A insuficiência cardíaca é um problema crescente de saúde pública. Cerca de 26 milhões de indivíduos em todo o mundo vivem atualmente com insuficiência cardíaca, o que é comparável com os 32 milhões que vivem com cancro e os 34 milhões com VIH/SIDA1. A prevalência estimada da insuficiência cardíaca na população europeia é de cerca de 2%, a qual aumenta abruptamente com a idade a partir da sétima década de vida. De facto, mais de 80% dos insuficientes cardíacos têm 65 anos ou mais. É também a primeira causa de hospitalização após os 65 anos na Europa, bem como nos Estados Unidos2.
Estima‐se que o número de doentes com insuficiência cardíaca virá a duplicar até 2030 devido ao envelhecimento da população, bem como ao tratamento mais eficiente quer das doenças cardíacas que terminam na insuficiência cardíaca quer da própria síndrome, condicionando uma procura em crescendo dos cuidados médicos e das instituições de saúde3.
Por outro lado, a epidemiologia da insuficiência cardíaca parece estar a mudar. Uma revisão sistemática recente relata uma prevalência global estável na última década, de 11,8% no idoso com 60 ou mais anos, sendo a insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada globalmente mais prevalente do que a insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (4,9 e 3,3% respetivamente). Enquanto a primeira está a aumentar, a segunda terá decrescido ligeiramente no século XXI4.
Apesar dos avanços dos últimos 30 anos no desenvolvimento de novas moléculas, bem como de novas modalidades não farmacológicas de terapêutica, eficazes no tratamento da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, os doentes com insuficiência cardíaca apresentam, após um primeiro internamento, um elevado risco de re‐hospitalização precoce e morte. São críticos nos primeiros 30‐60 dias após a alta hospitalar. Cerca de um em cada quatro doentes com mais de 65 anos será readmitido aos 30 dias e cerca de metade até aos seis meses após a alta5–7. A insuficiência cardíaca compromete dramaticamente a sobrevida e a qualidade de vida de doentes e cuidadores, bem como o orçamento para a saúde dos países desenvolvidos. Estima‐se que os custos aumentem em cerca de duas vezes e meia até 20303.A hospitalização representa cerca de 60‐80% dos gastos com a síndrome.
Por outro lado, admite‐se que a maioria dos reinternamentos possam ser evitados com a melhoria da qualidade dos cuidados hospitalares, nomeadamente pré‐alta, e dos cuidados de transição, na fase pós‐alta imediata3,6,8–11. Assim, desde 2010, e no âmbito de um programa de redução da re‐hospitalização, taxas de reinternamento excessivas passaram a originar penalizações financeiras para os hospitais americanos. Outros países optaram pela bonificação das instituições com melhores indicadores nesta área.
Também em Portugal, a assistência à insuficiência cardíaca deverá constituir uma prioridade no programa nacional de saúde, para todos os níveis de cuidados12. Todos, doentes, profissionais de saúde e decisores, deverão estar sensibilizados para a síndrome e preparados para enfrentar a epidemia, nas suas várias vertentes.
Mais do que em medidas punitivas, a estratégia deve assentar na investigação clínica continuada, em registos multicêntricos nacionais, no conhecimento dos dados da vida real, essenciais para que possamos estabelecer indicadores e padrões de qualidade baseados na evidência e capazes de refletir uma melhoria na morbimortalidade dos doentes. É neste contexto que se insere o trabalho de Iréne Marques et al. publicado neste número da revista13.
Os autores analisam uma população de doentes internados consecutivamente num serviço de medicina interna de um hospital terciário, universitário, que se propõe implementar uma clínica de insuficiência cardíaca dotada de um programa multidisciplinar de manejo da síndrome, numa perspetiva de melhoria da assistência médica prestada aos seus doentes.
As clínicas de insuficiência cardíaca, estruturas organizacionais dotadas de programas de manejo integrado da síndrome, assentes em equipas multidisciplinares, têm provas dadas na melhoria da morbimortalidade e são uma recomendação de classe IA da Sociedade Europeia de Cardiologia14.
