A hipertensão arterial é um importante fator de risco cardiovascular e apesar dos inúmeros avanços na terapêutica farmacológica, existe ainda uma percentagem importante de doentes que são resistentes. Os autores descrevem dois casos clínicos de ablação da atividade simpática renal por radiofrequência, que ilustram a exequibilidade de uma nova técnica para o tratamento da hipertensão arterial resistente. O procedimento consiste na aplicação de energia de radiofrequência nas artérias renais, para ablação da atividade simpática renal aferente e eferente, implicada na fisiopatologia da hipertensão arterial.
Hypertension is an important cardiovascular risk factor and although there have been many improvements in pharmacological treatment, a significant percentage of patients are still considered resistant. The authors describe two cases of radiofrequency renal sympathetic denervation that illustrate the feasibility of this new technique for the treatment of resistant hypertension. The procedure consists of the application of radiofrequency energy inside the renal arteries to ablate afferent and efferent sympathetic renal activity, which has been implicated in the pathophysiology of hypertension.
A hipertensão arterial (HTA) é um fator de risco cardiovascular determinante, estando implicado no enfarte agudo do miocárdio e no acidente vascular cerebral, sendo estas importantes causas de mortalidade e morbilidade nos países desenvolvidos1. A par da sua elevada prevalência, trata-se de uma doença com uma taxa de controlo francamente abaixo do ideal, como foi documentado no estudo PAP (Prevalência, Conhecimento, Tratamento e Controlo da Hipertensão em Portugal). Este estudo, realizado em 2003, avaliou a prevalência, conhecimento, tratamento e controlo da hipertensão arterial em Portugal2. A prevalência global da HTA foi de 42,1%, só 46,1% destes doentes sabiam que eram hipertensos, 39,0% tomavam medicação anti-hipertensora e apenas 11,2% estavam controlados.
Recentemente foi desenvolvida uma técnica para tratamento da hipertensão arterial resistente com modulação da atividade dos nervos simpáticos renais, por ablação com radiofrequência3–5. O procedimento tem como objetivo a redução da atividade nervosa aferente e eferente do plexo simpático renal (Figura 1), cujo papel e importância na fisiopatologia da HTA é conhecido desde há várias décadas6,7. A eficácia e segurança desta técnica foi documentada inicialmente no estudo Symplicity HTN-14, e recentemente foi publicado o seu seguimento a 24 meses, com descida de 32mmHg na tensão arterial (TA) sistólica e de 14mmHg na TA diastólica8. No ensaio aleatorizado Symplicity HTN-2 foi documentada uma redução de 32mmHg na TA sistólica e de 12mmHg na TA diastólica aos 6 meses, sem modificação significativa no grupo de controlo, numa população de doentes com TA basal média de 178/98mmHg, já medicados com uma média de 5 anti-hipertensores5.
No presente artigo relatamos 2 casos clínicos de tratamento de HTA resistente por ablação da atividade simpática renal com radiofrequência. Os procedimentos foram autorizados pela comissão de ética do centro hospitalar e realizados após consentimento informado dos doentes.
Caso clínico 1Doente do sexo masculino, 50 anos de idade, raça negra, fumador, sem eventos cardiovasculares prévios, seguido na consulta de HTA, tendo sido previamente excluídas causas secundárias. Estava medicado com clonidina (0,45mg/dia), irbesartan (300mg/dia), amlodipina (10mg/dia), indapamida (1,5mg/dia) e bisoprolol (5mg/dia). A função renal era normal, com um débito do filtrado glomerular estimado (eDFG) de 115ml/min/1,73m2.
Na última consulta prévia ao procedimento a tensão arterial era de 173/118mmHg e à data de internamento era de 189/143mmHg, apesar de estar sob a terapêutica habitual. Numa prova de esforço realizada anteriormente sob medicação, a pressão arterial subiu de 160/100mmHg em repouso para 200/120mmHg no pico de esforço. O ecocardiograma documentou hipertrofia ventricular esquerda concêntrica, com normal função sistólica global e sem alterações valvulares significativas. Na monitorização ambulatória da tensão arterial (MAPA), tinha hipertensão sisto-diastólica grave com padrão não dipper (Diurna - 145/104/118/41mmHg; Noturna -136/96/111/40mmHg; valores médios de TA sistólica/TA diastólica/TA média/pressão de pulso respetivamente).
