Hipertensão arterial com valores tensionais persistentemente elevados é um dos principais fatores de risco cardiovascular. A hipertensão arterial é responsável por uma sobrecarga de pressão que favorece a remodelagem auricular ocasionando alterações estruturais e elétricas1,2. As consequências fazem‐se sentir a vários níveis e, nomeadamente, no aumento do risco de instalação de fibrilhação auricular (FA) que se agrava com o avançar da idade3. Como está bem estabelecido, a FA tem importante repercussão ao nível do débito cardíaco e associa‐se a um risco quatro a cinco vezes superior de acidente vascular cerebral (AVC) isquémico cardioembólico4,5. Também o risco de mortalidade fica muito acrescido pela presença desta entidade6.
O atraso eletromecânico interauricular e o prolongamento do tempo de ativação auricular total têm sido ligados ao aumento da incidência de FA3,7,8.
O prolongamento do tempo de condução auricular fornece indicação de remodelagem estrutural e elétrica, tendo assim vantagem sobre a medição da dimensão da aurícula esquerda (AE) ou do índice do volume da AE1,9.
O índice de massa ventricular esquerdo (IMVE) está associado com um prolongamento do tempo interauricular e com o tempo de acoplamento auricular esquerdo1. A gravidade da hipertrofia ventricular esquerda parece estar associada, entre outros fatores, com a instalação de FA.
Existe demonstração de que a terapêutica farmacológica, com a redução da pressão arterial (PA) e consequente redução da massa ventricular esquerda, pode permitir reduzir o aparecimento da FA10–12.
Dados do Framingham Heart Study já tinham evidenciado haver uma relação entre a dimensão da AE determinada por ecocardiografia, e os níveis de pressão arterial sistólica e de pressão de pulso (PP)13. Por outro lado, na hipertensão arterial existe evidência de uma relação entre a PP e o aumento da incidência de FA14. A PP tem‐se revelado superior à pressão arterial média (PAM) ou à distensibilidade aórtica como preditor de risco de FA15,16.
Existe uma boa correlação entre a duração da onda P obtida a partir de uma derivação eletrocardiográfica de superfície e a duração máxima dos eletrogramas da aurícula. A duração da onda P correlaciona‐se com os tempos de condução interauricular e intra‐auricular17.
A dispersão da onda P (Pd), que corresponde à diferença entre a duração da onda P máxima e mínima, registada a partir de múltiplas derivações em ritmo sinusal, tem sido estudada como método de avaliar o risco de FA em populações sem doença cardiovascular e numa diversidade de patologias, que vão da hipertensão arterial à cardiopatia isquémica, à cardiopatia valvular, às cardiopatias congénitas e à insuficiência cardíaca, entre outras17.
Em doentes hipertensos, a Pd pode ajudar a identificar situações de hipertrofia ventricular esquerda ou de disfunção diastólica ventricular esquerda, que condicionam alterações morfológicas e hemodinâmicas na AE, aumentando o risco de FA. O aumento das pressões intra‐auriculares e a eventual isquemia favorecem a remodelagem auricular com desorganização das fibras miocárdicas e fibrose, dilatação e instabilidade elétrica17,18.
Outros fatores favorecedores do aumento da Pd e da fibrose auricular são a ativação da angiotensina II e das catecolaminas18.
Em doentes hipertensos, a intervenção terapêutica sobre o sistema renina‐angiotensina‐aldosterona (SRAA) com o perindopril permitiu documentar diminuição da Pd17. Outro estudo, envolvendo o SRAA com o uso do quinapril, mostrou o mesmo benefício17.
O aumento da Pd e da duração máxima da onda P exprimem instabilidade e heterogeneidade da condução auricular, que pode ser consequência das alterações morfológicas e hemodinâmicas a que é submetida a AE como consequência da hipertensão arterial18.
A insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida predispõe para a instalação de FA. Num estudo efetuado em doentes com miocardiopatia dilatada não isquémica, a Pd era muito mais elevada do que no grupo controlo19.
A variação hemodinâmica gerada pela disfunção ventricular esquerda e a ativação neuro‐hormonal relacionada, com consequente repercussão ao nível auricular esquerdo, permitem explicar o aumento da Pd.
Analisando a Pd no estudo de Camsari et al. em doentes com insuficiência cardíaca20, observou‐se uma correlação significativa com a fração de ejeção ventricular esquerda. Nestas situações, existe reconhecidamente uma estimulação da atividade simpática e do SRAA, fatores que influenciam a duração da onda P e a Pd. O tratamento com o metoprolol, no referido estudo, permitiu reduzir tanto a duração máxima, como a Pd20.
A ressincronização cardíaca (CRT) em doentes sintomáticos, apesar da terapêutica farmacológica otimizada, em ritmo sinusal, com FEj≤35%, duração do QRS≥130mseg, e bloqueio completo do ramo esquerdo, permite melhorar a função ventricular esquerda e reduzir a ativação neuro‐humoral. Existe também demonstração de contribuir para a remodelagem reversa auricular e, assim, para a melhoria da função auricular21,22.
Num estudo efetuado em 46 doentes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida submetidos a CRT, a avaliação aos três meses permitiu observar diminuição da duração máxima da onda P e da Pd, redução do diâmetro da AE e melhoria da fração de ejeção ventricular esquerda22. Existia uma correlação positiva entre a duração máxima da onda P, a Pd e a redução do diâmetro da AE e uma correlação negativa com a melhoria da fração de ejeção ventricular esquerda.
A força terminal da onda P em V1 (PTFV1) é o resultado do produto da amplitude do componente negativo terminal da onda P em V1 pela duração em ms. É um marcador com valor prognóstico cardiovascular e existe evidência de traduzir aumento do risco de FA23,24. Um valor negativo da PTFV1≥40mmxms mostrou, em doentes com história de enfarte do miocárdio, ser preditor de mortalidade cardíaca ou hospitalização por insuficiência cardíaca23. Em outro estudo, em doentes com massa ventricular esquerda aumentada, a PTFV1>40mmxms estava associada com risco de AVC isquémico25.
Çimen et al. abordaram, em doentes com hipertensão arterial essencial, sem evidência de alterações cardíacas estruturais significativas e com elevação da PP (≥60mmHg), as alterações precoces do tempo de condução auricular e a Pd26. O atraso eletromecânico auricular (AEMD) foi avaliado por ecocardiografia/Doppler tecidual. A Pd foi avaliada por eletrocardiograma. Os autores mostraram que, nesta população de 157 doentes, a PP elevada estava associada com AEMD e com aumento da Pd.
A deteção, por meios não invasivos de fácil acesso, de alterações precoces que possam permitir a prevenção da remodelagem estrutural e elétrica e, em última análise, reduzir o risco de FA é da maior relevância e o estudo de Çimen et al., publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, é mais um contributo.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.