No laboratório de cardiologia de intervenção é possível efetuar avaliação do significado funcional de lesões coronárias com recurso à determinação da fração do fluxo de reserva coronária por guia de pressão (FFR) e assim ultrapassar uma das limitações principais da angiografia convencional.
O objetivo foi analisar a evolução clínica a longo prazo de doentes submetidos a cateterismo cardíaco no qual se detetaram estenoses coronárias de gravidade intermédia (50-70%) e nas quais a intervenção foi diferida com base no resultado de FFR <0,80.
MétodosEntre maio de 1999 e dezembro de 2009 foram avaliadas por FFR 300 lesões em 231 doentes (idade média 65±10 anos, 68% sexo masculino e 75% doença multivaso). Das 300 lesões estudadas por FFR, a intervenção foi diferida em 282 (94%), tendo sido intervencionadas 18, por apresentarem FFR <0,80. Avaliámos a ocorrência de eventos cardiovasculares major (MACE), definidos como o end point combinado de morte cardiovascular, síndrome coronária aguda (SCA) não fatal e revascularização da lesão alvo (TLR).
ResultadosAo longo de uma mediana de seguimento de 637 [IQR 455-1160] dias ocorreram 15 (6,5%) MACE no subgrupo de doentes com lesão alvo diferida com base no valor do FFR: uma morte cardiovascular, quatro internamentos por SCA e 14 TLR (12 doentes revascularizados de forma percutânea e dois submetidos a CABG). A sobrevida livre de MACE a um ano foi de 97,8%.
ConclusãoOs achados deste estudo relativo a uma população do mundo real consolidam a tendência atual para que a decisão de intervir se baseie em critérios funcionais e não meramente anatómicos, que garantam segurança e eficiência.
The functional significance of coronary lesions can be assessed in the cardiac catheterization laboratory by determination of fractional flow reserve (FFR), thus overcoming one of the major limitations of conventional angiography. The aim of this study was to analyze the long-term clinical course of patients with intermediate coronary stenosis (50-70%) deferred for intervention based on FFR <0.80.
MethodsBetween May 1999 and December 2009, 300 lesions in 231 patients (mean age 65±10 years, 68% male and 75.3% with multivessel disease) were studied by FFR. Intervention was deferred in 282 (94%) lesions and 18 were treated based on FFR <0.80. We assessed the occurrence of major adverse cardiovascular events (MACE), defined as cardiovascular death, non-fatal acute coronary syndrome and target lesion revascularization (TLR).
ResultsDuring a median follow-up of 637 days (interquartile range 455-1160), there were 15 (6.5%) MACE in the subgroup of patients with target lesion intervention deferred based on FFR: one cardiovascular death, four hospitalizations for acute coronary syndrome and 14 TLR (12 patients were treated percutaneously and two underwent coronary artery bypass grafting). MACE-free survival at one year follow-up was 97.8%.
ConclusionThese results, in a real-world population, support the current trend to base the decision to treat on functional rather than purely anatomical criteria, in order to improve safety and efficiency.
A angiografia desempenha um papel crucial no diagnóstico e tratamento da doença coronária. No entanto, a coronariografia, sendo uma luminografia, apresenta importantes limitações, nomeadamente a impossibilidade de avaliação da parede arterial e do significado funcional da gravidade da estenose. Estudos angiográficos complementados por ecografia intravascular (IVUS) mostram uma má correlação entre a anatomia e a avaliação fisiológica do significado hemodinâmico das lesões1–3.
A isquémia indutível por testes não invasivos é um dos principais fatores prognósticos em doentes com cardiopatia isquémica e deveria ser documentada antes do doente ser submetido a estratégias invasivas4,5. Sabe-se também que, na presença de estenoses epicárdicas de gravidade angiográfica semelhante, a existência ou não de isquémia é decisiva na evolução a médio prazo6.
Por outro lado, em doentes com doença multivaso, a acuidade diagnóstica dos testes de perfusão miocárdica é insuficiente para a análise da importância relativa de cada uma das lesões7. A mesma limitação existe quando queremos discriminar o significado funcional de diferentes lesões no mesmo vaso.
Atualmente, muitos dos procedimentos percutâneos são realizados na ausência de isquémia documentada sendo que em registos internacionais 54,5% dos doentes chegaram ao laboratório da hemodinâmica sem avaliação da isquémia não invasiva8.
No laboratório de cardiologia de intervenção é possível efetuar avaliação do significado funcional de lesões coronárias, com recurso à determinação da fração do fluxo de reserva coronária (FFR), por guia de pressão. A indicação primária para avaliação do FFR é a determinação do significado fisiológico de lesões coronárias de gravidade angiográfica intermédia (50-70%)9.
