A fibrilhação auricular (FA) é um dos mais importantes problemas de saúde pública em Portugal, representa simultaneamente um importante fator e marcador de risco cardiovascular. Avaliar, numa população representativa com 65 ou mais anos, a prevalência, epidemiologia e caracterização clínica e terapêutica da FA.
MétodosForam avaliados 7500 indivíduos de 65 anos ou mais, recrutados em todas as regiões administrativas e representativos da população idosa residente em Portugal continental. A todos eles foi feito um ECG e, na ausência de FA, um subgrupo fez ainda Holter de 24h ou implantou um registador de eventos durante sete dias. Em toda essa população foram avaliados dados epidemiológicos, clínicos e farmacológicos.
ResultadosA população estudada (41,9% do sexo masculino e 58,1% feminino), com média de 68,9 anos, apresentou uma prevalência global de FA de 9,0%. Desses 35,9% desconheciam ter FA e 18,6% apresentavam FA paroxística. Nessa população, a prevalência de HTA foi de 85,3%, de dislipidemia foi de 75,4% e de diabetes de 22,7%. O valor mediano do score de Chads‐vasc foi de 3,5 +/‐1,2. Em termos de abordagem terapêutica, 56,3% dos doentes não estavam anticoagulados (29,8% dos doentes estavam antiagregados) e, de entre os medicados com antivitamínicos K, o valor médio de TTR foi de 41,7%.
ConclusõesEste estudo mostra a muito elevada prevalência de FA na população idosa portuguesa, bem como uma taxa subótima de diagnóstico, anticoagulação e controlo efetivo dos fatores de risco cardiovasculares.
Atrial fibrillation (AF) is a common arrhythmia and an important risk factor for ischemic stroke. The current ESC guidelines state that all patients aged 65 and over should be regularly screened for AF. The SAFIRA study aimed to determine the prevalence, epidemiology and clinical and therapeutic characterization of AF in the Portuguese elderly population.
MethodsThe study population (7500 subjects) were recruited from all Portuguese administrative regions. Demographic, clinical and drug treatment data were collected, risk scores were calculated, and an electrocardiogram (ECG) was performed in all subjects. In those not found to have AF on the resting ECG, a randomized subset (400 subjects) underwent 24‐hour Holter monitoring and 200 subjects were fitted with an event recorder for two weeks, in order to identify patients with paroxysmal AF. The primary endpoint was AF prevalence; secondary endpoints (in the AF population) included prevalence of paroxysmal AF, mean and median CHA2DS2‐VASc and HAS‐BLED scores, rates of anticoagulant and antiplatelet therapy, previous stroke, previous stroke/transient ischemic attack, previous bleeding, and time in therapeutic range (if on vitamin K antagonists).
ResultsThe prevalence of AF was 9.0%. Of these, 35.9% were unaware of the diagnosis and 18.6% had paroxysmal AF. Median CHA2DS2‐VASc score was 3.5±1.2 and 56.3% of patients were not anticoagulated. In the AF subpopulation, the stroke rate was 11.2%. Overall, only 25.8% of the anticoagulated patients were considered to be adequately treated.
ConclusionsThis study shows the high prevalence of AF in the elderly population, as well as suboptimal rates of diagnosis, anticoagulation and effective control of cardiovascular risk factors.
A fibrilhação auricular (FA) é um dos mais importantes problemas de saúde pública em Portugal, representa simultaneamente um importante fator e marcador de risco cardiovascular1–4.
Em face disso, o conhecimento da sua prevalência na população portuguesa, sobretudo entre os mais idosos, reveste‐se da maior importância para a criação e implantação de estratégias de diagnóstico, tratamento e controlo de risco realistas e eficazes.
População e métodosO estudo Safira teve como objetivo avaliar, numa população representativa com 65 anos ou mais, oriunda de todas as regiões administrativas de Portugal continental, a prevalência, epidemiologia e caracterização clínica e terapêutica da FA. Por ser um estudo de base populacional, a fim de não selecionar uma população com sobre‐expressão de doença, o recrutamento foi maioritariamente feito fora das unidades de saúde (93,7%; n = 7.027), usaram‐se parcerias com a sociedade civil, inclusive misericórdias, juntas de freguesia, centros de dia e lares de terceira idade; esses dois últimos grupos contribuíram com 2225 (29,7%) indivíduos, por forma a incluir uma parte da população idosa que é frequentemente excluída desse tipo de estudos (Tabela 1). Não foram incluídos indivíduos hospitalizados ou em serviços de urgência.
