A origem anómala das artérias coronárias é um achado pouco comum e que pode constituir um desafio diagnóstico.
Apresenta-se o caso clínico de uma doente com dor torácica recorrente durante o esforço, admitida com síndrome coronária aguda e cuja coronariografia não revelou lesões coronárias epicárdicas. Foi constatada origem da coronária direita na parede ântero-lateral esquerda da aorta, acima dos seios de Valsalva, revelando a origem anómala dessa artéria e potencial compressão pela artéria pulmonar, o que foi confirmado por angio-TC. A doente foi submetida a revascularização cirúrgica, com bom resultado.
Os autores salientam a necessidade de incluir a potencial compressão de coronárias com origem anómala pela artéria pulmonar, no diagnóstico diferencial da dor torácica recorrente com o esforço e enfarte agudo do miocárdio sem estenoses coronárias significativas.
Congenital anomalies of the coronary arteries are uncommon and can present a diagnostic challenge.
The authors present the case of a patient with recurrent chest pain during exertion admitted for acute coronary syndrome. Coronary angiography revealed no coronary lesions but showed that the right coronary artery originated from the anterolateral aortic wall, above the sinuses of Valsalva, leading to suspicion of compression by the pulmonary artery, confirmed by CT angiography. The patient underwent surgical revascularization with a good result.
The authors highlight the need to consider compression of an anomalous coronary artery by the pulmonary artery in the differential diagnosis of recurrent chest pain on exertion and acute myocardial infarction without significant coronary stenosis.
As anomalias congénitas das artérias coronárias ocorrem em 0,2-1,2% da população geral1. A maioria dos doentes com origem anómala das artérias coronárias são assintomáticos e, frequentemente, o diagnóstico é feito incidentalmente durante uma coronariografia ou angio-TC coronária. O seu significado clínico depende de várias variáveis, entre elas, a sua origem, trajeto e quantidade de miocárdio perfundido. Os sintomas, quando presentes, resultam de isquemia miocárdica e podem manifestar-se sob a forma de angina, arritmias, síncope, enfarte do miocárdio ou morte súbita. O diagnóstico desta entidade é fundamental para o tratamento dirigido.
Caso clínicoDoente do sexo feminino, 56 anos, com antecedentes de hipertensão arterial, hipotiroidismo e ansiedade. Recorreu ao serviço de urgência por dor precordial, constritiva, sem irradiação, com início durante treino de hidroginástica, associada a dispneia e alívio cerca de 20 minutos após o repouso. Referia episódios prévios semelhantes mas de duração mais curta, sempre desencadeados pelo esforço, sobretudo pelo mergulho. O eletrocardiograma não revelou alterações de relevo. Analiticamente apresentava elevação discreta dos marcadores de necrose miocárdica. Foi admitida com o diagnóstico de síndrome coronária aguda sem elevação ST. O ecocardiograma transtorácico revelou boa função sistólica biventricular, sem alterações da contractilidade segmentar. O cateterismo cardíaco revelou «dominância direita, artérias coronárias sem estenoses significativas, origem da coronária direita (CD) na face lateral da aorta ascendente, acima dos seios de Valsalva» (Figura 1), revelando a origem anómala dessa artéria e potencial compressão entre os dois grandes vasos. Realizada prova de esforço que documentou isquemia (Figura 2, painel A). A angio-TC das artérias coronárias revelou «origem da CD na parede ântero-lateral esquerda da aorta, entre esta e a porção ascendente da artéria pulmonar, apresentando o segmento proximal um trajeto de circunvolução paralelo à aorta com relação de proximidade estreita com a artéria pulmonar» (Figura 3). Após o diagnóstico de isquemia miocárdica, em contexto de origem anómala da coronária direita, a doente foi orientada para cirurgia de revascularização miocárdica. Enquanto aguardou por essa cirurgia manteve episódios recorrentes de angor, apesar de terapêutica anti-isquémica ótima. A inspeção cirúrgica confirmou a origem da CD na parede ântero-lateral esquerda da aorta ascendente, acima dos seios de Valsalva, com trajeto extramural e interarterial, tendo sido realizada anastomose látero-lateral da coronária direita à parede anterior da aorta (Figura 4, painéis A e B). A prova de esforço realizada no pós-operatório não evidenciou isquemia (Figura 2, painel B). Repetiu angio-TC das artérias coronárias no pós-operatório (Figura 4, painéis B e C) que revelou bom resultado cirúrgico. Atualmente, 15 meses após cirurgia, a doente encontra-se assintomática, sem recidiva de angor.
Angiografia coronária; painel A (incidência OAD30°; caud20.°) demonstrando a coronária esquerda sem lesões epicárdicas; painéis B (incidência OAE20°; cran20°) e C (OAD30°) demonstrando a coronária direita sem lesões epicárdicas e com origem na parede ântero-lateral esquerda da aorta, acima dos seios coronários.
Tomografia computorizada multidetetores; painéis A e B: 3D volume-rendered demonstrando a origem da coronária direita na parede ântero-lateral esquerda da aorta, acima os seios de Valsalva e com trajeto inicial entre a aorta e a porção ascendente da artéria pulmonar; painéis C, D e E: imagens de reconstrução multiplanar demonstrando o trajeto extramural e interarterial da coronária direita.
RCA: coronária direita; Pulmonary ASC: artéria pulmonar; LM: tronco comum.
