Há mais de 30 anos que a oclusão trombótica de uma artéria coronária foi identificada como o mecanismo fisiopatológico do enfarte do miocárdio. Em 1979, Peter Rentrop1 documentou pela primeira vez a reperfusão com sucesso de uma artéria coronária recanalizando o trombo oclusivo com um fio guia e infusão direta de estreptoquinase na artéria. No ano subsequente, DeWood2 demonstrava angiograficamente a regressão espontânea do trombo oclusivo em alguns doentes submetidos a coronariografia nas primeiras 24 horas do início de sintomas de enfarte agudo.
Evitar a formação de trombos coronários na doença coronária crónica e dissolvê‐los ou permitir a recanalização precoce na fase aguda de enfarte tornaram‐se desde então o principal objetivo terapêutico para redução da mortalidade.
Durante anos, a terapêutica fibrinolítica, inicialmente intracoronária e posteriormente endovenosa, dominou o tratamento da fase aguda de enfarte. Com o desenvolvimento progressivo da intervenção coronária percutânea, vários estudos aleatorizados e meta‐análises estabeleceram a angioplastia primária como a terapêutica preferencial para conseguir melhor e mais rápida recanalização coronária e reduzir a mortalidade. Paralelamente têm sido testadas e desenvolvidas várias terapêuticas antitrombóticas (anticoagulantes e antiagregantes) para uso adjuvante na fase inicial do enfarte, tanto no contexto da fibrinólise como, mais recentemente, da angioplastia primária, procurando melhorar ou manter a reperfusão coronária e reduzir as complicações.
Tem sido reconhecido que uma limitação da angioplastia primária é a obstrução microvascular ou fenómeno de no‐reflow. Consiste na diminuição da perfusão miocárdica a nível microvascular, apesar da recanalização da artéria coronária epicárdica, e tem como causas potenciais as lesões endoteliais, o vasoespasmo, a inflamação, as lesões de reperfusão nos miócitos e a embolização distal do trombo ou de restos de placa. A diminuição da perfusão miocárdica tem sido associada a enfartes mais extensos, com maior remodelagem ventricular esquerda e maior mortalidade. Deste modo, parece ser tão importante atingir rapidamente um fluxo epicárdico normal como conseguir uma perfusão miocárdica adequada.
Neste contexto, é intuitivo pensar‐se na remoção mecânica do trombo antes da intervenção coronária como uma das formas de reduzir a embolização distal e a obstrução microvascular. Vários estudos iniciais utilizaram dispositivos de proteção distal ou de aspiração mecânica dos trombos que, contudo, não demostraram eficácia clínica. A trombectomia por aspiração manual é, atualmente, a mais usada. Sendo simples e segura, a trombectomia aspirativa é referida como «razoável» e «a ser considerada» nas Guidelines americanas3 e europeias4 de tratamento por angioplastia do enfarte agudo do miocárdio, como recomendação classe IIa e nível de evidência B.
A mais importante evidência para o uso da aspiração manual foi fornecida pelo estudo aleatorizado TAPAS5, com 1071 doentes, que demonstrou melhoria dos índices de perfusão (grau de blush miocárdico, grau de resolução e persistência de elevação de ST, presença de ondas Q) e redução significativa da mortalidade e reenfarte ao fim de um ano. No entanto, o estudo é criticado por não ter suficiente poder estatístico para comprovar reduções de mortalidade, que foi excessivamente elevada no grupo placebo. Na meta‐análise publicada em 2013, de estudos aleatorizados de trombectomia aspirativa ou mecânica antes da angioplastia, comparativamente a angioplastia convencional, demonstrou‐se que só a aspiração manual se mostrou benéfica na redução de eventos adversos major, incluindo mortalidade, ao fim de 6‐12 meses6. No entanto, vários estudos reportaram resultados clínicos negativos, atribuídos a serem de um só ou de múltiplos centros, variação na seleção de doentes, tempos de isquemia muito variáveis, oclusões em diferentes artérias, etc.7–9. No estudo mais recente de resultados ao fim de um ano do registo TASTE10, com 7244 doentes, não se demonstrou redução da mortalidade de qualquer causa ou do endpoint composto de morte, hospitalização por enfarte ou trombose de stent a um ano, com a trombectomia aspirativa comparativamente à angioplastia primária isolada. Aguardam‐se os resultados do estudo aleatorizado TOTAL11, com 10 700 doentes, para determinar, definitivamente, o efeito da trombectomia manual.
De momento, embora o uso da trombectomia aspirativa tenha comprovado benefícios na perfusão miocárdica e na menor embolização distal, os resultados clínicos, incluindo na mortalidade, persistem conflituosos.
O trabalho de Luz et al.12, publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, aborda o problema da trombectomia aspirativa ineficaz, numa série de 417 doentes consecutivos de um único centro em que a técnica foi sistematicamente utilizada. Os autores definem ineficácia como a persistência de fluxo TIMI 0 ou 1 após a trombectomia que se verificou em 12,5% dos doentes. O estudo encontrou como preditores independentes da ineficácia o tempo desde o início de sintomas (tempo isquémico total) e o score anatómico SYNTAX de gravidade das lesões coronárias. O estudo demonstrou também que a trombectomia ineficaz não teve impacto na mortalidade a médio prazo.
Poucos estudos têm avaliado o problema da falência da trombectomia aspirativa. No estudo de Vink et al.13, com 1399 doentes, não foi possível atingir ou atravessar a lesão com o cateter de aspiração em 10,3% dos casos, sendo preditores independentes a tortuosidade dos vasos, a calcificação das artérias e as lesões em bifurcação. Em mais 27,3% não foi possível retirar o material trombótico, sendo preditores a idade dos doentes e a artéria circunflexa. No registo TASTE8 a trombectomia não foi possível de realizar em 16% dos casos e foi ineficaz em 11%. No ensaio INFUSE‐AMI14, exclusivamente em oclusões da descendente anterior, a ineficácia foi de 1,7%. Parece, assim, evidente que a trombectomia aspirativa poderá em certos casos não ser possível de executar ou ser ineficaz, sendo fatores importantes a composição e o volume dos trombos, bem como a anatomia coronária, não sendo também de excluir a experiência dos operadores.
