A terapêutica de ressincronização cardíaca (TRC), combinada ou não com cardioversor‐desfibrilhador implantável, representa uma das inovações marcantes no tratamento da insuficiência cardíaca crónica (ICC), tendo a capacidade de repor a sincronia ventricular nos doentes que apresentem perturbação acentuada da condução intraventricular, nomeadamente com bloqueio completo do ramo esquerdo ou duração do QRS>150ms. A frequente presença destas alterações da condução elétrica (descrita em cerca de 1/3 dos casos com ICC grave), com consequente dessincronia mecânica e disfunção sistólica, associada à demonstração em vários estudos multicêntricos randomizados de grande dimensão, dos benefícios clínicos desta modalidade terapêutica, com melhoria da classe funcional e qualidade de vida e redução significativa da mortalidade e das admissões hospitalares por ICC, tornaram a TRC uma opção cada vez mais estudada e utilizada na prática clínica, com um crescimento sustentado, envolvendo mais especialistas, centros de referência e, sobretudo, muitos milhares de doentes tratados com sucesso1,2. Apesar dos resultados positivos consistentes da ressincronização eletromecânica, com melhoria dos parâmetros hemodinâmicos e do aumento do débito cardíaco, obtenção de remodelagem inversa e, num número significativo de casos, de normalização da função sistólica e volumes do ventrículo esquerdo, permanecem por ultrapassar várias questões relevantes. De facto, melhorar a taxa de não‐respondedores, que se mantém nos 30% apesar de critérios de seleção definidos nas recomendações internacionais, bem como qual a melhor configuração de pacing (biventricular ou multi‐site), ou, ainda, como otimizar a resposta à TRC na população com ICC e fibrilhação auricular (FA), presente em mais de 20% dos doentes incluídos no registo europeu de TRC, e em que esta opção terapêutica é considerada indicação classe IIa (nível de evidência B), pelo facto dos benefícios terapêuticos não serem tão significativos representam importantes aspetos clinicos ainda por resolver1. Na realidade, os doentes com FA submetidos a TRC são geralmente mais idosos, com mais comorbilidades e apresentam menores taxas de respondedores e maior mortalidade global, quando comparados com os que se encontram em ritmo sinusal1,3.
O artigo por Marques et al.4 compara diferentes configurações de pacing ventricular em doentes com FA permanente, QRS>120ms (sem obrigatoriedade de critérios de bloqueio completo de ramo esquerdo) e fração de ejeção (Fej) <40%, submetidos a implantação de TRC e, em avaliação única no 1.° mês pós‐implantação, analisa o seu impacto agudo no débito cardíaco (segundo método baseado em análise da pressão arterial invasiva), na duração do QRS e na Fej (calculada por ecocardiografia). Os autores sugerem que o pacing Tri‐V (ventrículo direito apical e septo alto+ventrículo esquerdo) obtém melhores resultados no que se refere à largura do QRS, débito cardíaco e Fej, quando comparado com o pacing convencional Bi‐V (ventrículo direito apical ou septo alto + ventrículo esquerdo). Não se trata dum estudo de seguimento clínico com informação relativa à taxa de respondedores clínicos e de remodelagem inversa, mas sim do comportamento de diferentes variáveis em agudo, no 1.° mês pós‐implantação, com análise das várias opções de configuração após 15 minutos de pacing estável. O foco num grupo de doentes com FA permanente torna o estudo mais aliciante face aos resultados considerados de menor amplitude nesta população. Na verdade, a questão do pacing Tri‐V tem vindo a ser abordada por diferentes autores, embora sempre com amostras de dimensão relativamente reduzida e sem incluir exclusivamente doentes com FA. Rogers et al., em 2012, num trabalho com 43 doentes, mostrou que o pacing Tri‐V, comparado com o Bi‐V convencional, se associou a melhores resultados clínicos e ecocardiográficos no 1.