Mulher com miocardiopatia hipertrófica, que sofre enfarte do miocárdio aos 28 anos, sem doença coronária angiográfica. Dois anos mais tarde inicia manifestações de insuficiência cardíaca e instala-se disfunção sistólica ventricular esquerda com elevação persistente da troponina I cardíaca. A partir daí houve deterioração progressiva da função ventricular.
We present the case of a woman diagnosed with hypertrophic cardiomyopathy who suffered a myocardial infarction when she was 28 years old, without coronary artery disease on coronary angiography. Two years later, she presented signs of heart failure and left ventricular systolic dysfunction with persistent troponin I elevation, followed by progressive worsening of ventricular dysfunction.
A troponina I é um marcador analítico de lesão miocárdica, que tem valor prognóstico na insuficiência cardíaca (IC) crónica1,2. A elevação de troponina I presente na primeira consulta de IC é associada a maior mortalidade, no entanto, o valor prognóstico da elevação persistente de troponina ainda não está totalmente estudado3,4. Prevê-se que a utilização de troponina em consulta de IC avançada tenha valor prognóstico e possa servir para estratificação de risco1,5,6.
Caso clínicoMulher com 35 anos e diagnóstico de miocardiopatia hipertrófica (MCH) aos seis meses de idade. A sua mãe, também com o diagnóstico de MCH e atualmente com 52 anos de idade, foi submetida a transplante cardíaco aos 44 anos; uma tia materna teve morte súbita aos nove anos de idade. Sem outros antecedentes familiares relevantes.
Teve um internamento aos dez anos por lipotímia e aos 16 anos começou seguimento em consulta de cardiologia de adultos, estando nessa altura assintomática. O ecocardiograma (Eco) revelou ventrículo esquerdo (VE) com acentuada hipertrofia parietal assimétrica com fração de ejeção (FEVE) preservada, hipertrofia ventricular direita (VD) e válvula mitral displásica.
Esteve assintomática até aos 28 anos, altura em que foi internada (novembro de 2006) por enfarte agudo do miocárdio sem elevação do segmento ST (troponina I [Tn] máx 69ug/L). A coronariografia excluiu doença coronária. O ecocardiograma pré-alta mostrou dilatação VE ligeira, alterações segmentares de distribuição atípica e FEVE 55%. Iniciou bisoprolol, ramipril e foi referenciada para consulta de insuficiência cardíaca (IC).
A Figura 1 mostra o ECG da primeira consulta de IC. O estudo genético identificou mutações nos genes TCAP (c.C410T, p.Thr137lle) e MYH7 (c.C2167T, p.Arg723His). O estudo genético de sua mãe revelou três mutações, tendo uma em comum com a filha (MYH7).
Em abril de 2009, numa consulta de rotina, regista-se pela primeira vez disfunção sistólica VE (FEVE 42%) e elevação da Tn (4,5ug/L), ambos solicitados para estratificação prognóstica. A Tabela 1 ilustra a evolução dos níveis da Tn e da porção N terminal do pró-peptídeo natriurético do tipo B (NT-proBNP) e mostra a elevação persistente da Tn durante o seu seguimento em consulta.
Evolução dos níveis de Tn e NT-proBNP
Data | TnI (ug/L) | NT-proBNP (pg/ml) |
Mar/09 | 0,71 | 1.450 |
Abr/09 | 4,52 | 1.370 |
Jun/09 | 5,44 | 1.520 |
Nov/09 | 4,47 | 2.090 |
Jan/10 | 8,11 | 1.930 |
Mar/10 | 9,18 | 1.430 |
Jun/10 | 5,47 | 1.160 |
Nov/10 | 6,3 | 1.130 |
Jan/11 | 5,65 | 1.380 |
Mai/11 | 7,27 | 1.200 |
Set/11 | 2,21 | 2.170 |
Out/11 | 5,43 | 2.370 |
Dez/11 | 4,77 | 1.880 |
Jan/12 | 4,96 | 2.040 |
NTproBNP- N: terminal do peptídeo natriurético do tipo B; TnI: troponina I.
