O artigo de Sandra Magalhães et al., publicado neste número da RPC, avalia o benefício de um programa de reabilitação cardíaca (PRC) com uma duração média de oito semanas, no controlo dos fatores de risco cardiovasculares de doentes com cardiopatia isquémica, 65% dos quais após síndrome coronária aguda (SCA).
As atuais diretrizes da Sociedade Europeia de Cardiologia após SCA1,2, para além de atribuírem à reabilitação cardíaca uma indicação de classe i (nível de evidência B) e de a considerarem uma performance measure mandatória, recomendam a adoção de um estilo de vida saudável e de um regime farmacológico específico baseado em dupla antiagregação, betabloqueante, iECa (ou ARA II em alternativa) e estatina.
A decisão de mudar comportamentos e, sobretudo a sua manutenção a longo prazo, não é fácil de conseguir no contexto dos cuidados médicos habituais, caracterizados por consultas médicas de tempo reduzido, sem apoio de materiais audiovisuais ou de outros tipos de profissionais como psicólogos, nutricionistas, fisiologistas do exercício e de uma consulta de cessação tabágica. A abordagem clássica não permite a educação e o esclarecimento das dúvidas dos doentes e dos seus familiares, bem como o necessário apoio para as mudanças de comportamentos, que compreendem a adoção de uma terapêutica farmacológica permanente, cessação tabágica se necessário, modificação de hábitos alimentares, atividade física regular e adoção de um estilo de vida com menor grau de stress psíquico.
A informação sobre as medidas a tomar, a sua explicação, a discussão das dificuldades previsíveis e o estabelecimento de mecanismos de suporte são indispensáveis para que o doente e seus familiares venham a aderir voluntariamente e sejam capazes de respeitar as recomendações a longo prazo.
Estas mudanças são difíceis de obter, porque vão obrigar ao abandono de hábitos arreigados há décadas, muitas vezes em doentes e famílias com baixo nível socioeconómico, frequentemente assintomáticos e que não sentem nem entendem a necessidade de mudar.
Os trabalhos de Iestra3 e Chow4 publicados na Circulation demonstraram reduções muito significativas da mortalidade condicionados pelo controlo dos fatores de risco cardiovasculares clássicos, que já o estudo INTERHEART5 tinha demonstrado serem responsáveis por 90% dos casos de SCA e que voltarão a estar implicados num possível evento coronário subsequente.
Os PRC demonstraram reduções de 25 a 30% da mortalidade global e da mortalidade cardiovascular em vários estudos e meta-análises recentes6,7, sobretudo quando a componente exercício físico foi dominante. Estes PRC, que, para muitos, se resumem a programas de atividade física adaptada para doentes cardíacos, são muito mais do que isso; na realidade, são programas de prevenção secundária holísticos que integram o exercício físico, a educação dos doentes e seus familiares, a promoção da mudança de comportamentos, a adoção de um estilo de vida saudável, a normalização precoce das atividades de vida diária e o respeito pela terapêutica farmacológica referida nas recomendações internacionais8.
Um trabalho de Darwood et al.9 revelou que o simples aconselhamento pelos médicos para abandono do tabagismo não é suficiente para o obter e que tal só é possível conseguir através de uma consulta hospitalar de cessação tabágica ou de um programa de reabilitação cardíaca. Lavie10 e coautores demonstraram que os PRC têm uma capacidade para melhorar os aspetos psicológicos dos doentes após SCA (hostilidade, ansiedade ou depressão) em qualquer grupo etário, embora com benefícios de maior amplitude nos doentes jovens em quem parecem ter maior significado.
O artigo de Sandra Magalhães et al., surge a partir de uma virtuosa colaboração entre fisiatras e cardiologistas do Hospital de Santo António (Porto), que lançaram e mantêm há vários anos um PRC que se destaca pela qualidade e volume do trabalho produzido, demonstra que a participação no programa permite obter uma redução muito significativa do perfil dos fatores de risco em todos os momentos do seguimento estudados (3, 6 e 12 meses após admissão no PRC), com resultados excelentes ao nível do controlo tensional, cessação tabágica, controlo da diabetes mellitus e do sedentarismo. Os resultados são menos favoráveis sobretudo ao nível da obesidade, o que está de acordo com o relatado na bibliografia médica11, e, no perfil lipídico onde o armamentário terapêutico atualmente disponível, aliado a alguma disciplina alimentar, poderia permitir obter resultados melhores.
No estudo GOSPEL12, publicado por Giannuzzi et al. em 2008, foram aleatorizados 3241 doentes, tendo 1620 sido submetidos a um PRC residencial com um mês de duração e foram comparados com 1621 que receberam os cuidados habituais, relativamente ao controlo dos fatores de risco clássicos, à adoção de um estilo de vida saudável e a eventos cardiovasculares e mortalidade global e cardiovascular.
À semelhança do estudo de Sandra Magalhães, verificou-se que os doentes do grupo RC de Giannuzzi apresentavam, ao longo dos três anos de seguimento, um estilo de vida mais saudável, consubstanciado em índices de atividade física mais elevados, níveis de stress psicológico inferiores e hábitos dietéticos mais saudáveis. Relativamente aos fatores de risco, os doentes do grupo do PRC demonstraram melhor controlo do perfil lipídico, dos níveis tensionais e uma taxa de cessação tabágica mais elevada.
Ao contrário de Magalhães et al. objetivou-se no GOSPEL uma redução sustentada do índice de massa corporal, mas não demonstraram qualquer diferença estatisticamente significativa nos níveis séricos de hemoglobina A1C entre os dois grupos, aspeto em que o estudo português obteve resultados positivos.
Os investigadores do GOSPEL, dispondo de uma população mais numerosa e de um tempo de seguimento mais alargado, observaram resultados positivos em dois endpoints combinados do estudo que associaram eventos e mortalidade cardiovascular: o primeiro, composto por mortalidade cardiovascular, enfarte não fatal e AVC não fatal, e o segundo, por morte cardíaca e enfarte não fatal.
Seria muito interessante que os centros portugueses de RC, enquadrados pelo Grupo de Estudos de Fisiopatologia do Esforço e Reabilitação Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, lançassem um estudo nacional e multicêntrico, com o objetivo de avaliar se a RC em Portugal é uma forma de prevenção secundária com melhores resultados em termos de mortalidade, qualidade de vida e custo-efetividade após SCA, quando comparada com os cuidados habituais prestados nos hospitais públicos.
Em Portugal, a taxa de participação em PRC dos potenciais candidatos é inferior a 4%13, quando, no centro de Europa, as taxas são superiores a 30% na maioria dos países14. O panorama da RC em Portugal não é o desejável devido às assimetrias regionais da disponibilização dos centros de RC no país, com um déficit significativo no interior face ao litoral e ao sul relativamente ao norte do país, e à limitação do acesso dos doentes devido ao custo dos programas nos centros privados extra-hospitalares e à inexistência de convenções do SNS, que é responsável pela prestação de cuidados de saúde para cerca de 80% habitantes do país.
No atual momento, em que o SNS está a avaliar que tipo de cuidados de saúde deverá prestar à população, face às evidências científicas e às recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia, está plenamente justificado e é adequado reforçar as vertentes de prevenção e de reabilitação que já demonstraram, nos países desenvolvidos, ser eficazes na redução da mortalidade e dos gastos em saúde.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.