Não surpreende que as características anatómicas das lesões possam influenciar o sucesso da trombectomia, sobretudo quando se usa a técnica em qualquer artéria com trombo oclusivo, e também não surpreende que o tempo de isquemia seja preditor de insucesso, sugerindo diferente organização do trombo, ou que o insucesso não tenha influência na mortalidade, face aos estudos publicados.
No estudo de Luz et al.12 o tempo médio de isquemia foi superior a cinco horas na trombectomia ineficaz (332,5 minutos – intervalo interquartil de 393 minutos) e significativamente inferior na trombectomia com sucesso (210 minutos, p=0,002). Por comparação, no estudo de Vink13, o tempo de isquemia foi de três horas, tanto para a trombectomia eficaz como para a ineficaz. Quanto às consequências clínicas, o no‐reflow é descrito no estudo de Luz et al.12 como ocorrendo em 35,3% dos casos de trombectomia ineficaz (versus 1,4% com sucesso da aspiração, p<0,001), o que poderá relacionar‐se com a classe Killip 3‐4 (p=0,031), o uso de balão intra‐aórtico (p=0,002) e a tendência para maior mortalidade hospitalar (p=0,073). Poderá especular‐se que se o número de doentes fosse superior a mortalidade seria significativa.
Mas o grande desafio atual do tratamento do enfarte agudo com supradesnivelamento de ST é não só restaurar o fluxo coronário normal, mas também melhorar a perfusão microvascular.
Tem‐se assistido nos últimos anos ao estudo exaustivo de terapêuticas antitrombóticas como adjuvantes da angioplastia primária. A fase aguda de enfarte com supra de ST representa um estado altamente pró‐trombótico e a inibição plaquetária precoce e efetiva é considerada fundamental para se atingir reperfusão miocárdica ótima. Considera‐se que a inibição dos recetores plaquetários P2Y12 (clopidogrel, prasugrel, ticagrelor) deve ser iniciada o mais cedo possível antes da angioplasta primária, embora o seu uso em fase pré‐hospitalar seja discutível. A limitação potencial é o aumento do risco hemorrágico com o uso simultâneo de inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa que, por isso, se usam cada vez menos. A decisão quanto à terapêutica antitrombótica ideal não é unânime.
Desde 1999 que foi descrita a administração intracoronária de inibidores da GP IIb/IIIa como forma de desagregação dos trombos e diminuição de eventos adversos no enfarte agudo15. A administração intracoronária teria maior benefício do que a administração endovenosa pela maior concentração do fármaco e este benefício seria ainda superior se fosse administrada localmente na artéria alvo por cateteres especiais16.
O recente ensaio INFUSE‐AMI14 comparou de modo aleatorizado a trombectomia aspirativa manual e a infusão intracoronária local de bólus de abciximab, com a angioplastia primária convencional, em 452 doentes com enfartes exclusivamente anteriores. Só a infusão de abciximab demonstrou diminuição da área de enfarte. Os doentes que fizeram trombectomia, com ou sem abciximab, demonstraram a mais alta taxa de fluxo TIMI 3 e os que fizeram trombectomia e abciximab tiveram a maior diminuição da área de enfarte17. Comparando os doentes com reperfusão inferior ou superior a três horas, o tempo de isquemia mais baixo foi um importante preditor da redução da área de enfarte e de mortalidade ao fim de um ano18. Noutro recente estudo, embora de pequena dimensão, confirmou‐se a melhoria da perfusão miocárdica com o uso sinergístico de abciximab intracoronário e trombectomia aspirativa19.
Na mesma lógica e como complemento nos casos de grandes trombos e aspiração manual mal sucedida, até a fibrinólise intracoronária com baixas doses de uroquinase, tenecteplase ou alteplase tem sido recentemente descrita20,21.
Surpreende no estudo de Luz et al.12 que, embora a aspirina 300mg e o clopidogrel 600mg tenham sido dados a todos os doentes antes da angioplastia, a utilização de inibidores da glicoproteína IIb/IIIa tenha sido globalmente reduzida e semelhante nos doentes com trombectomia ineficaz (38%) e eficaz (33,5%). No Registo Nacional de Intervenção Coronária Percutânea com 3311 doentes submetidos a trombectomia entre janeiro de 2006 e dezembro de 2012 (em 46,1% das angioplastias em 2012), o uso de inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa foi igualmente baixo (36,9%) nos doentes que fizeram trombectomia, mas significativamente superior ao seu uso em doentes com angioplastia primária isolada (18,9%, p=0,001)22.
Considerando que, apesar dos avanços significativos na técnica e no equipamento usado na angioplastia primária, incluindo a trombectomia aspirativa manual, continua a existir reperfusão subótima em cerca de 20‐30% dos doentes, a terapêutica farmacológica adjuvante continuará a ter protagonismo. Mecanisticamente e para o cardiologista de intervenção, o uso combinado de trombectomia aspirativa e de inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa intracoronária e intralesão é aliciante para otimização da perfusão microvascular. O desafio será o uso judicioso e concomitante dos anticoagulantes e dos potentes antiagregantes plaquetares que permitam uma relação eficácia‐risco positiva para o doente individual. Entretanto, o aspeto mais importante no tratamento atual do enfarte do miocárdio com supra de ST continua a ser a reperfusão o mais precoce possível.