction (MI) and vascular death, mainly due to reduction in the risk of non‐fatal or fatal MI. Nonetheless, these results largely relied on studies including clofibrate, a drug withdrawn from the market in 2002. No statistically significant differences regarding adverse events were found between fibrates and placebo. Although insufficient to support the routine prescription of fibrates in this setting, this evidence should be taken into account when deciding on lipid‐modifying therapy in dyslipidemic patients with a history of cardiovascular disease.
Qual o efeito dos fibratos na prevenção secundária de eventos cardiovasculares e acidente vascular isquémico?
ObjetivosAvaliar o efeito dos fibratos na prevenção de eventos cardiovasculares major, incluindo enfarte agudo do miocárdio (EAM), acidente vascular cerebral (AVC) e morte cardiovascular em indivíduos com doença vascular prévia1.
MetodologiaFoi realizada uma revisão sistemática e meta‐análise que incluiu ensaios clínicos controlados e aleatorizados (RCT), onde foi comparada, em doentes catalogados como de alto risco para recorrência de doença cardiovascular (DCV) e AVC (devido a antecedentes de DCV), a incidência de eventos cardiovasculares nos indivíduos sob terapêutica com fibratos, e controlos (placebo ou ausência de tratamento).
A pesquisa bibliográfica (última pesquisa em outubro de 2014) foi efetuada em seis bases de dados eletrónicas (incluindo a Cochrane Central Register of Controlled Trials – CENTRAL, MEDLINE e EMBASE), em registos de ensaios clínicos a decorrer atualmente e em abstracts de conferências.
Os autores incluíram RCT com comparação da terapêutica com fibratos com placebo ou ausência de tratamento, independentemente da duração da terapêutica e follow‐up. O outcome primário correspondeu ao outcome composto de AVC não fatal, EAM não fatal e morte de causa vascular. Os outcomes secundários incluíram os outcomes AVC, EAM, morte de causa vascular e morte de qualquer causa, separadamente, e reações adversas. A medida de efeito calculada foi o risco relativo (RR) com intervalo de confiança (IC) a 95%. Foi realizada análise por intenção de tratar; as meta‐análises foram efetuadas com o modelo de efeitos fixos ou aleatórios consoante a heterogeneidade estimada (considerado cut‐off para o I2 de 50%), e foi executada análise de subgrupos relativamente a idade, género e tipo de fibrato usado. Adicionalmente, foi efetuada uma análise de sensibilidade com base na classificação dos ensaios segundo o risco de vieses e uso concomitante de estatina.
ResultadosTreze ensaios cumpriram os critérios de inclusão, com um total de 16112 participantes. Seis ensaios incluíram apenas participantes do sexo masculino. Dois ensaios recrutaram doentes com história de doença cerebrovascular, um recrutou doentes com DCV (doença coronária ou AVC), nove recrutaram pacientes com doença coronária e um recrutou doentes com doença arterial periférica dos membros inferiores e angina controlada. O clofibrato foi utilizado em três ensaios, o bezafibrato em três ensaios, o fenofibrato em dois ensaios e o gemfibrozil em três ensaios. Dois ensaios utilizaram estatinas, tanto no grupo da intervenção como no grupo controlo. Apenas um dos ensaios contemplou um braço de ausência de tratamento, com os restantes a apresentarem placebo como comparador. A duração mínima de tratamento foi de 12 meses e a máxima de oito anos. O risco de viés foi classificado como de «baixo risco» em ensaios com os parâmetros adequada geração de sequência de alocação e avaliação cega de outcome classificados como de baixo risco; de «alto risco» em ensaios classificados, nos parâmetros referidos, como de alto risco ou risco incerto. Seis ensaios foram classificados como de «baixo risco» de vieses e sete como de «alto risco» de vieses.
