Nos doentes com síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST (SCAsSST), em especial quando o risco de eventos é intermédio ou elevado, a estratégia invasiva é usada de forma crescente1,2. No caso de confirmada a presença de doença coronária obstrutiva, a revascularização coronária reduz a mortalidade e o risco de eventos não fatais1. Cerca de 50% dos doentes com SCAsSST apresentam doença multivaso, pelo que o tipo e forma de revascularização podem obrigar a um processo de decisão individualizado, inclusive uma discussão em Heart Team1,3. Uma das questões que se colocam à equipa responsável é se a revascularização dos doentes com SCAsSST e doença multivaso deve ser incompleta (apenas da artéria responsável pelo enfarte) ou completa e nesse caso se deve ser feita no mesmo procedimento ou em procedimentos subsequentes. Existe evidência crescente de que nos doentes com enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST a revascularização multivaso, inclusive das lesões não responsáveis pelo enfarte, é segura e pode reduzir o risco de eventos recorrentes4–6. Embora esses resultados possam ser extrapolados para a população de doentes com SCAsSST, é importante referir que nesse grupo particular não existem estudos prospetivos e aleatorizados que confirmem a superioridade e segurança da estratégia de revascularização multivaso. Por outro lado, em doentes com enfarte agudo do miocárdio, que se apresentam em choque cardiogénico, a revascularização dirigida à artéria responsável pelo enfarte pode ser superior à revascularização multivaso, conforme recentemente demonstrado num estudo aleatorizado7.
Neste número da revista os autores Correia et al.8 comparam uma estratégia de revascularização multivaso com a revascularização limitada à artéria responsável pelo enfarte, numa população de doentes com SCAsSST e doença multivaso. O estudo é observacional, com um desenho longitudinal retrospectivo, e incluiu doentes com SCA submetidos a intervenção coronária percutânea num único hospital, entre 2010 e 2013. A prevalência de doentes com SCAsSST com doença multivaso foi de 46%, definida pela presença de pelo menos duas lesões consideradas angiograficamente significativas (estenose igual ou superior a 50% do diâmetro intraluminal) em territórios arteriais coronários diferentes. A população analisada consistiu numa amostra de 202 doentes, dos quais 71 (35%) foram submetidos a revascularização multivaso e 131 (65%) fizeram apenas revascularização da artéria responsável pelo enfarte. Segundo os autores, a artéria responsável pelo enfarte foi definida de acordo com a integração dos dados clínicos, eletrocardiográficos, ecocardiográficos e angiográficos e a decisão de fazer revascularização coronária de artérias não responsáveis pelo enfarte e timing da mesma foi determinada pelo cardiologista de intervenção e pelo cardiologista clínico ou pelo Heart Team, quando apropriado. A revascularização multivaso foi definida como a intervenção (percutânea ou cirúrgica) sobre duas ou mais lesões em territórios arteriais coronários diferentes, durante o procedimento inicial (revascularização em 1.° tempo) ou planeada nos 30 dias seguintes (revascularização em 2.° tempo). O seguimento mínimo foi de três anos, com mediana de 1520 dias (4,1 anos) e foi avaliadas, entre outras, a ocorrência de morte, reenfarte, revascularização não planeada e MACE (morte, reenfarte, acidente vascular cerebral ou insuficiência cardíaca). De forma a minimizar o viés introduzido pelos fatores que influenciam a escolha do tipo de revascularização, foi feita uma análise de sobrevivência numa população emparelhada com propensity score matching, que incluiu 66 doentes em cada grupo.
É importante dar nota que a população analisada por Correia et al.8 foi selecionada de doentes com SCAsSST, pois apenas incluiu doentes nos quais foi decidido fazer uma estratégia invasiva, confirmada a existência de doença multivaso e decido fazer revascularização coronária percutânea. Ainda assim, as características demográficas e clínicas estão em linha com as reportadas em registos do mundo real2.
Adicionalmente, não se verificaram diferenças significativas entre os grupos com diferentes estratégias de revascularização, antes e após o propensity score matching.
No grupo de doentes que fez revascularização multivaso, a maioria, 66%, fez apenas um procedimento, mas apenas 52% fizeram revascularização completa. No grupo de doentes em que apenas a artéria responsável pelo enfarte foi tratada, 35% não trataram outras estenoses por serem consideradas não significativas (inferiores a 70%), 18% por terem doença difusa e complexa e 8% por terem oclusões crónicas, os restantes tinham mais do que um dos motivos indicados.
