O artigo «Reabilitação Cardíaca em Portugal. Inquérito 2013‐2014»1, conduzido pelas autoras no âmbito da coordenação do Grupo de Estudos de Fisiopatologia do Esforço e Reabilitação Cardíaca da Sociedade Portuguesa Cardiologia, publica os resultados do mais recente inquérito à situação da reabilitação cardíaca (RC) no nosso país. Trata‐se de um contributo muito importante para a cardiologia portuguesa, porque vem chamar a atenção para uma intervenção pouco praticada e que tem bons resultados reconhecidos, sendo classificada como uma indicação de classe I, nível de evidência A, nas mais recentes recomendações europeias2.
Analisando a informação recolhida neste inquérito, referente à atividade de 2013 em Portugal, verifica‐se um aumento significativo em 6 anos, triplicando o número de participantes na fase II dos programas de RC, que aumentaram de 638 em 2007 para 1927 em 2013, fruto da abertura de seis centros públicos e de três privados, que permitiram o acesso, respetivamente, a mais 427 e a 75 doentes. De salientar a grande desproporção entre a atividade dos centros públicos que receberam 165 (max: 636 – min: seis), enquanto os privados receberam 24 (max: 67 – min: seis) doentes em média para fase II.
Apesar deste aumento significativo, que é de saudar, constata‐se que há ainda um longo caminho a percorrer, já que apenas 8% dos doentes após enfarte agudo do miocárdio participou em programas de RC em 2013 no nosso país, longe dos valores de 30‐50% que se verificam nos países da Europa Central.
Observa‐se ainda um défice significativo nas indicações mais recentes para RC, com participação diminuta de insuficientes cardíacos e de doentes após angioplastia coronária ou cirurgia cardíaca, onde as nossas taxas de participação ainda são muito mais reduzidas do que as observadas nos países da Europa Central, Estados Unidos e Austrália.
Após a conclusão do presente inquérito, e até ao presente, já foram lançados mais quatro centros no sul do país. Três centros situados em hospitais públicos: Garcia da Orta (Almada), Pulido Valente e Santa Cruz (Lisboa), destinados a desenvolver atividade nas fases hospitalar e de treino. O Centro de Reabilitação Cardíaca da Universidade de Lisboa, que foi inaugurado em maio de 2016, está orientado para a fase de manutenção.
Apontam‐se vários motivos para o nosso atraso, como um défice de cultura de atividade física que atravessa transversalmente toda a nossa população, atingindo doentes e profissionais de saúde; falta de formação específica destes em relação ao uso da atividade física e da RC no plano terapêutico de várias doenças; falta de recursos financeiros e de espaços destinados aos programas.
Verificando‐se que a cardiologia portuguesa atinge padrões europeus em quase todos os domínios, o mesmo não se pode afirmar relativamente à RC, cuja expressão no país é muito inferior relativamente aos padrões europeus.
O reduzido número de centros de RC impede que seja alcançado todo o potencial de melhoria de capacidade funcional inerente a intervenções dispendiosas, como dispositivos de ressincronização, válvulas percutâneas, cirurgia cardíaca, a necessária adesão a esquemas terapêuticos complexos, como os prescritos após síndrome coronária aguda ou no contexto de insuficiência cardíaca, assim como a adoção a longo prazo das medidas de prevenção secundária, necessárias para que os benefícios condicionados pelas outras intervenções perdurem no tempo3.
Para além da baixa difusão no território nacional da RC, observa‐se também uma distribuição muito assimétrica, com ausência total de centros públicos no Minho, Trás‐os‐Montes, Beiras (nomeadamente nos hospitais universitários de Coimbra), Ribatejo, Alentejo e territórios insulares.
Reconhecendo‐se que a acessibilidade é um fator fundamental para acesso dos doentes aos programas de reabilitação, torna‐se urgente promover o lançamento de uma rede de centros públicos com distribuição equilibrada no país. Sabe‐se que os doentes tendem a não participar em programas que obriguem a deslocações superiores a 30km4,5. Motivação, capacidade financeira e horário compatível também são fundamentais. Neste contexto, poderá ter interesse a abertura de programas baseados no domicílio6, com ou sem recurso a novas tecnologias, como a telemonitorização, para enquadrar doentes de locais remotos ou com dificuldade de deslocação aos centros7.