Relativamente ao outcome primário composto (AVC não fatal, EAM não fatal e morte de causa vascular), foi encontrado um efeito protetor dos fibratos através de uma meta‐análise pelo modelo de efeitos fixos (RR 0,88, 95% IC 0,83‐0,94, I2=45%; Tabela 1). Todavia, um modelo de efeitos aleatórios excluindo os ensaios que utilizam o clofibrato (retirado do mercado em 2002, por dúvidas relativamente ao seu perfil de segurança) não demonstrou efeito protetor neste outcome composto (RR 0,90, 95% IC 0,79‐1,03; I2=50%; Tabela 1). No entanto, analisando o outcome EAM isoladamente, o modelo de efeitos fixos demonstra uma redução de risco significativa (RR 0,86, 95% IC 0,80‐0,93, I2=24%; Tabela 1) que se mantém mesmo após a exclusão dos ensaios que utilizam o clofibrato (RR 0,85, 95% IC 0,76‐0,94; I2=47%). Relativamente a reações adversas, dois ensaios reportaram o risco de miopatia e seis ensaios o risco de eventos gastrointestinais (GI); agregando os dados relativos a estas reações adversas, não existem diferenças estatisticamente significativas entre os grupos fibrato e placebo (para miopatia RR 0,86, 95% IC 0,31‐2,35, I2=0%; para eventos GI RR 1,02, 95% IC 1,00‐1,04, I2=42%).
Summary of findings para o outcome primário e outcomes secundários mais relevantes
Comparação entre fibratos e controlo na prevenção secundária de doença cardiovascular e AVC |
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População ou doentes: prevenção secundária de doença cardiovascular ou AVC Intervenção: fibratos Comparador: controlo |
Outcomes | Efeitos absolutos antecipados (95% IC) | Efeito relativo (95% IC) | N.° de participantes (estudos) | Qualidade da evidência (GRADE) | Comentários | |
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Risco com controlo | Risco com fibratos | |||||
Outcome composto de AVC não fatal, EAM não fatal e morte de causa vascular (outcome primário) | População do estudo | RR 0,88 (0,83‐0,94) | 16064 (12 RCT) | ⊕⊕⊕○ Moderadaa | I2=45% | |
233 por 1000 | 205 por 1000 (194‐219) | |||||
Outcome composto de AVC não fatal, EAM não fatal e morte de causa vascular excluindo o clofibrato | População do estudo | RR 0,90 (0,79‐1,03) | 10320 (7 RCT) | ⊕⊕○○ Baixaa | I2=50% | |
204 por 1000 | 183 por 1000 (161‐210) | |||||
EAM (não fatal ou fatal) durante o tratamento e período de follow‐up estabelecido | População do estudo | RR 0,86 (0,80‐0,93) | 13942 (10 RCT) | ⊕⊕⊕○ Moderadaa | I2=24% | |
190 por 1000 | 163 por 1000 (152‐177) | |||||
Morte de qualquer causa durante o tratamento e período de follow‐up estabelecido | População do estudo | RR 0,98 (0,91‐1,06) | 13653 (10 RCT) | ⊕⊕○○ Baixaa | I2=23% | |
185 por 1000 | 182 por 1000 (169‐196) | |||||
AVC (isquémico ou hemorrágico, não fatal ou fatal) durante o tratamento e período de follow‐up estabelecido | População do estudo | RR 1,03 (0,91‐1,16) | 11719 (6 RCT) | ⊕⊕○○ Baixaa | I2=11% | |
83 por 1000 | 86 por 1000 (76‐96) |
O risco no grupo da intervenção (e o seu IC a 95%) é baseado no risco assumido no grupo do comparador e no efeito relativo da intervenção (e o seu IC a 95%).
IC: intervalo de confiança; RR: risco relativo.
Graus de evidência do grupo de trabalho GRADE
Elevada qualidade: estamos muito confiantes de que o verdadeiro efeito se encontra próximo da estimativa do efeito.
Moderada qualidade: estamos moderadamente confiantes na estimativa do efeito: é provável que o verdadeiro efeito se encontre próximo da estimativa do efeito, mas há a possibilidade de que seja substancialmente diferente.
Baixa qualidade: a nossa confiança na estimativa do efeito é limitada: o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente da estimativa do efeito.
