Um recém-nascido do sexo masculino apresenta bloqueio aurículo-ventricular completo pelo que foi implantado um pacemaker VVI ao 2.° dia de vida.
Três anos depois o doente desenvolve disfunção ventricular esquerda, regurgitação mitral grave e insuficiência cardíaca progressiva apesar da terapêutica médica otimizada. Nesse contexto efetuamos terapêutica de ressincronização (CRT). Este é o primeiro relato português de implantação de CRT em idade pediátrica.
Um ano após a implantação o ecocardiogrma mostra melhoria da fração de ejeção, redução do diâmetro telediastólico do ventrículo esquerdo e redução muito significativa da regurgitação mitral. A classe funcional de New York Heart Association melhorou de III-IV para I.
A 2-day-old male infant required a conventional VVI pacemaker for congenital atrioventricular block.
Three years later, he developed progressive heart failure due to left ventricular (LV) dysfunction and mitral regurgitation despite optimized medical treatment, and a cardiac resynchronization therapy (CRT) device was implanted. This is the first Portuguese report of CRT in a pediatric patient.
One-year echocardiographic follow-up showed that LV shortening fraction had improved and LV end-diastolic dimension and mitral regurgitation had decreased. New York Heart Association class had improved from III-IV to I at 1-year follow-up.
O pacing ventricular direito tem sido a terapêutica padrão para crianças com bloqueio aurículo-ventricular (BAV) de segundo grau avançado ou bloqueio completo. Contudo o pacing ventricular direito permanente pode estar associado a disfunção do ventrículo esquerdo (VE) em especial nesse grupo etário1. O desenvolvimento de insuficiência cardíaca e miocardiopatia dilatada ocorre num número significativo de crianças submetidas a pacing ventricular direito2–3.
A eficácia da terapêutica de ressincronização cardíaca (CRT) para doentes adultos com disfunção sistólica grave do ventrículo esquerdo e bloqueio completo de ramo esquerdo encontra-se amplamente estabelecida4–8.
No subgrupo de doentes com pacing ventricular direito convencional, a conversão para um sistema de pacing biventricular mostrou melhorar a função ventricular esquerda9. Porém, a utilidade desta terapêutica em idade pediátrica tem dados escassos e com origem em estudos não aleatorizados com populações muito heterogéneas10–16.
Descrevemos neste artigo a nossa experiência inicial na implantação de CRT em idade pediátrica numa criança de 3 anos anteriormente submetida a pacing ventricular direito permanente por bloqueio aurículo-ventricular completo congénito que desenvolveu insuficiência cardíaca refratária. Trata-se da primeira implantação em Portugal numa idade tão jovem.
Caso clínicoCriança de 3 anos de idade, sexo masculino, 12Kg. Filho de mãe com lúpus eritematoso sistémico. Tinha antecedente de BAV completo detetado no período pré-natal (27.a semana de gravidez). A gravidez decorreu sem outras intercorrências e o parto foi de termo. No período pós-natal imediato apresentou quadro de hipotonia e hipoatividade em consequência de ritmo de escape ineficaz pelo que foi implantado pacemaker VVI (Microny II SR+, St. Jude) ao segundo dia de vida com elétrodo epicárdico bipolar implantado na parede anterior do ventrículo direito (VD) e gerador em loca subxifoideia.
A criança permaneceu desde a implantação dependente de pace e sem sincronia aurículo-ventricular (AV). Os ecocardiogramas seriados eram normais, apresentando função ventricular esquerda conservada e ausência de alterações valvulares estruturais ou funcionais significativas. Também do ponto de vista clínico houve uma boa evolução e um normal desenvolvimento estato-ponderal, tendo sempre permanecido sem medicação.
Aos 3 anos de idade apresentou quadro de insuficiência cardíaca congestiva, tendo sido internada em classe funcional New York Heart Association (NHYA) III-IV. A telerradiografia de tórax mostrava marcada cardiomegalia e sinais de congestão pulmonar (Figura 1). O eletrocardiograma (ECG) mostrava dissociação AV com ritmo sinusal e pace ventricular direito com um QRS com a duração de 180ms (Figura 2). O ecocardiograma apresentava VE dilatado [diâmetro telediastólico (VED): 56mm; volume telediastólico (VTD): 90mL] com disfunção sistólica grave (Fej biplano: 20%) por hipocinésia generalizada. O VD tinha boa função sistólica global (Avaliação 2D, TAPSE, Strain). A válvula mitral não apresentava alterações estruturais, mas existia regurgitação funcional moderada a grave. Existia ainda dissincronia AV avaliada por Doppler pulsado espectral do fluxo anterógrado da válvula mitral (em BAV completo) e dissincronia interventricular avaliado por Doppler pulsado espectral do fluxo anterógrado da câmara de saída do VE e VD. A dissiscronia intraventricular estava também presente e era facilmente identificada em 2D/modo M pela presença de movimento septal multifásico designado habitualmente por septal flash. (Figuras 3–5)
Apesar da otimização da terapêutica médica que incluiu captopril 10mg 8/8H, carvedilol 0,15mg 12/12h, espironolactona 12,5mg/dia e furosemida 10mg 8/8h endovenoso não houve uma evolução clínica favorável, continuando em classe NYHA III.