Esta variável traduz a percentagem de fluxo sanguíneo através de uma estenose em relação ao fluxo existente na ausência dessa estenose e pode ser calculada com base na relação da pressão média distal à estenose com a pressão média a nível da aorta (representando a pressão a montante da estenose), durante hiperémia máxima induzida farmacologicamente, habitualmente com adenosina10,11. Por não ser influenciada pela presença de doença a nível da microcirculação, a FFR apenas avalia o significado da doença coronária a nível epicárdico, local onde a intervenção coronária percutânea poderá ser efetuada. Outra característica desta variável é apresentar uma resolução espacial única, ao conseguir analisar individualmente o significado de cada lesão, em cada vaso11.
Na ausência de lesões epicárdicas, o valor normal de FFR é de um e o valor de cut-off para deteção de isquémia com uma sensibilidade de 90% e especificidade de 100% é 0,75. Valores inferiores a 0,75 estão praticamente sempre associados a isquémia miocárdica, enquanto estenoses associadas a FFR maior que 0,80 quase nunca se associam a isquémia, criando uma zona cinzenta para valores de FFR entre 0,75-0,8012. De forma a aumentar a sensibilidade da deteção de isquémia para próximo de 100%, tem sido utilizado mais recentemente o valor de cut-off de FFR de 0,8013,14.
O estudo DEFER mostrou que é seguro diferir o tratamento de lesões coronárias, quando as mesmas não são funcionalmente significativas15,16 e, mais recentemente, o estudo FAME mostrou que na presença de doença multivaso o tratamento das lesões epicárdicas, guiado pela avaliação do FFR, reduziu as complicações isquémicas a médio prazo, quando comparado com o tratamento guiado pela angiografia17.
Deste modo, o objetivo desta análise foi avaliar a evolução clínica, a longo prazo, de doentes submetidos a cateterismo cardíaco numa unidade de cardiologia de intervenção, no qual se detetaram estenoses coronárias de gravidade intermédia (50-70%), situação em que é duvidosa a indicação de intervenção e nos quais esta foi diferida com base na presença de um resultado de FFR ≥0,80.
Material e métodosTipo de estudoTratou-se de um estudo observacional, analítico, de coorte e retrospetivo. Os dados clínicos foram recolhidos da base de dados da Unidade de Cardiologia de Intervenção do Hospital Garcia de Orta, integrada no Registo Nacional de Cardiologia de Intervenção.
Seleção da amostraEntre maio de 1999 e dezembro de 2009, foram incluídos nesta análise todos os doentes portadores de lesões de gravidade intermédia, definida como estenoses de 50-70%, avaliados de forma consecutiva por FFR. Foi realizada uma análise dos eventos cardiovasculares major no subgrupo de doentes cuja intervenção percutânea foi diferida por apresentarem um valor de FFR >0,80.
Cálculo da fração do fluxo de reserva coronáriaA avaliação por FFR foi realizada com recurso ao fio guia de pressão 0,014” (Radi Medical System, Uppsala, Suécia), introduzido através de um cateter guia 6 Fr previamente posicionado no ostio da coronária. Efetuou-se calibração do fio guia segundo instruções do fabricante, assim como a equalização de pressões entre o cateter guia e a guia de pressão, quando ambos colocados no ostio da coronária. Após posicionamento do fio distal à lesão, foi induzida hiperémia através de administração de adenosina, por via intracoronária ou endovenosa, de acordo com decisão do operador. Por via intracoronária foi administrado bólus de 50μg na coronária direita e 80μg na coronária esquerda. Por via endovenosa a hiperémia foi obtida por infusão de 140μg/kg/min durante dois minutos. A decisão de diferir intervenção ocorreu sempre que o valor de FFR obtido foi ≥0,80.
Seguimento e eventos clínicosO seguimento foi elaborado com base nos registos efetuados nas consultas de seguimento a que os doentes da unidade são submetidos, tendo em alguns casos sido efetuado contacto telefónico. Em todos os doentes foi pesquisada a ocorrência de eventos cardíacos major (MACE): morte cardíaca, síndrome coronária aguda e revascularização da lesão alvo (o que tivesse ocorrido primeiro).
As mortes foram classificadas como cardíaca ou não cardíaca, com todas as mortes consideradas de etiologia cardíaca, a menos que uma causa não cardíaca inequívoca fosse estabelecida.
