A Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC) publica neste número uma revisão sobre tumores cardíacos primários malignos (TCPM)1. Esta é uma série de 12 casos sucessivos, colhidos ao longo de 20 anos, num serviço nacional de alto débito, que terá tratado ao longo desse período um total de 23010 doentes, sendo que 123 se apresentaram com tumores cardíacos, entre benignos e malignos. Nesta série, os TCPM representaram 9,8% de todos os tumores envolvendo o coração.
Os TCPM são verdadeiramente raros e só estudos longos e multicêntricos logram conseguir números significativos, razão pela qual esta é uma série com bastante relevância. Numa série extensa, com cerca de 550 casos, os TCPM representavam cerca de 0,008% de todas as neoplasias malignas num registo de mais de sete milhões de tumores malignos2. A maior parte dos TCPM são sarcomas de diversos tipos (angiossarcomas, rabdomiossarcomas e leiomiossarcomas), representando cerca de 65‐68% de todos os TCPM, valor este que é muito uniforme na literatura. Seguem‐se os linfomas com 25‐27%, os mesoteliomas e os tumores epitelioides, com cerca de 5‐10% do total, sendo esta também a distribuição no artigo que inspirou este editorial1. O ligeiro predomínio feminino e a idade próxima dos 50 anos são também coincidentes para a maioria das séries reportadas.
Os TCPM são normalmente assintomáticos até fases avançadas da doença, causando sintomas pela invasão das cavidades cardíacas, com resultante perturbação da hemodinâmica. Assim sendo, têm uma apresentação tardia, frequentemente por dispneia, dor torácica, palpitações, edema ou derrame pericárdico. Nalguns casos nesta série, como generalizadamente na literatura, alguns doentes apresentam‐se já com invasão local, ultrapassando os limites do órgão e tendo já metastizado à distância, na altura do diagnóstico. É tipicamente o caso dos sarcomas mais comuns, os angiossarcomas, que frequentemente metastizam para o cérebro, o fígado, os pulmões ou os ossos, em fases iniciais.
O artigo não menciona, mas assume‐se que a maior parte dos diagnósticos foram de «massa cardíaca indeterminada», identificada por um ecocardiograma transtorácico ou mesmo transesofágico, mas estes métodos de imagem não permitem definir claramente os bordos de invasão e elucidar a estrutura, por exemplo, por não permitirem separar o tumor de eventuais trombos (um diagnóstico diferencial que por vezes se impõe). Hoje em dia, a tomografia computorizada, sincronizada com o ECG, permite uma melhor definição da estrutura e dos limites de invasão, bem como da proximidade da anatomia coronária3; no entanto, a ressonância magnética nuclear (RMN) é hoje, e em conjugação com as suas novas metodologias associadas (realce tardio e injeção de gadolinium), o método de eleição para diagnosticar e estadear, tanto localmente como à distância, os tumores cardíacos. De notar que, em alguns casos muito particulares, como no melanoma cardíaco metastático, a natureza paramagnética da melanina já permitiu, mesmo, identificar o tipo de tumor por RMN4.
Nalgumas outras séries, o diagnóstico histopatológico existe já no momento da intervenção, por biopsia endomiocárdica. Na realidade, face a resultados de sobrevida tão reduzida, particularmente nos sarcomas, seria útil investir nos métodos de imagem para melhor selecionar futuramente os candidatos a submeter a cirurgias, por vezes de enorme extensão; tal é particularmente verdade, como os autores também realçam, nos linfomas cardíacos primários, que tendem a responder bem à quimioterapia. Não é referido no artigo se foram excluídos doentes com base na não ressecabilidade local ou na invasão a distância, presumindo‐se uma atitude cirúrgica agressiva, por vezes, somente mesmo para debulking. Nestes casos, na nossa experiência, mesmo com quimioterapia associada, as taxas de recidiva local são muito expressivas.
Relativamente às técnicas cirúrgicas utilizadas, os resultados expressos no artigo da RPC1 expressam bem a qualidade cirúrgica do centro. Assim, em alguns casos foram realizadas ressecções extensas, algumas mesmo por bordos livres de lesão, a que se associaram reconstruções cardíacas valvulares e parietais extensas. Parece importante, como também realçam os autores, conseguir excisões com margens livres de tumor e, no nosso caso, temos recorrido, regularmente, a exames extemporâneos para diagnóstico do tipo do tumor e das margens de excisão, o que, apesar de demorar o tempo operatório, permitirá, quiçá, individualizar as estratégias. Alguns destes doentes apresentam uma vasoatividade própria, normalmente vasoplégia, situação que os autores parecem não ter encontrado, dado que todos os doentes recuperariam sem agentes inotrópicos.
Os autores referem ainda, mas na discussão, a transplantação cardíaca como uma alternativa possível, mas «discutível». No entanto, em casos selecionados, em que a localização seja estritamente miocárdica e sem metastização à distância, a transplantação cardíaca pode, e deve, ser encarada. Num caso pessoal, de fibrossarcoma do coração, surgido após radioterapia precordial, a transplantação cardíaca após debulking inicial de um tumor do ventrículo direito permitiu uma sobrevida que é hoje já de mais de 15 anos5.
Sobre os resultados, não nos surpreende a taxa de sobrevida limitada, que na série reportada é mesmo elogiosamente superior a outras na literatura, assim: na série reportada na RPC1, a sobrevida global para os TCPM foi aos dois anos de 41,7%, sendo para os sarcomas de 37,5%. Numa série extensa, de cerca de 550 TCPM, a sobrevida aos cinco anos, na era recente, foi de 19% para todos os TCPM, sendo de 11% para os sarcomas e de 34% para os linfomas2. É possível que a melhoria da quimioterapia adjuvante possa permitir vir, num futuro próximo, a melhorar este quadro, especialmente nos linfomas, já que para os sarcomas é particularmente negro, mesmo apesar da cirurgia feita por margem segura, secundada por quimioterapia e/ou radiação.
Em resumo, os TCPM são raros e parece justificada a necessidade de um registo à escala global, que reúna casuística suficiente para análise de impacto das diversas opções terapêuticas. Deve, igualmente, ser dada atenção ao diagnóstico, idealmente fornecendo um tipo histológico antes das intervenções. Para tal, a RMN e a PET scan, parecem hoje melhor posicionadas. Alternativamente, a deteção de marcadores tumorais em circulação poderia dar aí um contributo de grande utilidade. Se estas duas condições vierem a reunir‐se num futuro próximo, a par com a existência de um registo abrangente e a possibilidade de diagnósticos histopatológicos precoces, será então possível entender o comportamento biológico destes tumores e para eles individualizar esquemas terapêuticos integrados, como ocorre hoje para as outras neoplasias, de modo a melhorar‐lhes a sobrevida. O artigo publicado na RPC1 é um contributo muito significativo para esse conhecimento.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.