Foi realizado previamente um angioTC abdominal que documentou uma anatomia das artérias renais favorável ao procedimento.
O procedimento foi realizado com apoio anestésico (propofol e ramifentanilo) para controlo da dor, e sob anticoagulação com heparina para um activated clotting time (ACT) alvo > 250 segundos. Após obtenção de acesso vascular (artéria femoral direita), foi feita aortografia abdominal e angiografia seletiva das artérias renais. A cateterização foi seguida pela introdução do cateter Symplicity® (Medtronic, USA) nas artérias renais, conectado a um gerador de radiofrequência, cuja programação e controlo são automáticos e não dependem da intervenção do operador (Figura 2). Foram realizadas 6 aplicações de radiofrequência (8 watts) com 120 segundos de duração, na artéria renal direita e esquerda (Figuras 3 e 4). O tempo de fluoroscopia foi de 13min, a quantidade de contraste foi de 70ml e o tempo total do procedimento foi de 53min. Não ocorreu qualquer complicação relacionada com a intervenção. Na angiografia renal realizada no final não se observaram sinais de disseção, o fluxo era normal e apenas se documentaram irregularidades do contorno luminal, aspeto habitual nestes procedimentos, atribuído ao edema nos pontos de aplicação de radiofrequência (Figura 5).
No final do procedimento foi feito o encerramento do local de acesso com dispositivo Angioseal®. Não houve complicações após o procedimento e o doente teve alta no dia seguinte, mantendo vigilância na consulta de hipertensão arterial, tendo sido interrompida a medicação com beta-bloqueante. A tensão arterial na consulta 1 mês após o procedimento era de 150/86mmHg, correspondendo a uma redução de 23mmHg na sistólica e 32mmHg na diastólica, por comparação com os valores prévios à intervenção e com menos um grupo terapêutico. A função renal não sofreu alterações significativas em relação aos valores prévios ao procedimento: eDFG de 123ml/min/1,73m2.
Está planeada a realização de MAPA aos 3 e 6 meses após o procedimento e angiografia renal por tomografia computorizada (AngioTC renal) aos 6 meses.
Caso clínico 2Doente do sexo feminino, 59 anos de idade, raça caucasiana, obesa (IMC 32) e com diabetes tipo 2, seguida em consulta de HTA, tendo sido previamente excluídas causas secundárias. Estava medicada com aliscireno (300mg/dia), lercanidipina (10mg/dia), enalapril (10mg/dia), furosemido (40mg/dia), espironolactona (50mg/dia) e carvedilol (50mg/dia). Trata-se de uma doente com doença aterosclerótica conhecida, com envolvimento coronário (angioplastia da descendente anterior por doença coronária estável) e vascular cerebral (antecedentes de AVC isquémico). A função renal era normal para a idade (eDFG de 85ml/min/1,73m2).
Na última consulta prévia ao procedimento a tensão arterial era de 194/84mmHg e à data de internamento era de 203/89mmHg. O ecocardiograma documentou hipertrofia ventricular esquerda concêntrica, com normal função sistólica global e sem alterações valvulares significativas. Na MAPA tinha hipertensão sisto-diastólica com marcada elevação das cargas sistólicas e padrão não dipper. (Diurna – 174/84/113/90mmHg; Noturna -157/79/107/78mmHg; (valores médios de TA sistólica/TA diastólica/TA média/pressão de pulso respetivamente).
Foi realizado previamente um cateterismo seletivo das artérias renais que excluiu a presença de estenoses, e confirmou que a anatomia era favorável à realização do procedimento.
O procedimento foi semelhante ao descrito para o doente prévio, tendo sido realizadas 6 aplicações de radiofrequência em ambas as artérias renais. O acesso vascular foi a artéria femoral direita, o tempo de fluoroscopia foi de 9min, a quantidade de contraste foi de 60ml (hipoosmolar - Visipaque 320 mgI/ml) e o tempo total do procedimento foi de 46min. No final do procedimento foi feito o encerramento do local de acesso com dispositivo Angioseal®. Não houve complicações e o doente teve alta no dia seguinte. Na avaliação 1 mês após o procedimento, tendo já interrompido a medicação com beta-bloqueante, a tensão arterial na consulta foi de 166/70mmHg. Por comparação com os valores prévios à intervenção, houve uma redução de 28mmHg na sistólica e de 14mmHg na diastólica, estando medicada com menos um grupo terapêutico. A função renal não sofreu alterações significativas em relação aos valores prévios ao procedimento: eDFG de 83ml/min/1,73m2.