Até ao ano de 2007 o enfarte agudo do miocárdio foi caracterizado segundo a definição da The Joint European Society of Cardiology/American College of Cardiology Committee18, passando nesse ano a ser caracterizado pela definição da ESC/ACCF/AHA/WHF Task Force for the Redefinition of Myocardial Infarction119.
Revascularização da lesão alvo incluiu reintervenção percutânea ou cirúrgica no segmento previamente tratado envolvendo 5mm dos seus bordos proximal ou distal.
Análise estatísticaA análise estatística foi efetuada com recurso ao programa SPSS versão 13.0 (SPSS Inc. Chicago, IL). As variáveis contínuas são caracterizadas por medidas de tendência central e dispersão (média e desvio padrão), ou medianas com os respetivos intervalos interquartis no caso de não seguirem o padrão da normalidade ou semelhança de variâncias. As variáveis categóricas são descritas por frequências e percentagens. Efetuou-se uma análise de sobrevida livre de MACE a um ano e ao longo do seguimento total pelo método de Kaplan Meier.
ResultadosPopulaçãoA amostra foi constituída por 231 doentes (300 lesões), tendo sido analisada uma lesão em 169 (73%) doentes, duas em 55 (24%) e três em sete (3%) doentes. Das 300 lesões estudadas por FFR a intervenção foi diferida em 282 (94%) lesões, tendo sido intervencionadas 18 com sucesso, por apresentarem FFR <0,80 (0,71±0,08). A média de idades foi de 65±10 anos, 158 (68%) eram do sexo masculino e 174 (75%) apresentavam doença multivaso. A referenciação clínica foi por angina estável em 65% dos doentes, 25% por síndrome coronária aguda (SCA) e 10% no contexto de isquémia silenciosa avaliada por teste não invasivo. Observou-se prevalência elevada de diabetes (29%), hipertensão arterial (81%), dislipidemia (68%) e de tabagismo (46%). Ainda, 30% apresentavam antecedentes de enfarte agudo do miocárdio (EAM) e 40% antecedentes de angioplastia coronária (ICP). A função ventricular esquerda estava conservada (FE >50%) em 73% dos doentes. As características demográficas da amostra encontram-se discriminadas na Tabela 1.
Características demográficas e clínicas (N=231)
Idade (anos±dp) | 65±10 |
Sexo masculino (n, %) | 158 (68) |
Fatores de risco cardiovascular, n (%) | |
Diabetes mellitus | 68 (29) |
Hipertensão | 187 (81) |
Dislipidemia | 157 (68) |
Ex-fumador | 69 (30) |
Fumador | 37 (16) |
Antecedentes clínicos, n (%) | |
EAM | 69 (30) |
PCI | 92 (40) |
CABG | 2 (1) |
ICC | 9 (4) |
IRC | 20 (9) |
FEVE > 50% (n, %) | 169 (73) |
Apresentação clínica, n (%) | |
Isquémia silenciosa | 23 (10) |
Angor estável | 149 (65) |
Angor instável | 22 (10) |
EAMSSST | 37 (16) |
Doença multivaso, n (%) | 174 (75) |
CABG: cirurgia de revascularização coronária; CD: coronária direita; CX: circunflexa; DA: descendente anterior; EAM: enfarte agudo do miocárdio; EAMSSST: enfarte agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST; FEVE: fração de ejeção ventricular esquerda; FFR: fração do fluxo de reserva coronário; ICC: insuficiência cardíaca congestiva; IRC: insuficiência renal crónica; PCI: intervenção coronária; TC: tronco comum.
Todas as 282 lesões diferidas após avaliação por FFR apresentavam estenoses entre 50-70%, por avaliação visual. Nove (3%) encontravam-se localizadas no tronco comum, 147 (52%) na descendente anterior, 57 (20%) na circunflexa e 69 (25%) na coronária direita. O valor médio de FFR foi de 0,88±0,07 (Tabela 2).
Lesões coronárias e FFR
N.° total de lesões avaliadas, n | 300 |
N.° total de lesões diferidas, n (%) | 282 (94) |
Localização das lesões diferidas, n (%) | |
TC | 9 (3) |
DA | 147 (52) |
CX | 57 (20) |
CD | 69 (25) |
FFR médio das lesões diferidas (m±dp) | 0,88±0,07 |
FFR médio das lesões intervencionadas (m±dp) | 0,71±0,08 |
CD: coronária direita; CX: circunflexa; DA: descendente anterior; FFR: fração do fluxo de reserva coronário; TC: tronco comum.
