A fibrilhação auricular (FA) é a arritmia mantida mais frequente na clínica, é importante causa de morbilidade, sobretudo pelo risco associado de acidente vascular cerebral (AVC) isquémico, constitui um fator de risco independente para a mortalidade de causa cardíaca1. Como essa é uma situação diretamente associada à idade, é de prever que com o envelhecimento da população o número de doentes com FA possa crescer exponencialmente nas próximas décadas2.
Nesse contexto, é da maior importância o conhecimento da prevalência dessa situação, de modo a poder‐se aprimorar estratégias de saúde no âmbito cardiovascular, particularmente porque a incidência e mortalidade por acidente vascular cerebral apresenta em Portugal valores significativamente elevados face aos restantes países da União Europeia3.
A incidência e a prevalência de FA têm sido estimadas por diversos estudos publicados desde os anos 1980. A sua consulta revela que a estimativa da prevalência dessa arritmia apresente grandes variações de país para país, que devem ser valorizadas com cautela, as discrepâncias encontradas nos diversos estudos podem resultar da metodologia usada e sobretudo da idade da inclusão, cujo limite inferior varia entre os 18 e os 65 anos.
Por outro lado, a deteção de casos em nível da comunidade é difícil, pois o diagnóstico exige, pelo menos, um eletrocardiograma, pelo que muitos estudos foram baseados em populações recrutadas em nível de centros de cuidados primários de saúde, por essa razão são necessariamente enviesados.
No fim da década passada constatámos não existirem ainda em Portugal dados fidedignos relativamente à prevalência e incidência de FA, o que considerámos ser uma falha importante, particularmente dada a elevada taxa de mortalidade por AVC em Portugal e o facto conhecido de a FA estar na base de pelo menos 15% dos AVC isquémicos2. Concluímos que o conhecimento desses parâmetros nas várias faixas etárias seria importante para melhorar o nível de controlo dessa arritmia e consequente prevenção do AVC, o que nos levou a estudo epidemiológico amplo, que permitisse oferecer um panorama tão aproximado quanto possível da realidade nacional – o estudo Fama, que veio a ser publicado em 20104.
O referido estudo permitiu estabelecer um valor de referência para a prevalência da FA, que tem desde então merecido largo consenso como representativo da situação da população portuguesa acima dos 40 anos. A formatação do estudo foi elaborada para que se observasse o maior rigor na forma de inclusão dos indivíduos, de modo a evitar a ocorrência de fatores que pudessem enviesar a amostra escolhida, assegurar que ela fosse representativa da população nacional. Para isso, planeou‐se o estudo de modo a abranger populações de todas as áreas geográficas do país, em cada uma das quais foram selecionados aleatoriamente vários concelhos e dentro desses várias localidades. A amostra populacional foi estabelecida por metodologia de random‐route, consiste na feitura, em cada localidade, de um percurso predefinido, a partir de um ponto inicial previamente estabelecido, de forma também aleatória5.
O estudo Fama tinha no entanto a limitação de subestimar a real prevalência da FA, na medida em que uma percentagem não determinável da população poderia ter uma FA paroxística, não presente no momento do ECG. Para termos valores mais aproximados dos reais, teríamos de conhecer com maior rigor a prevalência da FA paroxística, da qual as estimativas existentes são escassas e variáveis (35 a 60%).
Para tentar obviar, pelo menos parcialmente, essa limitação surgiram quase oito anos depois do Fama dois estudos em que se tentou minimizar esse efeito, documentar um maior número de FA paroxísticas através do prolongamento da monitoração eletrocardiográfica – o estudo de João Primo et al. recentemente publicado6 e o estudo Safira, apresentado nesta edição da Revista Portuguesa de Cardiologia7.
Em ambos os estudos foi usado o registo de Holter de 24 horas para identificar doentes com FA – em todos os doentes no estudo de Primo et al. e em um subgrupo aleatorizado de 400 indivíduos no Safira, a que se juntaram nesse último mais 200 indivíduos, que receberam um registador de eventos durante duas semanas.
A necessidade de fazer um exame mais dispendioso e complexo condicionou, no entanto, uma redução da dimensão da amostra da população estudada relativamente ao Fama e impediu que esses estudos tivessem sido feitos na comunidade, de que resultou necessariamente alguma seleção, não podem ser considerados verdadeiramente representativos da população geral.
No Safira os autores indicam que o recrutamento foi feito não só em unidades de saúde, mas maioritariamente (93,7%) fora dessas unidades, através de parcerias com a sociedade civil (misericórdias, juntas de freguesia, centros de dia e lares de terceira idade), o que permitiu reduzir, mas não anular, o enviesamento da seleção da população incluída no estudo.
