A publicação do artigo «Diagnóstico clínico e genético de miocardiopatia hipertrófica familiar: resultados em cardiologia pediátrica»1 exemplifica modelarmente as implicações atuais e futuras dos testes genéticos já disponíveis.
A utilização de testes genéticos, regulamentada em Portugal entre outros pela Lei n.° 12/2005 de 26 de janeiro e pelo Decreto‐Lei n.° 131/2014, será cada vez mais frequente adicionalmente a outros meios complementares ou em primeira linha. A sua evolução continua a ser extremamente rápida, como demonstrado pela miocardiopatia hipertrófica: hoje em dia é habitualmente utilizada a interpretação da sequenciação da totalidade da região codificante e das transições intrão‐exão de sete genes com referência a identificação de variações de sequência patogénicas ou provavelmente patogénicas em 60‐65% dos casos2. O alargamento dos genes estudados tem ganhos marginais – positividade de 60‐70% para 29 genes3. Em breve generalizar‐se‐á a sequenciação exómica total a ser posteriormente substituída pela sequenciação genómica total. A disponibilidade de informação crescente obriga a cada vez maior rigor na interpretação dos resultados, sendo obrigatório que o responsável pelo teste genético inclua no relatório não só a metodologia utilizada e os resultados como a sua interpretação e as recomendações adequadas a cada contexto clínico. De momento deve ser preferencialmente utilizada a orientação de 2015 do American College of Medical Genetics and Genomics que estipula como classificar uma variação de sequência como patogénica, provavelmente patogénica, de significado desconhecido, provavelmente benigna ou benigna4.
A miocardiopatia hipertrófica é habitualmente referida como tendo uma prevalência de 1 para 5003 e uma causa genética confirmada em mais de metade dos casos, o que nos deve levar a refletir sobre o motivo de identificação de apenas 10 famílias (três com caso índex pediátrico e sete adultos) com um resultado de teste genético positivo ao longo de 10 anos. A evolução dos testes genéticos e a sua crescente utilização por certo que estão a fazer aumentar rapidamente este número. O enriquecimento da amostra em situações de maior gravidade e/ou visibilidade também poderá justificar uma primeira avaliação cardiológica com uma mediana correspondente ao limite inferior do recomendado (dez anos) e uma identificação de variações de sequência patogénicas em 14 (ou 15) dos 20 casos. A agregação dos resultados dos três casos pediátricos referenciados como casos índex com os dos 17 familiares em primeiro grau de um doente dificulta, entre outras coisas, a avaliação da idade da realização da primeira avaliação cardiológica neste último grupo (que por certo não incluirá o caso em que tal foi realizado com um mês de idade). A identificação de uma variação de sequência patogénica em 11 (ou 12) dos 17 familiares em primeiro grau de um doente (65‐71%) e a presença de fenótipo positivo na primeira avaliação em quatro dos 11 (ou 12) também reforça o possível enviesamento da amostra.
Os genes avaliados foram os seis referidos como sendo os responsáveis pela grande maioria dos casos (MYH7 40%, MYPBC3 40%, TNNT2 5%, TNNI3 5%, TPM1 2%, MYL3 1%)3 e outros dois: MYL2 e ACTC1. Todas as mutações identificadas são referentes aos primeiros. A avaliação da distribuição das variações de sequência identificadas é limitada pela dimensão da amostra e pela inclusão de 18 mutações de 14 crianças, contabilizando para este efeito variações de sequência de significado incerto ou provavelmente benignas.
Face à inexistência de um diagnóstico genético confirmado, a sua hereditariedade maioritariamente autossómica dominante com penetrância incompleta e expressividade variável obriga a avaliar periodicamente muitos familiares de cada caso índex pelas vantagens individuais potencialmente daqui decorrentes que podem chegar à prevenção da morte súbita2.
A identificação da causa genética da doença no caso índex permite avaliar todos os familiares na idade que estabelece a indicação para vigilância específica (como referido a eletrocardiografia, monitorização Holter de 24 horas, prova de esforço convencional, ecocardiografia, ecocardiografia transtorácica e ecocardiograma de esforço, a que se poderá adicionar a ressonância magnética2), no caso aos 10‐12 anos, e confirmar ou excluir a presença da variação de sequência patogénica. Estes testes genéticos preditivos obrigam ao consentimento informado, esclarecido e livre escrito nos termos da norma da Direção‐Geral da Saúde, disponível na página deste organismo oficial5, e devem obrigatoriamente ser realizados em consultas da especialidade de genética médica. Permitem a abstenção de intervenção nos familiares sem risco específico e o reforço da imperiosidade de vigilância e tratamento nos familiares com risco confirmado.
A utilidade dos testes genéticos também permite reforçar o aconselhamento genético individual e de casais e disponibilizar intervenções na esfera reprodutiva, mas tem aqui o seu limite: de momento não pode informar sobre a forma e a idade em que a doença vai surgir e como vai progredir, para o que se deve necessariamente recorrer a outros meios complementares de diagnóstico.
O já citado artigo, publicado neste número, «Diagnóstico clínico e genético de miocardiopatia hipertrófica familiar: resultados em cardiologia pediátrica»1, não tem apenas particular relevância para todos os profissionais que participam na prestação de cuidados a doentes com miocardiopatia hipertrófica e seus familiares, como a sua leitura deve priorizar a reflexão sobre as estratégias mais corretas de introdução dos testes genéticos diagnósticos não apenas neste grupo de doentes e famílias, mas de outros da mesma ou de outras especialidades médicas.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.