No que concerne aos eventos clínicos durante o seguimento, não se verificaram diferenças significativas durante a hospitalização. Por outro lado, no seguimento em médio‐longo prazo, os doentes submetidos a revascularização multivaso apresentaram uma incidência inferior de alguns dos eventos, nomeadamente de reenfarte (5,6% versus 16,8%) e de revascularização não planeada (5,6% versus 15,3%), sem diferenças na mortalidade, acidentes vascular cerebral e insuficiência cardíaca. Assim, os doentes submetidos a revascularização apenas da artéria responsável pelo enfarte tiveram cerca de duas vezes mais eventos no seguimento de longo prazo, quando avaliado o endpoint combinado de morte, reenfarte ou revascularização planeada. Os resultados mantiveram‐se sobreponíveis antes e após o propensity score matching. A metanálise de Jang et al., que analisou oito estudos observacionais, nos quais a revascularização multivaso foi comparada com a revascularização isolada da artéria responsável pelo enfarte, demonstrou que a primeira estratégia reduz o risco de revascularização não planeada em 25% e associa‐se a uma redução não significativa de cerca de 15% no risco de reenfarte e de morte9.
Assumindo que a revascularização multivaso pode ser a regra nos doentes com SCAsSST, importa discutir o seu timing. No estudo de Correia et al.8, cerca de um terço dos doentes submetidos a revascularização multivaso fizeram‐no num segundo procedimento e até 30 dias após o evento agudo. Esse tipo de estratégia diferida deve ser questionado, pois, de acordo com os resultados do estudo Smile, a revascularização multivaso num único procedimento reduz em quase 50% o risco de eventos recorrentes, quando comparada com a revascularização multivaso diferida (segundo procedimento feito três a sete dias após o primeiro)10. Essa redução de eventos deveu‐se essencialmente a uma redução significativa na taxa de revascularização não planeada, mas importa salientar que também se verificou uma tendência para menor mortalidade e reenfarte nos doentes submetidos a revascularização multivaso num único procedimento, sem qualquer sinal de aumento do risco de efeitos secundários, tais como nefropatia de contraste e enfarte pós‐procedimento10.
Outro dos aspetos a ter em conta no momento da decisão sobre o tipo de revascularização é a anatomia coronária e extensão da doença. No estudo de Correia et al.8, pelo menos um quarto dos doentes não fez revascularização multivaso por ter doença complexa e/ou oclusões crónicas. Os autores não reportam o Syntax Score ou outro discriminador da gravidade e extensão da doença coronária, pelo que a opção pela estratégia de revascularizar apenas a artéria culpável pelo enfarte pode ter sido condicionada pelas características anatómicas do próprio doente1. É reconhecido que a doença coronária mais complexa se associa a maior taxa de eventos recorrentes em doentes com SCAsSST, pelo que importa discutir no doente individual qual a estratégia que permite a revascularização mais completa possível1,11. Da mesma forma que as lesões complexas requerem uma discussão dirigida, também as lesões ditas intermédias devem ser alvo de uma avaliação sistematizada. No estudo em análise, 35% dos doentes revascularizaram apenas a artéria culpável, porque as restantes lesões foram consideradas como moderadas, i.e, com estenose <70%. Nesse grupo de doentes a avaliação funcional das lesões poderia ter modificado a estratégia de revascularização12. Na subanálise do estudo Fame, que incluiu 328 doentes com SCAsSST, a decisão de revascularizar, com base nos resultados da fractional flow reserve (FFR), associou‐se a uma redução relativa de 19% e a uma redução absoluta de 5%, no risco de eventos (inclusive morte, enfarte, cirurgia de revascularização ou revascularização não planeada)13. A utilidade de guiar a estratégia de revascularização com base no estudo funcional das lesões foi também validada num estudo que incluiu uma amostra de doentes portugueses com SCAsSST14.
A decisão de revascularizar apenas a artéria responsável pelo enfarte deve ainda ter em conta a dificuldade na identificação da mesma, o que pode constituir um desafio adicional na seleção da estratégia13. No estudo de Correia et al.8 a artéria responsável pelo enfarte foi definida sem recurso a um protocolo predefinido e de forma algo subjetiva. No entanto, em cerca de 50% dos doentes com SCAsSST podem existir múltiplas placas complexas e responsáveis pelo enfarte e a identificação da artéria responsável pode não ser linear15,16. Adicionalmente, a revascularização incompleta associa‐se a um risco aumentado de eventos, nomeadamente em doentes com SCAsSST, conforme demonstrado em vários estudos1,16. Esses são mais dois bons motivos que reforçam o papel da estratégia de revascularização multivaso em doentes com SCAsSST.
Em conclusão, o trabalho de Correia et al.8 reforça o conceito de que em doentes com SCAsSST a revascularização multivaso deve ser a regra, pois demonstra ser uma estratégia segura e que pode ter um impacto significativo na redução do risco de eventos em médio‐longo prazo.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflito de interesses.