Foram obtidos dados de seguimento para todos os doentes com uma mediana de seguimento de 637 dias (IQR 455-1.160 dias, mínimo 33, máximo 4070 dias). Durante o seguimento ocorreram 15 (6,5%) eventos cardiovasculares relacionados com a lesão alvo diferida com base no valor de FFR (Tabela 3). Neste subgrupo de doentes, quatro apresentaram internamentos por síndrome coronária aguda: dois por angina instável, um por enfarte sem supradesnivelamento do segmento ST (EAMSSST) e um por enfarte com supradesnivelamento do segmento ST (EAMSST), tendo todos sido submetidos a angioplastia coronária. Nos doentes com angina instável e com EAMSST comprovou-se o agravamento angiográfico da lesão. No doente com EAMSSST observou-se presença de trombo na artéria da lesão alvo. No entanto, tratava-se de um doente portador de prótese valvular mecânica em posição aórtica que suspendeu a terapêutica anticoagulante, apresentando INR subterapêutico1,3.
Eventos adversos no seguimento
N=231 dts | |
MACE, n (%) | 15 (6,5) |
Morte causa cardíaca, n (%) | 1 (0,4) |
Síndrome coronária aguda, n (%) | 4 (1,7) |
EAMSST | 1 (0,4) |
EAMSSST | 1 (0,4) |
Angor instável | 2 (0,9) |
Revascularização da lesão alvo, n (%) | 14 (6,1) |
ICP no contexto de SCA | 4 (1,3) |
ICP no contexto de angor estável+teste de isquémia não invasivo | 8 (3,5) |
CABG | 2 (0,9) |
CABG: cirurgia de revascularização coronária; EAMST: enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST; EAMSSST: enfarte agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST; FFR: fração do fluxo de reserva coronário; ICP: intervenção coronária percutânea; SCA:síndrome coronária aguda.
Dois doentes foram submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica, um por progressão da lesão alvo e teste de isquémia não-invasivo positivo. No outro, a cirurgia cardíaca foi realizada para substituição de válvula aórtica por estenose aórtica grave, tendo sido realizada, por opção do cirurgião, pontagem de mamária interna esquerda para a artéria descendente anterior, que apresentava lesão intermédia quantificada visualmente em 60% com FFR 0,90, sem que se tenha verificado progressão angiográfica da lesão à data da cirurgia.
Os restantes oito doentes foram submetidos a angiografia por referirem angor e apresentarem teste de isquémia positivo (cintigrafia miocárdica), tendo sido submetidos a ICP. Nestes doentes não foi efetuado FFR para comprovar a progressão da doença, tendo sido intervencionados por decisão do operador, baseada na angiografia (sem agravamento angiográfico definitivo) e testes de isquémia não invasivos. Num destes doentes o tratamento foi decidido com base na avaliação morfológica por ecografia intracoronária.
Verificou-se a ocorrência de uma morte súbita, seis meses após cateterismo, à qual se atribuiu causa cardíaca, apesar de não se ter efetuado autópsia. Tratava-se de um doente de 65 anos com lesões de 50% na descendente anterior proximal e de 40% após origem da circunflexa. A avaliação por FFR foi de 0,84 na lesão da DA e 0,98 na lesão da Cx, pelo que se optou por manter em terapêutica médica (Figura 1).
Nesse período, verificaram-se sete mortes de causa não cardíaca (quatro mortes por neoplasia, duas por acidente vascular cerebral isquémico, uma associada a hemorragia digestiva).
A Figura 2 representa a curva de sobrevida livre de eventos cardiovasculares major ao longo do seguimento clínico.
A um ano de seguimento (obtido em 99,6% dos doentes), a sobrevida livre de MACE foi de 97,8% (0,4% de morte cardiovascular, 0,9% de SCA e 1,7% de TLR) (Figura 3).
DiscussãoO estudo FAME demonstrou que a abordagem terapêutica de doentes com doença multivaso, guiada por avaliação funcional por FFR (tratamento com stents fármaco-ativos, apenas de lesões com FFR <0,80), comparativamente com o tratamento guiado pela angiografia, reduziu a taxa combinada de morte, enfarte do miocárdio e revascularização da lesão alvo aos dois anos17. Desta forma, esse estudo alterou a abordagem clássica do tratamento percutâneo da doença multivaso.
Contudo, frequentemente nos estudos aleatorizados, a população estudada constitui uma fração selecionada dos doentes tratados nos laboratórios de cardiologia de intervenção, não refletindo o mundo real. Foi objetivo do presente estudo analisar a nossa experiência na evolução clínica a longo prazo dos doentes com lesões coronárias consideradas intermédias por angiografia invasiva (50-70%), numa população alargada e não selecionada, em que a intervenção foi diferida com base nos resultados FFR.
