A amiloidose, nas suas várias formas, caracteriza‐se pela deposição extracelular de substância amiloide, tratando‐se esta de um material fibrilar, que deriva de várias proteínas precursoras que se agregam assumindo uma conformação característica, insolúvel e não funcional. A infiltração amiloide nos vários órgãos traduz‐se pela sua falência, sendo a amiloidose cardíaca uma causa major de morte1.
Existem formas hereditárias e adquiridas da doença, cujo denominador comum é a exposição prolongada a uma proteína anormal ou a uma proteína normal existente em quantidade excessiva. São conhecidas mais de 30 proteínas precursoras de amiloidose2, sendo as mais frequentes a cadeia leve de imunoglobulina, a amiloide sérica A, a forma selvagem da transtirretina, e as formas mutantes da transtirretina, da apolipoproteína A1 e da cadeia alfa do fibrinogénio3.
As formas mutantes da transtirretina causam o tipo mais comum de amiloidose sistémica hereditária, de transmissão autossómica dominante: a polineuropatia amiloidótica familiar (PAF)4.
A transtirretina é uma proteína de transporte plasmático sintetizada pelo fígado. Na PAF ocorre uma mutação no gene que a codifica, sendo a Val30Met responsável por cerca de 50% dos casos desta doença. Clinicamente, a PAF caracteriza‐se por neuropatia sensorial, motora e autonómica, alterações gastrointestinais, insuficiência cardíaca e renal, que podem conduzir à morte num período relativamente curto de evolução. Há, contudo, variações fenotípicas dependentes da região geográfica de origem da mutação, da idade de aparecimento e do género4,5.
Os primeiros casos de PAF foram descritos por Corino de Andrade, na região norte de Portugal (Vila do Conde e Póvoa do Varzim), em 19526. A prevalência desta doença é variável, registando‐se nas áreas endémicas de Portugal e Suécia uma variação entre 1/1000 e 1/10000 indivíduos4.
O tratamento efetivo requer um diagnóstico preciso, que envolve a histopatologia e a genética. Exames imagiológicos como a ecocardiografia, a ressonância magnética e a cintigrafia facultam a avaliação da extensão e gravidade do envolvimento dos vários órgãos e, assim, permitem estratificar o risco associado à doença4,5.
O transplante hepático tem sido responsável por alterar a progressão da PAF e, mais recentemente, têm sido relatados resultados promissores com fármacos que parecem estabilizar a transtirretina – tafamidis e diflunizal4,5.
O trabalho intitulado Progressão da desnervação simpática cardíaca avaliada por cintigrafia com MIBG‐I123 na PAF7 versa sobre o potencial da cintigrafia com metaiodobenzilguanidina (MIBG) na avaliação da desnervação simpática cardíaca e, na resposta desta ao transplante hepático, na PAF. Reveste‐se de particular interesse dada a prevalência da doença em algumas regiões do nosso país. Tratou‐se de um estudo observacional, prospetivo, de 232 doentes portadores da mutação da transtirretina Val30Met, avaliados anualmente do ponto de vista clínico e com cintigrafias com 123I‐MIBG realizadas de forma seriada.
A utilização da cintigrafia com 123I‐MIBG faculta informação acerca da neuropatia autonómica cardíaca, mas o seu papel na prática clínica ainda se encontra por estabelecer. O 123I‐MIBG é um análogo da noradrenalina, apresentando, assim, um comportamento similar. Injetado perifericamente, localiza‐se nas terminações nervosas pré‐sinápticas, sendo a sua concentração dependente da libertação de noradrenalina e da recaptação da mesma, ou seja, dependente da integridade do sistema nervoso autónomo. O índice coração/mediastino avalia a relação entre a captação cardíaca e mediastínica do marcador, que em situações de desnervação simpática cardíaca deverá estar diminuída8.
Os autores reportaram que a diminuição do índice coração/mediastino se relacionou com o risco de morte e que durante o seguimento (4,5 anos) 70 doentes foram submetidos a transplante hepático, tendo este conseguido uma estabilização do índice coração/mediastino. Concluíram que a desnervação simpática é frequente na variante estudada de PAF, tendo a cintigrafia contribuído para a estratificação de risco destes doentes. O transplante hepático, à luz dos resultados apresentados, parece ter interrompido a progressão da desnervação simpática.
A cintigrafia com 123I‐MIBG tem sido um método proposto no estudo da desnervação cardíaca em condições diversas, como a doença cardíaca isquémica, a insuficiência cardíaca, as arritmias e a morte súbita. A desnervação simpática, avaliada por este método de imagem, associada a quadros clínicos específicos, parece estar relacionada com o risco de morte súbita8,9.
Na literatura, não são muitos os estudos que relacionam os resultados da cintigrafia com 123I‐MIBG e a PAF. Um dos primeiros artigos que refere a utilização desta técnica em doentes com PAF teve origem no Japão, em 1995, com o relato de um caso clínico10. Em 1999, é publicado no European Journal of Nuclear Medicine um estudo de Delahaye et al. em que os autores concluem pela utilidade da cintigrafia com 123I‐MIBG na avaliação da desnervação simpática em doentes com PAF11. Em 2006, o mesmo grupo, baseado num estudo que incluiu 31 doentes, afirma que o transplante hepático contribui para a estabilização da desnervação simpática cardíaca e que os doentes com agravamento neurológico após o transplante eram aqueles que demonstraram maior grau de desnervação prévia12.
O grupo de Coutinho et al. foi já responsável pela publicação de dois trabalhos sob a forma de artigo, em 2004, na Revista Portuguesa de Cardiologia, que envolveu 34 doentes e em que é destacada a elevada incidência de desnervação cardíaca relacionada com a PAF tipo I13 e em 2013, na Circulation Cardiovascular Imaging, em que concluem que a desnervação simpática, avaliada pela cintigrafia com 123I‐MIBG, foi um marcador de prognóstico em doentes com PAF (estudo que envolveu 143 doentes)14.
O artigo objeto deste comentário7 encontra‐se, assim, no seguimento de uma investigação conduzida por este grupo que decorre desde há alguns anos e que, atualmente, inclui uma população de doentes de dimensão considerável, avaliados por cintigrafia com 123I‐MIBG no contexto de PAF, relacionando os resultados desta com o prognóstico dos doentes e concluindo pela estabilização da desnervação simpática após transplante hepático.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.