O Safira abrangeu uma população mais idosa (indivíduos com 65 anos ou mais), também incluída no estudo Fama, mas que foi possível analisar mais detalhadamente. A prevalência encontrada para a FA (9%) foi superior à do Fama, mas em nível do grupo etário a diferença não foi muito significativa (a prevalência no Fama não foi dicotomizada a partir dos 65 anos, mas entre os 70 e os 80 foi de 6,6% e ≥ 80 foi de 10,4%, resultados aliás coerentes também como o que referem os autores de dois estudos internacionais de referência, como o de Roterdam8 e o estudo espanhol de Cea‐Calvo9. Foi, no entanto, inferior à encontrada por Primo et al.6 (12,4%) numa população mais jovem (acima dos 40 anos), mas teoricamente mais selecionada e potencialmente mais doente (recrutada em dois centros de referência para a feitura de Holter).
Apesar de ter passado quase uma década da feitura do Fama constatou‐se que permanecia elevada a percentagem de doentes com FA que desconheciam ter essa arritmia – 35,9% no Safira contra 38% do Fama, o que indica que lamentavelmente continuava a ser insuficiente o conhecimento pelo público de uma arritmia tão relevante.
Os padrões do tratamento antitrombótico foram analisados com pormenor no Safira, mas a conclusão mais importante foi a de que 56,3% dos doentes com FA previamente conhecida não faziam anticoagulação oral, contra 37,8% no Fama (29,8% dos doentes fazia apenas antiagregantes plaquetares no Safira contra 21,8% no Fama). Conclui‐se que também aqui não se avançou muito no cumprimento pelos médicos portugueses das guidelines internacionais, que preconizam essa terapêutica na larga maioria dos doentes com FA. A idade mais avançada dos doentes do Safira explica em parte essa constatação, mas não é aceitável que o medo das complicações hemorrágicas iniba os médicos do uso de uma terapêutica com uma relação risco/eficácia tão favorável. O panorama encontrado no Safira foi ainda mais negativo na medida em que a análise da relação com o score CHA2DS2‐VASc mostrou paradoxalmente taxas de anticoagulação mais baixas (18,6%) nos grupos com scores mais elevados (score 6 ou mais). Para completar, verificaram que mesmo os doentes medicados não o estavam de forma correta – assim os que faziam antivitaminas K estavam na maioria do tempo com doses subterapêuticas (TTR de apenas 41,7%), enquanto dos que tomavam NOACS (cerca de um terço dos doentes anticoagulados), um quarto estava mal medicado.
Apesar de se comprovar uma melhoria após a introdução dos NOACS, esses factos constatados explicam certamente a elevada taxa de AVCs encontrada nos doentes incluídos no estudo.
Como é natural nessa população mais idosa, a prevalência de fatores de risco cardiovascular foi muito elevada (HTA – 85,3%, dislipidemia – 75,4%, diabetes – 22,7%), substancialmente superior ao encontrado no Fama.
Uma das razões apontadas pelos autores para terem encontrado uma prevalência de FA superior à do Fama foi o facto de terem sido incluídos mais casos de FA paroxística, devido ao uso do Holter ou registador de eventos numa parte dos indivíduos. De facto, esses métodos permitiram aumentar a deteção de casos de FA paroxística (no Safira, três em cada cinco casos detetados de FA paroxística – 58/102 – foi‐o no Holter ou registador de eventos), mas no total a prevalência desse tipo de FA representou apenas 18,6% do total de doentes com essa arritmia, percentagem ligeiramente inferior à encontrada no estudo de Primo et al.6 (21,3%), em que foi usado o registo de Holter na totalidade dos doentes incluídos. Os autores referem como limitação dessa metodologia a opção por se usar a média não ponderada das prevalências encontradas nesses subgrupos para se calcular a prevalência na amostra global, o que pode ter introduzido algum viés.
Consideramos que as diferenças encontradas entre os estudos são apenas marginalmente explicadas pela inclusão de mais FA paroxísticas; como referimos atrás, há diversos fatores em nível da inclusão que podem ter conduzido a uma seleção de populações mais doentes e/ou mais propensas a ter arritmias (caso do recrutamento em centros de Holter no estudo de Primo et al.).
As conclusões do estudo Safira vêm reforçar e ampliar as do Fama – confirmam a prevalência elevada da FA na população idosa portuguesa e vários anos depois mostram como se mantêm quase intactos problemas como a taxa insatisfatória de diagnóstico dessa arritmia e o elevado número de doentes a quem não é oferecida terapêutica anticoagulante. Concordamos por essas razões com os autores sobre a necessidade de «uma melhor identificação e gestão da terapêutica da FA», com necessidade de «aprimorar as estratégias de controlo da doença (FA, AVC, embolismo sistémico)» e a importância de alertar a população, os doentes, os profissionais de saúde e seus formadores, assim como a tutela da saúde, para a relevância dessa arritmia, a possibilidade de controlar o seus sintomas e prevenir as complicações, podem‐se obter assim substanciais ganhos de saúde, com redução da morbilidade e mortalidade das populações.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflito de interesses.