Características gerais da população
Características da população (%) | |
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População total (n) | 7500 |
Recrutados em unidades de saúde, n (%) | 473 (6,3) |
Recrutados fora das unidades de saúde, n (%) | 7027 (93,7) |
Recrutados em lares de terceira idade e centros de dia, n (%) | 2225 (29,7) |
Idade média (anos) | 68,9+/‐4,5 |
Sexo feminino (%) | 58,9% |
HTA (%) | 85,3% |
Diabetes (%) | 22,7% |
Dislipidemia (%) | 75,4% |
HTA, hipertensão arterial.
Os indivíduos da amostra foram convidados a participar no estudo pelas próprias instituições, de forma voluntária, até ao limite do número de indivíduos que cada instituição podia indicar para cumprir a proporção de indivíduos de uma dada região administrativa. A cada instituição foi pedido que não existisse outro critério de seleção dos indivíduos, nomeadamente a existência previamente conhecida de FA, por forma a minimizar o enviesamento da amostra. Para a constituição desta amostra (n = 7.500) foram contactados 9765 indivíduos; o recrutamento foi iniciado em outubro de 2013 e terminado em setembro de 2015.
Os indivíduos da amostra foram avaliados por uma equipa de saúde multidisciplinar, com dois elementos médicos fixos (pelo menos um deles estava sempre presente) e submetidos a um questionário (em anexo), aplicado por profissionais de enfermagem com experiência na área cardiovascular, de forma a colher toda informação relevante.
Todos os indivíduos fizeram ECG e, de entre aqueles em que o ECG não revelou fibrilhação auricular, um subgrupo aleatório de 400 indivíduos foi submetido a ECG de 24 horas e um segundo subgrupo aleatório de 200 indivíduos recebeu um registador de eventos durante duas semanas, de forma a aumentar a probabilidade de detenção de fibrilhação auricular paroxística. A leitura dos Holter e registadores de eventos foi feita de forma central pela mesma equipa técnica e clínica e a eficácia de cada um desses exames foi comparada entre si tal como pré‐especificado no protocolo. A alocação de doentes a cada subgrupo foi feita por aleatorização de blocos (de 30 indivíduos no caso do Holter e de 15 indivíduos no registador de eventos). A prevalência de FA nessas subpopulações foi depois adicionada à prevalência detetada com o ECG, após o que foi feita a média não ponderada das prevalências, por forma a calcular a prevalência global estimada de FA na população do estudo.
A todos os indivíduos foi solicitado que no dia da avaliação trouxessem a lista de medicação e exames recentes que pudessem ter na sua posse. Naqueles com função renal disponível com menos de seis meses foi calculada a clearance de creatinina (segundo a equação de Cockroft‐Gault), por forma a avaliar a função renal, e, no caso de estarem medicados com um novo anticoagulante (NOAC), se a dose do mesmo estava correta (com o uso da idade e do peso sempre que os mesmos faziam parte das indicações para redução de dose aprovadas pelo Infarmed). Relativamente aos indivíduos medicados com antivitamínicos K, o tempo em intervalo terapêutico (TTR) foi calculado com o uso do método de Rosendaal, sempre que estivessem disponíveis pelo menos cinco valores de INR dos últimos seis meses (foram considerados como terapêuticos valores entre 2.0 e 3.0, inclusive).
No estudo Safira, o endpoint primário foi a prevalência de FA nessa população; os endpoints secundários foram a prevalência de FA paroxística, os valores médios dos scores CHA2DS2‐VASc e HAS‐BLED e as taxas de anticoagulação, antiagregação plaquetar, AVC prévio, AVC ou AIT prévio, hemorragia prévia e TTR (nos doentes medicados com antivitamínicos K).
Deste estudo resultou uma muito elevada prevalência de FA nessa população idosa (9,0%), em muitos casos (35,9%) a FA não era previamente conhecida. O estudo avaliou também os padrões de tratamento da FA, do risco de acidente vascular cerebral (AVC) e dos fatores de risco cardiovasculares (CV), com resultados que suscitam uma reflexão com vista à sua melhor compreensão e futuro desenho de estratégias mais eficazes no campo do diagnóstico e manejo da FA e do risco de AVC nos idosos portugueses. Nesse contexto, identificámos, de entre os resultados globais, alguns que nos pareceram mais pertinentes para análise mais profunda e que iremos relacionar e discutir adiante.
