Está comprovado que o risco cardiovascular se encontra substancialmente aumentado nos doentes com doença renal crónica terminal, em diálise.
Tanto nos EUA como na Europa, a mortalidade por doença cardiovascular nos doentes em diálise ronda os 40%, e encontra‐se particularmente aumentada nos primeiros três anos após início do tratamento. A apreciação crítica destes factos implica, desde logo, o conceito bem sustentado de que a falência progressiva da função renal e a «uremia», muito antes do início do tratamento dialítico, condicionarem, por si só, um «ambiente» patogénico especialmente propício à potenciação da aterogénese, independentemente da etiologia da doença1. Isto significa que equacionar a problemática da doença cardiovascular em doentes sob tratamento dialítico deve considerar, e distinguir, o contributo de variáveis como os fatores de risco em geral, chamados tradicionais, os relacionados com a causa da doença renal, e os fatores de risco especificamente relacionados com a técnica de substituição da função renal, quer seja a diálise peritoneal (DP), a hemodiálise (HD), ou mesmo, o transplante renal. A técnica pode influenciar o ritmo aterogénico, dependendo das características inerentes ao procedimento (i.e., dialisador; membrana peritoneal), mas está sobretudo relacionada com a capacidade depurativa e de correção dos desequilíbrios hidroeletrolítico, ácido‐base, endócrino e metabólico/inflamatório que caracterizam a insuficiência renal.
Em geral, e nos trabalhos publicados sobre este tema, a análise comparativa do risco cardiovascular de doentes em diálise (HD versus DP) é difícil de ser concludente. Na verdade, nas populações estudadas, para além da multiplicidade de elementos implicados na fisiopatologia da doença aterosclerótica, observa‐se com frequência uma enorme disparidade na idade, duração do tratamento e diversidade de comorbilidades. No entanto, é certo que existem alguns dados objetivos e replicados que apontam a importância da hiper‐hidratação extracelular/hipervolemia, a malnutrição/hipoalbuminemia, associada à síndrome de perda calórico‐proteica (PEW), e a calcificação vascular como fatores concorrentes e muito importantes para a morbimortalidade cardiovascular. Todos podem estar presentes, em grau variável, tanto na DP como em HD, sendo ainda hoje difícil de objetivar qual das técnicas é preferível em termos de menorizar o risco. Sabe‐se, contudo, que existem características próprias que poderão, a priori, amplificar a patogénese daqueles fatores, dependendo, todavia, de um aspeto fundamental – a função renal residual. O artigo de Querido et al.2 não teve por objetivo estabelecer comparações de risco cardiovascular entre técnicas, mas sim procurar as variáveis potencialmente relacionáveis com o risco da doença na DP. Com base nestes objetivos, os autores estudaram retrospetivamente um número importante de doentes incidentes em DP, durante um período de tempo significativo, facto a assinalar em virtude da relativa escassez de estudos com as mesmas características.
A discussão e as conclusões deste trabalho sugerem‐nos as seguintes considerações:
- 1.
Hipervolemia – na DP, o volume extracelular encontra‐se relativa e tendencialmente aumentado, pela limitada capacidade de remoção do sódio e variável capacidade ultrafiltrante do peritoneu, mecanismos que contribuem para a hipertensão arterial e hipertrofia ventricular esquerda. Por outro lado, a instilação de um soluto na cavidade peritoneal aumenta a pressão intra‐abdominal, mas também a pressão arterial sistémica, devido a um aumento das resistências periféricas. Este conjunto de alterações estimula o aumento na concentração de peptídeos natriuréticos produzidos pelo miocárdio, que têm sido utilizados como marcadores de prognóstico na mortalidade global dos doentes em diálise em geral e, particularmente, na DP3. Comparativamente à HD, a DP poderá ser, por consequência, menos eficaz na redução do volume e no controlo da hipertensão arterial.
