A utilização do eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações na avaliação pré‐competitiva dos atletas continua a não ser universalmente aceite. Pela terceira vez, em 2014, a American Heart Association decidiu não apoiar a avaliação mandatória a nível nacional nos Estados Unidos, particularmente com o uso do ECG por rotina1. Entre as razões para essa decisão reiterada está, para além da baixa incidência de eventos, o substancial número de resultados falsos‐positivos e falsos‐negativos, na ordem dos 5‐20%, dependendo dos critérios eletrocardiográficos específicos utilizados. Outros motivos residem na influência da variabilidade interobservador e no impacto das diferenças raciais/étnicas na interpretação do ECG, que têm um reflexo significativo na definição de normalidade.
Na Europa, a Sociedade Europeia de Cardiologia (SEC) publicou inicialmente, em 2005, recomendações sobre a interpretação do ECG nos atletas2, que foram atualizadas em 2010, distinguindo os achados frequentes relacionados com o treino, das alterações raras sem relação com o treino3. Os critérios da SEC de 2010 melhoraram a especificidade de 83 para 89,5% e reduziram os falsos‐positivos de 16,9 para 10%, sem comprometer a sensibilidade. Em 2013, os critérios de Seattle introduziram valores limiares mais estritos, menos ambíguos, especialmente para os relacionados com a inversão da onda T, a depressão do segmento ST e as ondas Q patológicas4. A progressiva evolução dos conhecimentos permitiu identificar uma série de alterações, como seja, o desvio esquerdo do eixo, ou o desvio direito, a dilatação auricular esquerda ou direita, a hipertrofia ventricular direita e a inversão da onda T acompanhada de supradesnivelamento do segmento ST até V4 nos atletas de raça negra, que passaram a ser classificadas como borderline, pelo que se aparecerem isoladas não necessitam de mais avaliação, enquanto a presença de duas ou mais destas alterações requer mais investigação. A aplicação dos «critérios refinados» conduziu à maior redução da taxa de falsos‐positivos, atingindo 4,9%5. Se se confirmar prospetivamente que a utilização destes critérios vai não só diminuir o número de ECG considerados anormais, mas também que continua a detetar todas as anomalias e a reduzir o número de mortes súbitas em atletas, a interpretação do ECG dos atletas será mais inequívoca, logo menos variável.
É precisamente sobre estas questões que se debate o interessante artigo publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, da autoria de Hélder Dores et al.: Variabilidade na interpretação do eletrocardiograma do atleta: mais uma limitação na avaliação pré‐competitiva6. Tem sido um assunto que só recentemente despertou a atenção dos investigadores7,8, sendo o presente estudo dos que envolveram um maior e mais diversificado número de peritos (58 médicos, 72% de cardiologistas). Curiosamente, a interpretação correta dos traçados não foi maior entre os cardiologistas do que pelos internos, nem foi diferente entre os que avaliam frequentemente ou não atletas. Só a utilização de critérios específicos aumentou tendencialmente a correção da interpretação, sublinhando o valor destes critérios na diminuição da variabilidade na leitura dos ECG no rastreio dos atletas.
Perante os dados italianos, em que a avaliação dos atletas com base no ECG diminuiu a ocorrência de morte súbita no desporto em 90% num período de 26 anos, atribuída à identificação de atletas com doenças cardíacas potencialmente fatais, é difícil aceitar a posição americana de dispensar o ECG, mesmo reconhecendo o impacto psicológico que a realização de exames adicionais vai implicar, sem evitar a exclusão desnecessária de atletas da prática desportiva, nem tão pouco de prevenir todas as mortes súbitas cardíacas no desporto9,10.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.