Análise estatísticaO cálculo da dimensão da amostra teve como base a população portuguesa com mais de 65 anos no censo de 2011 (2.010.000) e previu a priori uma taxa de não aceitação em participar no estudo de 20%. As variáveis contínuas foram avaliadas e expressas em média +/‐ desvio‐padrão e as variáveis categóricas foram avaliadas e expressas em percentagem ou mediana, conforme indicado.
Objetivos deste artigoO presente artigo pretende proceder a uma análise mais detalhada dos resultados do estudo Safira5, nomeadamente em sete vertentes:
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Rastreio e diagnóstico de FA nos idosos
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Padrões de tratamento antitrombótico
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Eficácia dos referidos tratamentos
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Padrões de controlo de risco CV
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O que nos dizem os doentes
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Limitações do estudo
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Que fazer com esses resultados?
Os resultados do estudo Safira revelaram uma prevalência global estimada de FA de 9,0% nesses doentes, idêntica no sexo masculino (8,9%) e feminino (9,1%), essa prevalência foi de 9,3% na subpopulação que fez Holter e 10,6% na que colocou registador de eventos (Tabela 2). Se considerarmos a prevalência estimada estratificada pela idade, ela foi de 6,8% entre os 65‐69 anos, 11,1% nos septuagenários e 15,2% naqueles com 80 ou mais anos.
FA: principais dados
Características da população (%) | |
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Prevalência global de FA estimadaa (%) | 9% |
Prevalência na subpopulação que só fez ECG (%) | 7,1% |
Prevalência na subpopulação que fez Holter (%) | 9,3% |
Prevalência na subpopulação que colocou registador de eventos (%) | 10,6% |
Prevalência global estimadaa ‐ sexo masculino (%) | 8,9% |
Prevalência global estimadaa ‐ sexo feminino (%) | 9,1% |
FA paroxística (%) | 18,6% |
CHADS‐VASc (mediana) | 3,5+/‐1,2 |
Taxa de anticoagulação (%) | 43,7% |
TTR (%) | 41,7% |
Taxa de hemorragia prévia nos anticoagulados (%) | 4,6% |
ECG, eletrocardiograma; FA, fibrilhação auricular; TTR, tempo em intervalo terapêutico.
No estudo Safira o score CHA2DS2‐VASc mediano foi de 3,5+/‐1,2. O estudo revelou que 56,3% dos doentes com FA previamente conhecida não fazia anticoagulação oral (inclusive 29,8% que estavam medicados apenas com antiagregantes plaquetares) e 43,7% estavam anticoagulados; em indivíduos em centros de dia e lares de terceira idade a taxa de anticoagulação era de 34,3%. Quando se estratificou a taxa de anticoagulação em função do risco isquémico, os resultados foram os seguintes: 25,3% ‐ doentes com CHADS‐VASc entre 1 e 3; 50,1% ‐ se CHADS‐VASc 4‐5; 18,6% se CHADS‐VASc 6 ou superior.
Eficácia dos referidos tratamentosDentro da população de doentes com informação de estarem anticoagulados, foi avaliado o tipo de anticoagulação oral, 65,7% estavam medicados com antagonistas da vitamina K (VKA) e 34,3% estavam a fazer novos anticoagulantes (NOAC).
Nos primeiros foi avaliado o tempo em intervalo terapêutico (TTR), sempre que estavam disponíveis pelo menos cinco valores de INR nos últimos seis meses, o seu valor mediano foi de 41,7% (Tabela 2), maioritariamente (80%) por períodos de INR subterapêutico. Nos doentes medicados com Noac, foi avaliado se o fármaco, a dose e o número de tomas diárias estava de acordo com as características clínicas do doente (inclusive a clearance de creatinina segundo a equação de Cockcroft‐Gault, se estavam disponíveis dados que permitissem o seu cálculo) e com o resumo das características do medicamento aprovado em Portugal. Verificou‐se que 24,7% dos doentes estava incorretamente medicados (dose inadequada, número de tomas inadequadas ou clearance de creatinina incompatível com o uso de Noac). Com o uso desses critérios, 6,1% dos doentes anticoagulados estavam com dose excessiva (87,9% desses faziam AVK) ou não tinham clearance para fazer o Noac prescrito (93,1% desses medicados com dabigatrano) ou a dose prescrita (73,4% desses faziam rivaroxabano).
Globalmente só 25,8% dos doentes anticoagulados foram considerados bem medicados (dose e posologia correta, com anticoagulação efetiva – inclusive um TTR de pelo menos 55% nos medicados com AVK).
Quanto à taxa de AVC na população com FA do Safira, ela cifrou‐se nos 11,2% (25,7% dos quais com dois ou mais AVCs prévios).
