Num trabalho publicado nesta edição da revista1, os autores, do Serviço de Cardiologia de Faro, assumem o objetivo de comparar a sua experiência de referenciação de doentes para cirurgia cardíaca no período de 1/01/2008 a 30/09/2014, dividido em dois grupos, de 1/01/2008 a 01/08/2011 (43 meses; 557 doentes) e de 01/08/2011 a 30/09/2014 (37 meses; 307 doentes). Esta divisão temporal está relacionada com alterações das vias de referência emanadas das respetivas Administrações Regionais de Saúde.
Tanto quanto se sabe, mas não está claramente explicitado no trabalho, os doentes eram referenciados preferencialmente para um determinado hospital de Lisboa durante o primeiro período e passaram a ser predominantemente enviados para outro no segundo. Por razões não explicadas, o número de doentes referenciados em cada um dos períodos não é proporcional à duração de cada um, mas é possível que tal se deva a alguma dispersão da rede de referência no período mais recente.
As características demográficas e clínicas dos doentes dos dois grupos eram semelhantes, mas o tempo médio de espera para cirurgia passou de 10,6±18,5 dias para 55,7±79,9 dias, respetivamente, o que determinou uma diferença significativa da morbilidade, refletida em novos internamentos (0,4 e 9,1%), e da mortalidade (0 e 2,3%) durante a espera. Importa, no entanto, salientar que os tempos de espera nos casos urgentes não foram muito dissemelhantes (2,1 dias e 3,0 dias). Embora outros autores tenham demonstrado que o tempo de espera está frequentemente associado a deterioração da condição clínica dos doentes e, consequentemente, com piores resultados cirúrgicos2, aparentemente não terá havido diferença nos resultados da cirurgia e no follow‐up pós‐cirúrgico na população aqui em causa.
Estas conclusões não surpreendem. A problemática do acréscimo da mortalidade e morbilidade durante a espera para cirurgia cardíaca, como para outras cirurgias, é bem conhecida, tem sido abundantemente discutida na literatura médica3 e justifica o grande esforço que tem sido feito, um pouco por todo o lado, para atenuar o volume das listas e o período de espera, havendo recomendações de várias entidades nacionais e internacionais, a maior parte fixando os tempos máximos aceitáveis entre as duas semanas para casos mais urgentes e as seis semanas para casos eletivos4.
No entanto, a classificação de urgente e eletiva é muto subjetiva. Malaisrie et al., do grupo do Northwestern Memorial Hospital de Chicago, verificaram que «o tempo de espera prolongado para substituição valvular aórtica (SVA) esteve associada a uma mortalidade (3,7 e 11,6% com um e seis meses de espera) mais elevada de que a própria mortalidade operatória da SVA, embora o tempo de espera não tivesse ficado associado a maus resultados operatórios após a SVA». Os mesmos autores recomendaram que «os doentes devem ser submetidos a SVA numa base semiurgente e não eletiva»5.
Recentemente, as Sociedades Portuguesas de Cardiologia e de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular constituíram um grupo de trabalho conjunto que tinha como objetivo transportar para a realidade portuguesa este tipo de recomendações. No último Congresso Português de Cardiologia o grupo de trabalho apresentou publicamente um documento que aponta para prazos idênticos aos atrás referidos. Ora, a lista de espera no segundo período em estudo pelo grupo de Faro em muito os excede.
O problema não é específico de Portugal e acontece um pouco por todo o lado, mesmo em países mais desenvolvidos do que o nosso, alguns com períodos médios de espera bastante mais longos. Foi, até, há alguns anos atrás, tema de um grande debate político em Espanha, de que resultou uma substantiva diminuição dos tempos de espera para cirurgia cardíaca naquele país. Aliás, é importante referir que no nosso país a cirurgia cardíaca é, de entre todas as especialidades cirúrgicas, a que está melhor posicionada no que diz respeito ao tamanho e duração das listas de espera, ainda que isso não signifique que não se possa fazer muito melhor. Quiçá os efeitos nocivos da espera são mais evidentes nesta especialidade que noutras.
De facto, o modelo de organização dos diferentes serviços de cirurgia cardiotorácica do país não é idêntico para todos (o do meu é bem conhecido), como o não são as razões para as respetivas listas de espera, mas não cabe aqui dissecá‐las. Apenas direi que, em minha opinião, algumas das dificuldades aduzidas poderiam ser facilmente ultrapassadas não só com o apoio das autoridades de saúde nacionais e regionais, mas também com a correção de alguns aspetos organizativos da responsabilidade exclusiva dos próprios serviços.