A motivação do doente carece de reforço do médico de família e do cardiologista, promovendo a participação através da informação que o programa é benéfico e que a doença está relacionada com um estilo de vida pouco saudável e que o programa de reabilitação o ajudará a modificar.
Para disseminar os programas de RC no país é necessário formar equipas de profissionais constituídas por cardiologistas, fisiatras, psiquiatras ou psicólogos, fisioterapeutas, fisiologistas do esforço e dietistas, entre outros. Efetivamente, a presente formação destes profissionais, nos cursos universitários, nos internatos ou especializações, não proporciona conhecimento teórico nem treino suficiente que os capacitem para trabalhar neste domínio. Por este motivo, as sociedades portuguesas de cardiologia e de medicina física e de reabilitação vêm propondo, desde há vários anos, a criação de uma competência em RC junto da Ordem dos Médicos destinada a médicos destas especialidades, atribuível mediante a demonstração de conhecimentos teóricos e da realização de um estágio profissional em centro idóneo, com pelo menos seis meses de duração.
Este seria o primeiro passo para criar condições para que a atividade destes médicos se possa integrar numa subespecialização no âmbito da prevenção cardiovascular e do esforço, direcionada para a RC.
O financiamento apropriado desta área é outra barreira a ultrapassar. Sem financiamento adequado não é possível aumentar a participação dos doentes, nomeadamente os dos estratos sociais mais carenciados, porventura os mais necessitados, nem interessar as administrações hospitalares e os profissionais.
O financiamento da RC é assumido pelo Ministério da Saúde/Serviço Nacional de Saúde (SNS) em relação aos centros hospitalares públicos de fase I ou II (fase hospitalar e de treino) e pelos subsistemas, seguradoras e pelos próprios doentes, no que diz respeito aos centros privados (de fase II ou III), e à fase de manutenção, após alta do centro público. Não existe atualmente qualquer convenção entre o Ministério da Saúde/Serviço Nacional de Saúde (SNS) e centros privados, o que é importante para suprir as necessidades nacionais nas áreas onde a resposta dos centros hospitalares públicos é insuficiente.
Independentemente de ser necessário um aumento do quantitativo do financiamento, propõe‐se uma diversificação das suas origens em função da fase do programa e da situação profissional dos doentes. Deveria competir ao Ministério da Saúde/SNS assumir diretamente ou através de convenções com privados os custos dos programas da fase I e II (fase hospitalar e de treino), com a exceção dos doentes em fase laboral ativa, cuja responsabilidade seria da Segurança Social, que deveria estar interessada na retoma precoce da atividade profissional e na recuperação plena do doente após um evento clínico agudo. Relativamente à fase III (manutenção), competiria ao doente, já ciente do que é necessário fazer, assumir a responsabilidade dos cuidados e dos encargos financeiros relacionados com a adoção de um estilo de vida saudável.
O desenvolvimento da RC só poderá ser conseguido através de uma liderança do processo por parte das entidades oficiais, que reconhecendo o seu interesse clínico e económico, atuariam em aliança com as sociedades científicas e associações dos profissionais. A criação dos centros de referência na área cardiológica introduziu a necessidade de que os centros estão obrigados a cumprir um requisito de disporem de um programa de RC, confirmando que o Ministério da Saúde já valoriza a RC como capaz de ampliar os benefícios das intervenções diferenciadas e de custo elevado, realizadas nestes centros.
Acredito que esta consciência, que começa a estar presente nos decisores políticos, nos profissionais e nos doentes, conduzirá em breve ao aumento do número de programas para doentes com patologias mais frequentes, como após enfarte do miocárdio ou cirurgia cardíaca, a quem a RC proporciona benefícios clínicos, económicos e sociais.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.