Padrões de controlo de risco CVNessa população, a prevalência de fatores de risco CV foi muito elevada (HTA – 85,3%, dislipidemia – 75,4%, diabetes – 22,7%) (Tabela 1). O controlo dos mesmos foi também avaliado, considerou‐se sob controlo se a TA era igual ou inferior a 140/90mm Hg, o colesterol LDL abaixo de 100mg/dL e a HBA1c inferior a 7%. Quando aplicados esses critérios, só 5,6% dos doentes com FA e informação disponível tinham todos os fatores de risco CV no alvo e estavam a fazer anticoagulação oral considerada adequada.
O que nos dizem os doentes?No âmbito do estudo Safira, foram igualmente colocadas algumas questões relacionadas com o conhecimento da doença, da sua terapêutica médica, compliance farmacológica e efeitos secundários.
À pergunta «O que valoriza mais nos medicamentos que toma?», as respostas foram: segurança (45,1%), eficácia (35,6%), custo (12,8%) e comodidade posológica (6,7%).
Na pergunta «O que o leva a parar uma medicação crónica?», 88,7% responderam efeitos secundários. No caso de medicação para fluidificar o sangue, a principal causa de descontinuação referida foi a hemorragia (93,7%), o custo foi referido por 1,6% dos doentes (ocorreu quase exclusivamente naqueles medicados com Noac, nos quais atingiu o valor de 4,8%).
Ainda quanto a efeitos secundários, a taxa de hemorragia de qualquer grau reportada pelos doentes a fazer antitrombóticos foi de 4,6% na população anticoagulada e 12,3% nos medicados com antiagregantes. Desses, 9,8% dos casos de hemorragia foram classificados pelos doentes como hemorragia severa (89,3% desses casos ocorreram em doentes medicados com VKA) e só 1,9% levaram à necessidade de internamento.
DiscussãoRastreio e diagnóstico de FA nos idososQuando comparamos esses dados de prevalência com os do estudo Fama5 (2,5% de prevalência de FA em portugueses com mais de 40 anos), os números podem parecer exagerados. No entanto, há que considerar que existem importantes diferenças entre os dois estudos.
O estudo Fama abrangeu uma população com 40 ou mais anos, recrutada de entre a população geral de acordo com o metido random route, enquanto que o Safira se centrou exclusivamente nos idosos (65 anos ou mais) e tentou identificar uma população clinicamente mais abrangente, envolveu não apenas os indivíduos habitualmente seguidos nos cuidados de saúde primários, mas também os doentes do terceiro setor (lares de terceira idade, centros de dia) e alguma população consumidora de cuidados hospitalares (nomeadamente urgência e hospital dia, apesar de esse não ter sido o local do seu recrutamento para efeitos do estudo Safira). Por outro lado, o estudo Fama usou o ECG como único método de diagnóstico de FA, enquanto que no Safira houve um subgrupo de doentes submetido a Holter ou registador de eventos, numa tentativa de aumentar a deteção de casos de FA paroxística (no Safira, três em cada cinco casos detetados de FA paroxística – 58/102 – foi‐o no Holter ou registador de eventos), uma população que tem características próprias (Tabela 3). Se considerarmos outros estudos europeus, como o estudo de Roterdão6, que reportou uma prevalência de 8,3%, ou o estudo espanhol de Cea‐Calvo7, com uma prevalência de 8,5%, verificamos que os seus resultados estão dentro da ordem de grandeza do Safira.
Epidemiologia comparada
Características da população | Com FA (n = 548) | Sem FA (n = 6.952) |
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Idade média (anos) | 69,8+/‐6,7 | 68,7+/‐4,2 |
Sexo masculino (%) | 44,5% | 41,4% |
Características da população | Com FA paroxística (n = 102) | Com outro tipo de FA (n = 446) |
Idade média (anos) | 68,8+/‐4,6 | 70,7+/‐4,4 |
Sexo masculino (%) | 43,9% | 45,1% |
FA, fibrilhação auricular.
Apesar dessas considerações, é claro que o estudo Safira mostra uma muito elevada prevalência de FA nessa população idosa, semelhante entre os dois sexos e com uma prevalência crescente com o avançar da idade.
Porém, outro dado é tanto ou mais significativo e desafiante: 35,9% dos doentes desconheciam que tinham FA, mostrou‐se um universo relevante de doentes (no censo de 2011, um em cada cinco portugueses tinha mais de 65 anos) que não sabem que têm FA, o que torna a prevenção de AVC muito difícil nessa subpopulação.