Certos de que o modelo a implementar não será único, mas deverá antes responder às necessidades locais, os autores procuram avaliar desvios e identificar áreas para melhoria.
De entre os resultados deste estudo, salientamos alguns aspetos de especial interesse. Esta população internada em serviço de medicina interna é mais idosa (idade média 79 anos) e constituída predominantemente por mulheres (62,5%), com múltiplas comorbilidades – apesar de subestimadas no estudo –, com fração de ejeção preservada (70,5%). Estes doentes são diferentes dos incluídos nos ensaios clínicos e nos registos oriundos de serviços de cardiologia e unidades especializadas em Portugal, bem como na Europa, onde são mais novos, preponderantemente homens e com fração de ejeção deprimida15,16. Esta população está assim, em conformidade com os relatos de muitos autores, de que a maioria dos doentes com insuficiência cardíaca são idosos com múltiplas comorbilidades e fração de ejeção preservada, e que são mais habitualmente internados em serviços de medicina interna.
Um terço dos doentes morreu ou foi re‐hospitalizado ao ano, a atestar do prognóstico a longo prazo da insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada tão mau quanto o da insuficiência cardíaca com fração de ejeção deprimida, contrariando o mito de que a primeira tem melhor prognóstico17,18. A mortalidade intra‐hospitalar (7,9%) foi tão elevada quanto a da insuficiência cardíaca com fração de ejeção deprimida, bem como a taxa de reinternamento ao ano (34,3%), esta mais elevada do que a reportada no ESC heart failure long‐term registry, a sugerir possível margem para melhoria19.
A reavaliação pós‐alta em consulta da especialidade quando existiu (e apenas 62% dos doentes, no decorrer de um ano) foi tardia, bem para além das duas semanas preconizadas pelas recomendações internacionais. Não há referência a reavaliação em cuidados primários, também preconizada nas recomendações europeias, no espaço de uma semana pós‐alta14.
Ainda que o internamento seja um evento indesejável e deletério, na evolução do doente com insuficiência cardíaca, oferece um momento privilegiado para reequacionar o doente e otimizar a terapêutica, mas representa apenas o início da trajetória. As recomendações preconizam a referenciação destes doentes de maior risco a um programa de manejo integrado da síndrome, sendo que, na Europa, apenas 26 países reportaram ter programas de manejo integrado da insuficiência cardíaca em mais de 30% dos seus hospitais e, mesmo quando existe, nem sempre é devidamente utilizado14,20. A integração no fluxo destes doentes dos vários níveis dos cuidados de saúde, nomeadamente dos cuidados primários, é outro aspeto fundamental para a prestação adequada de cuidados aos doentes com insuficiência cardíaca, aspeto que carece de implementação quer na Europa quer entre nós14.
É tentador admitirmos que as diferenças nas taxas de mortalidade e reinternamento entre os diferentes países europeus, objetivamente inferiores em alguns países do sul, como a Itália, e sobretudo do norte da Europa, possam estar relacionadas com o acesso facilitado a redes e programas de manejo integrado da insuficiência cardíaca, já tradicionalmente aí implementados20–23.
A organização destes programas deve ser encorajada, pelo que aguardamos com o maior interesse os resultados da clínica de insuficiência cardíaca que I. Marques et al. se propõem implementar no seu hospital.
Concordamos com a necessidade de estudos/registos multicêntricos nacionais, abrangendo serviços de cardiologia, bem como de medicina interna, geriatria, urgência e emergência, de forma a melhor caracterizarmos a pandemia e implementarmos redes nacionais de tratamento dos doentes com insuficiência cardíaca, adequadas às necessidades. Será necessário um esforço organizativo a todos os níveis, local, bem como nacional12. Chegou a hora de partilharmos experiências, de coordenarmos esforços em programas de perceção, formação, estratégia organizacional e política, para melhorarmos o tratamento da insuficiência cardíaca em Portugal12.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.