Para corrigir a hipervolemia/hiper‐hidratação é necessário que o soluto contenha uma substância osmótica, habitualmente a glicose, que pode provocar hiperglicemia, expondo o peritoneu a uma concentração elevada em produtos finais de glicosilação avançada (AGE), compostos implicados na inflamação, no stresse oxidativo e na alteração estrutural do colagénio. Todavia, de acordo com alguns trabalhos, a concentração plasmática elevada de AGE na DP encontra‐se igualmente elevada na HD, sendo pouco provável que a sua produção na DP provoque efeitos vasculares sistémicos4. Em situações em que é necessário aumentar a ultrafiltração peritoneal, sem recorrer à glicose hipertónica, a opção poderá ser a icodextrina, solução utilizada pelos autores para identificar doentes com sobrecarga de volume. As chamadas soluções alternativas à glicose (i.e., bicarbonato), mais biocompatíveis, apesar de alguns estudos concluírem pela sua influência positiva na sobrevivência dos doentes e na preservação da função renal residual, permanece controversa. Ainda assim, estas parecem reduzir a neoangiogénese peritoneal e, portanto, prevenir o risco de perda de ultrafiltração.
- 2.
Hipoalbuminemia – tal como referido neste trabalho, os estudos têm demonstrado uma forte associação entre malnutrição, inflamação (elevação da proteína C reativa) e aterosclerose, síndrome conhecida internacionalmente por MIA, com o aumento de risco de morte por doença cardiovascular. Nos doentes em diálise, apesar dos valores séricos baixos de albumina estarem forte e inversamente relacionados com o risco de mortalidade, considera‐se que eles refletem mais a doença do que o estado nutricional. Por este motivo, alguns defendem que aquela designação deveria ser substituída por PEW, estando ainda por esclarecer, verdadeiramente, o contributo específico da malnutrição e da inflamação para o risco de mortalidade nestes doentes5. No caso particular da DP, a perda proteica através do peritoneu, a perda urinária e a ingestão proteica variável tornam a interpretação dos níveis de albumina particularmente difícil, como indicadores de inflamação e/ou malnutrição.
- 3.
Calcificação mitral – na população de doentes em diálise, como na população em geral, a calcificação arterial é considerada um fator de risco importante para a mortalidade cardiovascular. Esta calcificação ocorre tanto na íntima e média dos vasos, como ao nível das válvulas cardíacas, e é determinante para o endurecimento da parede arterial como motor da hipertensão arterial e hipertrofia ventricular esquerda. A hiperfosfatemia e, muito provavelmente, o sistema FGF23/Klotho poderão ser os principais intervenientes fisiopatológicos6.
Os estudos sobre prevalência das calcificações têm sobretudo sido realizados em doentes em HD, mas os realizados em DP mostram também uma prevalência aumentada e igualmente significativa. Aparentemente, isto significa que a DP não é uma técnica inferior no controlo dos principais mecanismos patológicos conducentes à calcificação dos tecidos.
Vários estudos observacionais têm demonstrado uma correlação positiva entre calcificação e marcadores da inflamação, nomeadamente a proteína C reativa, interleucina‐6 e moléculas de adesão. Numa outra perspetiva, quanto aos fatores que regulam o balanço do processo de calcificação, os níveis elevados da proteína fetuína, antagonista da deposição do cálcio, parecem estar inversamente relacionados com a mortalidade cardiovascular e, estando aumentados na DP, poderão significar proteção7.
Na ausência de estudos observacionais e aleatorizados, comparativos com HD, muito difíceis de implementar na prática, este trabalho contribui com a experiência de um centro para a identificação de marcadores de risco cardiovascular em doentes submetidos a DP. Pelas considerações atrás expostas, o risco cardiovascular nestes doentes é a resultante de um somatório multifatorial, difícil de analisar, para além de que a metodologia utilizada corre sempre o risco de enviesamentos que dificultam o apuramento de causas objetivas. Com efeito, a hipervolemia, a hipoalbuminemia e a calcificação mitral estão também presentes na população com doença renal crónica em pré‐diálise, bem como em HD, pelo que não podemos inferir deste trabalho que aqueles se relacionam, especificamente, com a técnica propriamente dita. O diagnóstico de calcificação valvular, realizado pelos autores somente no início do estudo, também não permite objetivar o contributo específico da DP nesta patologia, ficando por saber em que medida a DP contribui, ou não, para o desenvolvimento ou agravamento da calcificação mitral, independentemente de contribuir para o aumento de incidência de eventos cardiovasculares e de mortalidade.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.