Padrões de tratamento antitrombóticoNão obstante toda a evidência científica existente sobre a sua eficácia, segurança e custo‐efetividade na prevenção do AVC isquémico, particularmente entre os mais idosos1, verificou‐se uma baixa taxa de anticoagulação nos doentes com FA previamente conhecida, sobretudo porque, por estarmos a falar de uma população com 65 anos ou mais, nenhum doente tinha um score CHA2DS2‐VASc8 de 0 e muito poucos tinham um score CHA2DS2‐VASc de 1, o que torna a antiagregação plaquetar uma estratégia não recomendada para a sua esmagadora maioria e a anticoagulação oral mandatória para quase todos; a realidade revelada pelo Safira é bem diferente: 29,8% estavam medicados apenas com antiagregantes plaquetares e só 43,7% estavam anticoagulados, os números eram particularmente mais preocupantes nos doentes em centros de dia e lares de terceira idade, mesmo naqueles com um score HAS‐BLED10 relativamente baixo9.
E quanto à relação entre o score CHA2DS2‐VASc e a taxa de anticoagulação? Também aqui os resultados não foram positivos, com uma taxa de anticoagulação baixa (25,3%) naqueles com um score CHA2DS2‐VASc entre 1 e 3, mais elevada (50,1%) nos com score CHA2DS2‐VASc de 4 ou 5, mas de apenas de 18,6% nos com score CHA2DS2‐VASc de 6 ou mais.
Eficácia dos referidos tratamentosE aqueles que estavam anticoagulados, estavam bem medicados? Neste capítulo, dois dados chamam a nossa atenção:
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naqueles medicados com antagonistas da vitamina K (VKA), que eram a maioria (65,7%), o tempo em intervalo terapêutico (TTR) mediano foi de apenas de 41,7%, significou que na maioria do tempo não estavam bem anticoagulados (quase sempre por uso de doses subterapêuticas de VKA), ou seja, não estavam adequadamente protegidos quando ao risco de AVC10, que sabemos que é em média cinco vezes superior nos doentes com FA (versus aqueles sem FA) e que aumenta com a idade e a duração da FA.
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nos medicados com Noac, cerca de um quarto estava mal medicado (dose inadequada, número de tomas inadequadas ou clearance de creatinina incompatível com o uso de Noac).
Nesse contexto importa ressaltar que os resultados foram bem melhores nos doentes medicados com Noac do que com VKA, apesar de os Noac serem menos usados nos idosos do estudo Safira – 34,3% – do que na população em geral (cerca de 50%). Globalmente só 25,8% dos doentes anticoagulados foram considerados bem medicados (dose e posologia correta, com anticoagulação efetiva – inclusive um TTR de pelo menos 55% nos medicados com AVK), identificou‐se um grande potencial de melhoria nessa população. Em face de tudo isso, talvez não devamos ficar admirados com a taxa de AVC na população com FA do Safira: 11,2% (25,7% dos quais com dois ou mais AVCs prévios).
Padrões de controlo de risco CVÉ por demais sabido que a FA, particularmente nos idosos, não costuma ocorrer isoladamente; pelo contrário, aparece quase sempre associada a um ou mais fatores de risco CV, como amplamente demonstrado pela composição do próprio score CHA2DS2‐VASc8, o controlo desses fatores de risco é essencial para a melhoria do prognóstico da FA11,12. Com isso em consideração, os autores avaliaram também a presença e o tratamento dos principais fatores de risco cardiovascular. Como esperado, a prevalência de fatores de risco CV foi muito elevada, como já descrito noutros estudos5–7, mas o grau de controlo dos mesmos foi frequente deficiente, levou a que só 5,6% dos doentes tivessem todos os fatores de risco CV no alvo e estivessem a fazer anticoagulação oral adequada.
O que nos dizem os doentes?Esse é talvez um dos aspetos mais importantes e que será alvo de uma publicação mais detalhada. Não obstante, achamos importante salientar para já alguns aspetos importantes:
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o que valorizam mais os doentes?
Essa pergunta é alvo de frequente reflexão e por vezes alguma controvérsia. O ranking revelado pelo estudo Safira – segurança (45,1%), eficácia (35,6%), custo (12,8%) e comodidade posológica (6,7%) – parece indicar que, pelo menos entre os idosos medicados, parece já existir alguma importância da qualidade do tratamento, em detrimento do seu custo e comodidade. Seria interessante no futuro que a pergunta fosse feita aos profissionais de saúde ou aos decisores políticos, a fim de averiguar se os resultados seriam semelhantes.