O estudo comparativo efetuado pelos nossos colegas de Faro tem, no entanto, algumas limitações, a mais significativa das quais será a da eventual comparação dos dois serviços de cirurgia cardiotoráciaca para onde os doentes foram predominantemente referenciados, um privado e outro público, com caraterísticas completamente diferentes. Naturalmente, o privado não poderia nunca dar‐se ao luxo de ter tão longa lista de espera e, como tal, está organizado de modo diferente a esse respeito. Poderá perguntar‐se se então não deveriam todos os doentes beneficiar de um tal serviço, mas esta não é (nem sei se poderá ser) a nossa realidade. De facto, o serviço de Faro foi, neste caso, privilegiado durante bastante tempo.
Por outro lado, um aspeto que parece ter passado relativamente ao lado do grupo de trabalho das duas sociedades é o dos tempos que vão desde os primeiros sintomas até ao acesso ao médico de família, desde este até ao cardiologista e daqui até ao diagnóstico definitivo, que não podem ser dissociados dos tempos de espera cirúrgicos. Este aspeto também não é referido no artigo dos nossos colegas de Faro. Sem querer entrar em detalhes, não me parece razoável que, assumindo que os seus tempos sejam comparáveis aos da maior parte dos serviços congéneres, devam por eles ser excluídos da equação.
Infelizmente, os autores não responderam, nem sequer tentaram, provavelmente por indisponibilidade de dados, à pergunta por eles próprios colocada no título do seu trabalho sobre se «…as razões económicas serão destituídas de custos?». Aparentemente, a decisão que alterou o sistema de referenciação dos doentes de Faro foi baseada em «razões do foro económico, com o objetivo de tentar reduzir custos ao Sistema Nacional de Saúde», dando a entender que talvez o que estava a ser pago ao hospital privado excedesse os valores da tabela do SNS. Ficamos, pois, sem saber se o acréscimo de internamentos não anulou ou até prejudicou o efeito pretendido. Sem contar com o impacto da espera na economia individual dos cidadãos (doentes), também ela com repercussões na economia do país, e ainda menos com o impacto na mortalidade, esta não quantificável em termos económicos.
E bem valeria a pena realizar tal estudo!
De facto, Sampalis et al., do Canadá, demonstraram que comparados com a baseline, «os doentes que esperaram mais tempo (pela cirurgia de revascularização miocárdica) tinham reduzido significativamente a capacidade física, a vitalidade, os aspetos sociais e a saúde geral e mental, para além de que períodos mais longos antes da cirurgia se associaram a um aumento da probabilidade de não retorno ao trabalho após a cirurgia»6.
Finalmente, um aspeto que passa frequentemente ao lado da discussão é o do impacto da desigualdade social dentro da lista de espera. Petrelli et al. relataram que na Itália «as probabilidades condicionais de serem submetidos a cirurgia foram menores entre os indivíduos com uma educação de nível baixo a médio do que para indivíduos com um nível de educação mais elevado, após ajustamento para sexo, idade, comorbilidades e período de inscrição na lista de espera»7. Pell et al., no Reino Unido, chegaram a conclusões semelhantes8.
Impõe‐se, pois, que os nossos cardiologistas e cirurgiões trabalhem em conjunto no estabelecimento de redes de referência mais baseadas na capacidade e disponibilidade dos diferentes serviços cirúrgicos do que em regras estabelecidas burocraticamente, o que, aliás, se vai já fazendo com base em relações individual e pessoalmente desenvolvidas. O que nem sequer é ilegal, mas deveria ser devidamente contemplado nas diretivas emanadas tanto da administração central como das várias administrações regionais de saúde. Confesso que não tenho, nesse aspeto, encontrado grandes resistências e muito menos dos doentes cujo maior interesse é o de verem os seus problemas cardíacos resolvidos o mais rapidamente possível, independentemente do local onde isso possa ser conseguido.
Não se compreende, portanto, a limitação da referenciação dos doentes com tempos de espera ultrapassados para outros serviços que os tenham de menor magnitude ou que os não tenham de todo. Como se não entende a restrição da liberdade dos doentes poderem escolher o centro que melhor lhes responda, eventualmente até com melhores resultados! O país é demasiado pequeno para justificar estas assimetrias e o Serviço Nacional de Saúde tem de ser capaz de dar uma resposta adequada e atempada às necessidades dos seus doentes. Mas se se concluir que tal não é possível, então que seja possível recorrer a privados, em condições financeiras que o sistema possa suportar!