No estudo FAME17, que incluiu 509 doentes aleatorizados para a estratégia de angioplastia guiada por FFR, apesar de se terem verificado, ao fim de dois anos, nove casos de enfarte do miocárdio tardio, apenas um deles (0,2%) ocorreu com origem numa lesão diferida, sendo que os restantes oito (1,6%) estiveram relacionados com stents implantados noutras lesões ou com lesões de novo. Também, das 53 revascularizações observadas no seguimento, apenas 16 (3,2%) se efetuaram em lesões diferidas, sendo que os restantes casos se deveram a restenose de stent ou a lesões de novo.
No presente estudo, com uma mediana de seguimento de 21 meses, ocorreu uma morte presumivelmente cardíaca (0,4%) e observou-se revascularização de lesões inicialmente diferidas com base no FFR em 14 doentes (6,1%), incluindo dois doentes com angina instável, dois doentes com enfarte agudo do miocárdio e dois submetidos a revascularização cirúrgica. Nos restantes doentes revascularizados percutaneamente, apesar de não se ter confirmado progressão da doença por FFR, havia sintomatologia associada a teste de isquémia não invasivo positivo, o que justificou a intervenção.
Apesar de uma taxa de eventos mais elevada associada à lesão em que a intervenção foi diferida, quando comparada com a do estudo FAME, o nosso estudo confirma a segurança em basear a decisão terapêutica no FFR. O número mais elevado de eventos ocorridos pode, em parte, justificar-se por se tratar de um registo que reflete a nossa prática clínica diária, com uma população não controlada, fora de protocolos, em que nalguns casos a decisão terapêutica de intervenção se justificou por manutenção dos sintomas sem agravamento angiográfico ou indicação eletiva em contexto de cirurgia valvular concomitante.
Registos e estudos observacionais retrospetivos aplicados a populações do mundo real também relatam taxas de revascularização da lesão diferida superior à do FAME. Rieber et al.20, num seguimento a cinco anos de 56 doentes com angina crónica e lesões intermédias e fazendo uso de um limiar de decisão de FFR igual ou superior a 0,75 descreveu uma morte cardíaca, quatro mortes não cardíacas e cinco revascularizações relacionadas com a lesão alvo (8,9%).
Nos estudos iniciais, nomeadamente no DEFER, o valor de FFR considerado como limiar de isquémia foi de 0,7512,15. No FAME14, de forma a não deixar por tratar lesões isquémicas, os autores optaram por um limiar de 0,80. No nosso estudo o valor considerado foi também de 0,80.
O prognóstico a um ano nos doentes com lesões inicialmente diferidas com base no FFR >0,80 vem reforçar a segurança de guiarmos a nossa estratégia de revascularização de lesões intermédias com base no FFR, uma vez que só ocorreram cinco eventos combinados major associados à lesão diferida (2,2%): 0,4% de morte cardiovascular, 0,9% de síndrome coronária aguda e 1,7% de TLR.
Outra consideração importante, que pode inferir-se da utilização de FFR como guia para a decisão de tratar ou diferir a intervenção, é a implicação económica que esta tecnologia representa. Em paralelo ao estudo FAME foi efetuada uma avaliação económica do tipo custo-utilidade, que demonstrou que a decisão baseada no FFR é mais custo-efetiva do que a baseada na angiografia. A FFR, para além de apresentar melhores resultados clínicos, ainda diminuiu os custos por evitar intervenções21. Porém, não existe até à data uma análise custo-efetividade de FFR adaptada ao sistema de saúde nacional.
Considerações finaisApesar dos bons resultados obtidos, algumas limitações poderão ser apontadas ao presente estudo. O facto de as lesões terem sido avaliadas por avaliação angiográfica visual e não por análise angiográfica quantitativa (QCA), retira critérios de objetividade à avaliação das mesmas podendo algumas terem sido sobre ou subestimadas. Também, o facto de ser um registo retrospetivo com inclusão indiscriminada de todos os doentes pode ser considerado um ponto menos forte. Por último, ter sido realizado num único centro é um fator que poderá diminuir a validade externa, representando unicamente a experiência desse centro e dos seus operadores.
ConclusõesOs achados deste estudo relativo a uma população do mundo real consolidam a tendência atual para que a decisão de intervir se baseie em critérios funcionais e não meramente anatómicos, que determinam segurança e eficiência acrescida no tratamento atual da doença coronária.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.