° ano de follow‐up5. Neste estudo, apesar de incluir doentes com Fej<35% e QRS>150ms, somente 14% dos doentes tinham FA. Além disso, nos 20 doentes em que se usou a configuração «ventrículo direito e septo alto+ventrículo esquerdo» não se obtiveram melhores resultados nos parâmetros ecocardiográficos, em comparação com o pacing Bi‐V. Yoshida et al., num estudo piloto em 21 doentes em ritmo sinusal (classes III e IV da NYHA, Fej<35% e QRS>120ms) mostrou, à semelhança de Marques et al., que, em agudo, o pacing Tri‐V (pacing ventricular direito apical e septal alto+ventrículo esquerdo) encurta o QRS de modo muito significativo, com melhoria no dP/dt ventricular esquerdo e débito cardíaco, da sincronia ventricular por ecocardiografia e da Fej, face ao pacing Bi‐V6. A possibilidade de mais opções nas configurações de «pacing multi‐site» poderá contribuir para uma melhor ressincronização ao permitir obter um padrão de ativação ventricular que mais se assemelhe à despolarização fisiológica, não só pela possibilidade de mais locais de estimulação, mas também por possibilitar uma otimização da programação dos intervalos VV de acordo com o tipo de dessincronia mecânica observado. No presente estudo, teria sido útil associar à avaliação efetuada uma análise de dessincronia baseada nas diferentes modalidades de ecocardiografia disponíveis (convencional – septal flash ou movimento de dessincronia apical –, TSI, TDI, radial strain, 3D), de modo a correlacionar de forma objetiva os benefícios hemodinâmicos observados com o grau de sincronia ventricular, até porque, nos casos em que o elétrodo ventricular esquerdo foi conectado ao canal auricular, houve sempre antecipação (25‐40ms) do pacing esquerdo, enquanto naqueles com o elétrodo septal alto do ventrículo direito conectado no canal auricular a estimulação foi sempre antecipada nesta localização. Esta potencial limitação, resultante da impossibilidade de pacing Tri‐V simultâneo, poderia ser testada com um estudo detalhado da dessincronia.
Numa era em que se assiste ao interesse crescente pelo pacing multi‐site (ou multi‐point), no tratamento da ICC continuam escassos os estudos envolvendo a opção de pacing ventricular direito dual‐site com pacing ventricular esquerdo. Nesse sentido, o presente trabalho aponta uma alternativa exequível, com segurança (sem aumento do tempo de procedimento ou de fluoroscopia) e potencial terapêutico num subgrupo representativo da população com ICC. Apesar da pequena dimensão da amostra, é interessante também a observação de que os resultados envolvendo as diferentes variáveis são sobreponíveis nas opções de pacing Bi‐V com o elétrodo em posição apical ou septal alta do ventrículo direito. Outros aspetos a considerar, que podem mostrar diferenças com a experiência de outros grupos, dizem respeito à percentagem mais baixa de doentes com cardiopatia isquémica (25%), ao número de doentes que foram submetidos a ablação da junção auriculoventricular (seis em 40; 15%) e, como apontado pelos autores, ao método utilizado para avaliação do débito cardíaco (VigileoTM/Flotrac IIITM da Edwards Lifesciences, Irvine, EUA), que não tem sido estudado neste contexto.
A necessidade de encontrar soluções viáveis para diminuir (e solucionar) o problema da taxa de não‐respondedores à TRC justifica o investimento nesta modalidade de pacing de ressincronização que, sendo multi‐site, terá o potencial de contribuir para melhorar padrões de ativação eletroanatómica e, consequentemente, o desempenho ventricular. No futuro, importa saber se a mesma modalidade trará benefícios em todos os doentes (“one‐size‐fit all”) ou se a seleção da melhor configuração Tri‐V deverá ser individualizada de acordo com o tipo de dessincronia identificada. O estudo TRIUMPH CRT, desenhado para avaliar o pacing Tri‐V otimizado (com base no intervalo de pré‐ejeção ventricular esquerdo medido durante a implantação) versus pacing Bi‐V convencional em doentes com disfunção sistólica grave e QRS>150ms, sem critérios de bloqueio completo do ramo esquerdo, trará informação útil nesta matéria tão importante.
A correlação entre resultados obtidos com variáveis eletrocardiográficas, hemodinâmicas ou ecocardiográficas em agudo e os benefícios clínicos mantidos necessitam de demonstração em estudos randomizados com amostras de maior dimensão e seguimento a longo prazo. Nesse sentido, a presente publicação é mais um contributo válido na definição de opções viáveis no tratamento não farmacológico da ICC.
Conflito de interessesO autor é membro do painel internacional de consultores da Medtronic, Biotronik e Livanova.