Manteve-se sempre assintomática até julho de 2009, altura em que referia queixas de IC classe II NYHA. Por agravamento progressivo das queixas de IC iniciou furosemida em novembro de 2009 e otimizou-se a terapêutica prognóstica. Repetiu nesse mês ecocardiograma que revelou, quando comparado com ecocardiograma prévio, agravamento da função sistólica do VE (FEVE<35%), redução da dP/dt e aumento do grau de regurgitação mitral e da PSAP (48mmHg). Foram também observadas alterações fenotípicas nas paredes posterior e lateral do VE com contorno endocárdico «mamilonado», semelhante à síndrome de não compactação do VE. Realizou ressonância magnética cardíaca tendo-se encontrado trombos no ápex do VD e apêndice auricular esquerdo. Foram observadas irregularidades na trabeculação miocárdica do VE, sem preencher critérios para não compactação do miocárdio. Iniciou anticoagulação oral com varfarina e INR alvo entre 2,0-3,0.
Com o objetivo da prevenção primária da morte súbita cardíaca, foi implantado CDI (maio de 2010) depois de excluir trombos por ecocardiografia transesofágica.
Estável até maio de 2011, quando tem agravamento clínico. O Eco em agosto de 2011 mostrou disfunção sistólica biventricular grave (FEVE 26%).
Em setembro de 2011 foi internada por tempestade arrítmica. Teve alta medicada com amiodarona.
Na avaliação para eventual transplante cardíaco efetuou cateterismo da artéria pulmonar (CAP), que mostrou hipertensão pulmonar importante (pressão na artéria pulmonar média de 50mmHg; resistências vasculares pulmonares [RVP] de 10,4U Wood, sem reversibilidade significativa com O2 de alto débito). Fez cintigrafia de ventilação/perfusão pulmonar que excluiu tromboembolismo pulmonar. Iniciou sildenafil.
Após seis meses, repetiu CAP sob sildenafil. Verificou-se descida das RVP de 15,6 para 3,6U Wood, usando óxido nítrico inalado.
Em abril de 2012 a doente estava em classe III NYHA. Foi transplantada em maio de 2012 sem intercorrências. Teve alta clinicamente estável.
O sildenafil foi eletivamente suspenso aos três meses após o transplante. A evolução clínica tem sido favorável, sem episódios de rejeição aguda ou infeções, encontrando-se atualmente em classe I da NYHA.
Discussão e conclusõesEste caso mostra uma forma rara de evolução da miocardiopatia hipertrófica. A prevalência de MCH em fase dilatada (end-stage) varia desde 2,4-15%, conforme as séries7; 5% dos doentes com MCH têm ≥2 mutações8,9 e a presença de >1 mutação é associada a aumento da gravidade da doença10.
Este caso também revela o significado prognóstico adverso da elevação persistente da Tn na IC crónica. A elevação da Tn pode dever-se a múltiplos fatores e está associada a pior prognóstico. Este caso sugere que o significado prognóstico possa ser a deterioração progressiva da função sistólica VE, dada a coincidência temporal entre o início desta e o início da elevação persistente da Tn. Apenas 10,4% dos doentes com IC têm Tn detetável (Tn >0,01ng/ml2); a elevação é mais marcada na IC aguda11–13 e somente 6,2% desses têm elevações >0,1ng/ml14.
Finalmente, este caso ilustra o valor da terapêutica vasodilatadora pulmonar como «ponte» para a transplantação cardíaca em doentes selecionados com IC e resistências vasculares pulmonares aumentadas15.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Os autores reconhecem o contributo essencial da Dr.a Isabel Gaspar, responsável da consulta de cardiogenética do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, que realizou o estudo genético descrito no caso clínico.