Motivados pela presença de um QRS tão alargado, de sinais macroscópicos de dissincronia intraventricular (septal flash), pela presença de dissociação AV e pela etiologia da disfunção ventricular optou-se por efetuar up-grade do sistema de pacemaker VVI para CRT.
O doente foi submetido a toracotomia esquerda sob anestesia geral. Procedeu-se à explantação do gerador VVI e do elétrodo ventricular direito que apresentava valores de impedância instáveis no período intraoperatório por provável danificação durante o procedimento. De seguida foram implantados três elétrodos bipolares (CapSure Epi, Medtronic) na aurícula direita, na parede inferior do VD e no segmento médio-basal da parede lateral do VE. O gerador DDD biventricular (InSync® III CRT-P, Medtronic) foi implantado em local subcostal (Figura 6).
O gerador foi programado em DDD com frequência de 90ppm e os intervalos de sincronia otimizados por ecocardiografia.
O pós-operatório imediato foi complicado por episódio de taquicardia ventricular mantida sem pulso com conversão espontânea durante as manobras de reanimação e de pneumotoráx esquerdo com necessidade de drenagem.
Após a resolução destas intercorrências houve melhoria clínica significativa tendo tido alta hospitalar 13 dias após a implantação de CRT.
Atualmente, já com 11 meses de seguimento, a criança encontra-se assintomática (NYHA-I) mantendo apenas terapêutica com captopril e carvedilol.
O ECG mais recente apresenta sincronia AV e QRS com 120ms (Figura 7).
Houve uma ligeira melhoria das dimensões do ventrículo esquerdo (VED: 53mm; VTD: 88mL) e melhoria significativa da função sistólica (Fej biplano: 38%). (Figuras 8 e 9). Assistimos também a um redução muito significativa da gravidade da regurgitação mitral que é agora apenas ligeira (Figura 10).
A terapêutica de ressincronização foi efetiva no caso clínico apresentado tanto no que diz respeito ao alívio de sintomas de insuficiência cardíaca como à melhoria da função ventricular esquerda e da insuficiência mitral.
O CRT determinou remodelagem reversa elétrica (encurtamento do QRS) e mecânica (redução do volume telediastólico e aumento da fração de ejeção). Paralelamente observamos melhoria clínica muito significativa no que à insuficiência cardíaca diz respeito. Este foi o primeiro caso em Portugal de implantação de um sistema de ressincronização em idade pediátrica.
O pace ventricular direito resulta em dissincronia ventricular que, na maioria das crianças, é apenas ligeira e sem impacto hemodinâmico ou clínico significativo. Contudo, um número não desprezível de crianças pode desenvolver miocardiopatia dilatada em resultado da ativação elétrica excêntrica do ventrículo como pode acontecer na pré-excitação por vias acessórias laterais direitas em doentes pediatricos1–3,17.
A indicação para CRT na população pediátrica não está validada. Poucas crianças com miocardiopatia dilatada apresentam os critérios habituais recomendados pelas guidelines dos adultos (Fej <3 5%; BCRE e QRS>120ms; NYHA>II)18.
Os dados que mais apoiaram a indicação para CRT no nosso caso foram a largura do QRS, a presença de dissociação AV e dissincronia mecânica em 2D -septal flash- e a etiologia da disfunção ventricular. Aliás a cardiomiopatia induzida pelo pace no VD em doentes pediátricos pode ser um subgrupo ideal para CRT como tem sido demonstrado por algumas pequenas séries de doentes que apresentaram uma taxa de respondedores superior ao habitual10,11,14,15,19.
As dificuldades técnicas e complicações durante a implantação de CRT em doentes pediátricos são os aspectos mais sensíveis desta intervenção. A taxa de complicações imediatas nessa população pode variar entre 10 e 19%14,16 e a taxa de mortalidade pode chegar a 5% em algumas séries14. Em crianças tão pequenas, como no nosso caso clínico, a cirurgia sob anestesia geral é a única abordagem que permite implantar os três elétrodos o que se associa a um risco acrescido de complicações.
Efetivamente, foram registadas duas complicações − um episódio de taquiarritmia ventricular e pneumotórax esquerdo −, também estas situações já descritas neste tipo de procedimentos.
ConclusãoO pace ventricular direito continua a ser a terapêutica preferida em crianças com BAVC. O CRT apresenta evidências crescentes do seu papel no tratamento de crianças que desenvolvem miocardiopatia dilatada secundária a pacing ventricular direito.
O CRT poderá até constituir uma alternativa bastante mais satisfatória ao pacing convencional, contudo escasseiam dados dos resultados a longo prazo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.