Está planeada a realização de MAPA aos 3 e 6 meses após o procedimento, e AngioTC renal aos 6 meses.
DiscussãoEstes 2 casos clínicos ilustram a exequibilidade da ablação por radiofrequência para tratamento da HTA resistente e a importância da equipa multidisciplinar na abordagem desta nova terapêutica percutânea. Os doentes foram avaliados previamente na consulta de Nefrologia, sendo aplicados critérios clínicos e anatómicos para seleção dos doentes para este tratamento.
Os critérios clínicos foram o diagnóstico de HTA resistente, definida como PA sistólica ≥ 160mmHg, em ≥ 2 medições na consulta, sob terapêutica com ≥ 4 fármacos anti-hipertensores, (incluindo um diurético) e a exclusão de causas secundárias de HTA. Os critérios anatómicos definidos foram o diâmetro ≥ 4mm, o comprimento mínimo das artérias renais ≥ 20mm, a ausência de variações anatómicas, (tortuosidade extrema, estenoses) e/ou intervenção prévia das artérias renais. A anatomia renal deverá ser previamente documentada por angiografia (por tomografia computorizada, ressonância magnética ou cateterismo).
Vários registos e ensaios clínicos têm vindo a demonstrar a eficácia e segurança desta técnica. Num estudo aleatorizado e multicêntrico que envolveu 106 doentes com HTA resistente (Symplicity HTN-2), verificou-se uma descida de 32mmHg na TA sistólica e de 12mmHg na TA diastólica aos 6 meses no grupo submetido a ablação5. No Symplicity-HTN 2, os doentes teriam critérios de inclusão se estivessem previamente medicados com ≥ 3 fármacos anti-hipertensores (incluindo um diurético) e a redução verificada nos valores tensionais foi obtida com manutenção, por protocolo, da medicação anti-hipertensora prévia. No entanto, a população incluída no estudo estava medicada, em média, com 5,3 fármacos. Assim, nesta experiência inicial optamos por incluir doentes com ≥ 4 fármacos anti-hipertensores e nos 2 casos aqui relatados, optou-se por interromper o beta-bloqueante após o procedimento. Tratando-se de uma experiência inicial, o motivo esteve relacionado com precaução em relação a um eventual efeito aditivo da medicação e do procedimento de ablação da atividade simpática, cujo potencial efeito nas vias aferentes poderia conduzir de alguma forma a uma redução do tónus simpático sistémico dos doentes.
A eficácia desta técnica está relacionada com a redução da atividade simpática aferente e eferente, que tem um importante papel na fisiopatologia da hipertensão arterial. A enervação eferente renal aumenta a produção de renina e consequente ativação do eixo renina-angiotensina-aldosterona, para a retenção de sódio e diminuição do fluxo sanguíneo renal. Por outro lado, a enervação aferente aumenta o drive simpático central, que, por sua vez, poderá estar implicado na fisiopatologia de outras entidades clínicas, nomeadamente na resistência à insulina9, na hipertrofia ventricular esquerda, na insuficiência cardíaca e na apneia do sono10. Estas patologias poderão ser minoradas ou melhoradas pela ablação das artérias renais, ampliando o benefício proporcionado pelo controlo dos níveis tensionais e alargando o leque de potenciais aplicações futuras desta técnica.
ConclusõesEstes 2 casos clínicos servem para ilustrar a exequibilidade e marcam o início da aplicação em Portugal a 25 de julho de 2011 de uma nova técnica de Cardiologia de Intervenção para tratamento de doentes com hipertensão arterial resistente. Esta técnica baseia-se na ablação da atividade simpática renal por radiofrequência, tendo-se mostrado bastante promissora em ensaios clínicos multicêntricos recentemente publicados.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.