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o que os leva a descontinuar os tratamentos antitrombóticos?
Como seria de esperar, a hemorragia está no topo da lista, mas a taxa de hemorragia de qualquer grau reportada pelos doentes foi relativamente baixa na população anticoagulada (e um terço da referida nos medicados com antiagregantes, facto tanto mais importante no contexto de a antiagregação plaquetar não ser uma estratégia adequada para a prevenção de AVC na esmagadora maioria desses doentes). A taxa de descontinuação por dificuldades económicas foi mais baixa do que o que eventualmente se poderia esperar (ocorreu, tal como previsível, quase exclusivamente naqueles medicados com Noac).
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a anticoagulação é segura nessas idades?
Falar de segurança na anticoagulação é falar de hemorragia. De acordo com os dados reportados pelos doentes no estudo Safira, só 9,8% dos casos de hemorragia é que foram classificados pelos doentes como hemorragia severa (89,3% desses casos ocorreram em doentes medicados com VKA) e só 1,9% levou à necessidade de internamento, salientou‐se a segurança dessa terapêutica (sobretudo os Noac) mesmo nessas idades.
Ainda no capítulo da segurança, um último dado para discussão: de acordo com os dados do estudo Safira, 6,1% dos doentes anticoagulados estavam com dose excessiva (sobretudo AVK) ou não tinham clearance para fazer o Noac prescrito (quase sempre dabigatrano) ou a dose prescrita (quase sempre rivaroxabano); isso mostra que também nesses aspetos há espaço para melhorar.
Limitações do estudoSó uma pequena percentagem da amostra pôde fazer Holter ou registador de eventos, o que pode, por um lado, ter limitado a capacidade de deteção de FA paroxística e, por outro, ter introduzido algum viés nos resultados, uma vez que se optou por calcular a média não ponderada dessas prevalências para estimar a prevalência de FA na população da amostra.
A seleção de indivíduos foi maioritariamente feita fora de instituições de saúde e não incluiu doentes hospitalizados ou em serviços de urgência, o que pode ter igualmente introduzido algum viés na amostra.
Só foram incluídos indivíduos que aceitaram o convite para participar e assinaram o respetivo consentimento, o que pode ter levado a uma seleção de pessoas mais recetivas a cuidados de saúde e, eventualmente, com maior grau de literacia para a saúde.
Tentou‐se que o estudo não fosse conscientemente enviesado com doentes com diagnóstico prévio de FA, mas tal não pode ser garantido em absoluto.
Nem todos os indivíduos tinham consigo a medicação prévia e análises recentes relevantes, o que limitou a recolha de alguma da informação quanto a terapêutica, função renal e adequação da medicação e hemorragia prévia, entre outros.
Que fazer com esses resultados?Como qualquer estudo científico, o Safira e a publicação dos seus resultados e análises não representam um ponto de chegada, mas sobretudo um ponto de partida. Mais do que reforçar ou minimizar esses resultados, com todas as suas nuances e limitações, importa sobretudo não os ignorar. Eles devem levar‐nos a refletir sobre uma realidade que urge compreender e melhorar, pois é óbvio que há espaço para isso.
Este artigo não pretende apresentar respostas nem propostas finais, mas antes estimular uma necessária discussão sobre a realidade da FA nos idosos portugueses e as formas de sobre ela intervir positivamente.
ConclusãoNa nossa análise desses resultados, algumas conclusões parecem‐nos incontornáveis: estamos perante uma muito elevada prevalência de FA na população idosa portuguesa, com uma taxa subótima de diagnóstico, anticoagulação e controlo efetivo dos fatores de risco CV. Esse cenário mostra‐nos os enormes desafios ainda existentes na identificação e gestão da FA e risco CV, pelo que urge aprimorar as estratégias de controlo da doença (FA, AVC, embolismo sistémico) e promoção da saúde nessa população, num esforço contínuo e conjunto dos doentes, dos seus cuidadores, dos profissionais de saúde e seus formadores e da tutela da saúde e da socioeconomia geriátrica, para que um futuro estudo dessa importante população mostre outra realidade de que todos nos possamos orgulhar.
FinanciamentoO estudo Safira foi financiado por de uma bolsa de investigação da aliança Pfizer/Bristol Meyers Squibb. A referida aliança não teve qualquer interferência na seleção dos sujeitos do estudo, na colheita e análise dos dados ou na elaboração deste manuscrito.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.