Muito baixa qualidade: temos muito pouca confiança na estimativa do efeito: é provável que o verdadeiro efeito seja substancialmente diferente da estimativa do efeito.
a Mais de 75% dos estudos incluídos não reportaram os detalhes da aleatorização e quatro ensaios sofreram perdas de follow‐up ou desistências de menos de 20%.
Na análise de subgrupos, não foram encontradas diferenças no efeito protetor dos fibratos para o outcome primário relativamente à idade (indivíduos com mais de 65 anos versus indivíduos mais jovens) e género. Contudo, na análise de subgrupos relativamente ao tipo de fibrato (clofibrato, bezafibrato e gemfibrozil) apenas o clofibrato manteve um benefício significativo no outcome primário (RR 0,86, 95% IC 0,74‐1,00, I2=51%).
Na análise de sensibilidade, somente um estudo foi incluído na comparação entre a adição da terapêutica com fibrato (fenofibrato) ao tratamento com sinvastatina versus sinvastatina isoladamente, não revelando diferença no outcome primário composto entre os dois braços (RR 0,9, 95% IC 0,74‐1,09).
Salienta‐se o facto de que uma análise de sensibilidade, incluindo apenas os ensaios classificados como de «baixo risco» de vieses, demonstrou um efeito preventivo significativo dos fibratos no outcome primário (RR 0,85, 95% IC 0,79‐0,91, I2=47%).
ConclusãoOs fibratos podem ter um efeito protetor no outcome composto de AVC não fatal, EAM não fatal e morte de causa vascular, em indivíduos com antecedentes de DCV; no entanto, esta proteção é principalmente devida à redução do risco de EAM fatal e não fatal. Estes resultados, contudo, são em grande parte sustentados por ensaios que incluem o clofibrato, um fármaco retirado do mercado em 2002.
ComentárioOs fibratos são uma classe de fármacos usada predominantemente nas dislipidemias devido ao seu papel estabelecido na redução dos triglicerídeos e aumento do colesterol HDL2,3. No entanto, o seu efeito no risco cardiovascular ainda gera debate, com numerosos ensaios clínicos a reportarem resultados inconsistentes. Uma revisão sistemática e meta‐análise de 2010 demonstrou uma redução no risco de eventos cardiovasculares major, especialmente pela prevenção de eventos coronários4. O papel específico dos fibratos na prevenção primária e secundária, contudo, é ainda uma questão não resolvida.
A presente revisão sistemática e meta‐análise sugere que os fibratos podem ter um papel na prevenção secundária de eventos cardiovasculares, principalmente EAM e eventos relacionados. Estes resultados, no entanto, devem ser interpretados cuidadosamente. Cinco dos 13 ensaios incluídos utilizaram o clofibrato, fármaco retirado do mercado em 2002 por questões de segurança relacionadas com um aumento da mortalidade global. De salientar que, excluindo estes ensaios da análise, o efeito protetor dos fibratos apenas se manteve no outcome secundário EAM. Adicionalmente, o número limitado de estudos enfraquece os resultados e a validade de algumas das análises realizadas, nomeadamente na comparação entre os diferentes fibratos e na avaliação da mais‐valia do acréscimo do fibrato à terapêutica com estatinas. Finalmente, ao interpretar os resultados, deve ser tomado em atenção o facto de que foi encontrada heterogeneidade moderada na maioria dos outcomes.
Apesar destas limitações, certas conclusões interessantes podem ser inferidas desta análise, nomeadamente a ausência de diferenças significativas no efeito dos fibratos entre os géneros e diferentes grupos etários, e, igualmente, a ausência de diferenças entre os grupos fibrato e placebo relativamente a reações adversas.
Implicações para a prática clínicaEste estudo sugere que os fibratos podem ter um papel na prevenção secundária de eventos cardiovasculares. No entanto, mais do que alterar as indicações para início de terapêutica com fibratos, este estudo deve constituir um dado adicional a ser considerado na altura de escolha da terapêutica antidislipidémica em doentes dislipidémicos com antecedentes de DCV.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.