Painel A: dissecção cirúrgica do início da coronária direita revelando a sua origem na parede ântero-lateral esquerda da aorta e trajeto extramural e interarterial. Painel B: após transeção da aorta, constata-se origem coronária acima dos seios de Valsalva, posteriormente à comissura entre as cúspides direita e esquerda; notar a obliquidade do ostium coronário. Painéis C e D: tomografia computorizada multidetetores realizada após cirurgia de revascularização do miocárdio. As imagens de reconstrução multiplanar demonstram a anastomose látero-lateral (setas). As imagens de densidade elevada correspondem aos clips cirúrgicos empregues.
As artérias coronárias normais e anómalas têm sido classificadas com base em vários critérios. O sistema proposto por Angelini, em 1988, inclui nomenclatura e definições de variações do normal das artérias coronárias bem como das anomalias coronárias.
A origem anómala da CD é uma anomalia congénita rara2. A CD anómala origina-se, habitualmente, de duas localizações principais: seio coronário esquerdo ou da parede anterior da aorta, acima do seio coronário3. Na maioria das vezes estas anomalias não têm tradução clínica significativa, no entanto, podem estar associadas a morbilidade considerável ou mesmo a morte súbita4. O mecanismo da isquemia miocárdica é primariamente uma obstrução dinâmica, sendo as possíveis causas da mesma a obstrução ostial devido ao ângulo agudo entre o ostium e a artéria coronária; a compressão da CD entre a aorta e a artéria pulmonar; e o alongamento da CD com a distensão aórtica/pulmonar2.
A definição da anatomia coronária e relação com estruturas circundantes é muito importante na avaliação pré-operatória, permitindo uma correta avaliação da anomalia e programação da reparação cirúrgica. Nesta avaliação, a angio-TC multidetetores, permitindo a visualização tridimensional das artérias coronárias com alta resolução espacial, é o método de eleição no estudo destes doentes5.
Nas últimas décadas tem-se assistido a uma evolução crescente nas técnicas cirúrgicas usadas no tratamento das anomalias das artérias coronárias. As anomalias que mais frequentemente necessitam de intervenção cirúrgica incluem as fístulas das artérias coronárias, origem anómala das artérias coronárias na artéria pulmonar e origem anómala das artérias coronárias na aorta6. A escolha da intervenção cirúrgica para cada tipo de anomalia coronária depende de muitas variáveis, nomeadamente anatómicas, fisiológicas e associadas ao doente. Apesar da progressão das técnicas e melhoria dos resultados, ainda existe controvérsia acerca do tratamento mais apropriado para este tipo de doentes.
No caso particular de origem anómala da CD na face anterior da aorta ou, como no presente caso, na face lateral da aorta, com trajeto extramural e interarterial entre a aorta e a artéria pulmonar, são várias as opções cirúrgicas disponíveis, entre elas a reimplantação do ostium coronário e a cirurgia de bypass coronário, com enxerto de artéria mamária ou safena, com ou sem laqueação da artéria anómala6. O objetivo da intervenção é garantir a perfusão adequada do sistema arterial anómalo a jusante do local ou locais de obstrução arterial potencial. A escolha do tratamento mais adequado vai depender da anatomia particular do doente e da possibilidade ou impossibilidade de reimplantação do ostium coronário. Se a anatomia for favorável a reimplantação do ostium é um procedimento apropriado; se tal não for possível, o bypass coronário com artéria mamária ou veia safena permanece como uma boa opção, havendo ainda alguma controvérsia entre a seleção por artérias mamárias ou veia safena, tendo em conta a maior patência a longo prazo, mas a maior probabilidade de oclusão dos enxertos arteriais usados no bypass de vasos com fluxo competitivo6–8. Estão descritos bons resultados com ambos os tipos de cirurgia, reimplantação do ostium e cirurgia de bypass6. Um ponto adicional de discussão é a decisão de laqueação da artéria coronária anómala patente, de forma a eliminar o fluxo competitivo6.
Outra possibilidade de tratamento destas lesões é a intervenção coronária percutânea (ICP). Trata-se de um procedimento difícil, exigindo uma seleção adequada do material de intervenção e perícia e experiência do operador9. Estão descritos casos com bom resultado de ICP a longo prazo e casos em que houve complicações, como falência da ICP e necessidade de revascularização cirúrgica urgente, bem como fratura do stent9–10.
No presente caso, dada a origem alta e trajeto extramural da coronária direita (Figura 4, painel A), a sua reimplantação levaria a uma angulação exagerada do seu trajeto inicial ou ainda a uma implantação ainda mais alta e anormal, optando-se pela realização de uma anastomose látero-lateral à parede anterior da aorta, com bons resultados clínicos e no teste de isquemia.
De realçar que o impacto prognóstico da origem coronária anómala pode diferir de acordo com a artéria coronária envolvida; o risco de morte súbita é significativamente superior quando a coronária esquerda se origina no seio de Valsalva direito comparativamente com a origem da CD no seio coronário esquerdo, facto que deve ser tido em conta na abordagem terapêutica destas anomalias11,12.
ConclusãoEste caso ilustra a importância da suspeita clínica destas anomalias em doentes com angor recorrente e sem evidência de doença coronária epicárdica. Salienta-se a relevância do estudo por angio-TC em doentes com clínica de angor e origem da CD na face anterior ou lateral da aorta, acima dos seios coronários. A revascularização cirúrgica constitui uma possibilidade terapêutica, com bons resultados a longo prazo.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsinki.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.