A questão das migrações assume um caráter universal e continua presente nos tempos atuais1. Associado a essas migrações, aparecem, não raramente, problemas de adaptação que podem originar um aumento do risco cardiovascular.
É sabido que a grande maioria dos países em desenvolvimento não dispõe de sistemas de registo fidedigno que permitam avaliar, quer índices de mortalidade, quer a quantificação dos fatores de risco cardiovascular no mundo real. A carga real das doenças cardiovasculares nesses países, assim como projeções para o futuro, têm que ser baseadas em registos locais ou inferências doutros países da região com dados apropriados, por exemplo2.
No entanto, e paradoxalmente, a carga das doenças cardiovasculares de pessoas de ascendência africana a viver nos Estados Unidos, e em menor grau nas Caraíbas e no Reino Unido, tem sido objeto de numerosos estudos nos últimos 50 anos. A título de exemplo, sabe‐se que os americanos negros têm taxas de hipertensão cerca de 50% mais elevadas e, como consequência, um aumento significativo da mortalidade por acidente vascular cerebral3,4.
Alguns estudos já compararam populações africanas e europeias5 e outros já mostraram aumento do risco cardiovascular em imigrantes para o continente europeu6,7; no entanto, ao pesquisar globalmente a literatura, fica‐se com a impressão de que esse assunto parecer ter sido abordado com mais profundidade na comunidade americana e afro‐americana1,2 do que na europeia.
O trabalho de Tavares8, publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, aborda, de uma forma original e inédita, a questão do perfil de risco cardiovascular e da integração social de estudantes universitários de um país africano (Cabo Verde) a viver em Portugal, compara‐os com o perfil de estudantes portugueses brancos e com o perfil de estudantes cabo‐verdianos a viver em Cabo Verde.
Verificaram‐se alguns sinais sugestivos de má adaptação dos estudantes cabo‐verdianos a viver em Portugal: menor atividade física, abuso de drogas mais frequente, queixas mais frequentes relativas à dificuldade de integração e sinais de dificuldades económicas, em comparação com os outros dois grupos.
O estudo revela ainda que, mesmo após um curto período de permanência como imigrantes em Portugal, aquele grupo de estudantes africanos mostra já alterações significativas do perfil de risco cardiovascular, tais como valores mais elevados de pressão arterial, de peso corporal, de ingestão de sal, de rigidez aórtica e de albuminuria, quando comparados com indivíduos nascidos e residentes no país de destino. Se comparados com indivíduos nascidos e residentes no país de origem, também se verificou um aumento de ingestão de sal, peso corporal e albuminuria.
Como os autores referem, o aumento do risco cardiovascular verificado nessa população estará relacionado com dificuldades na adaptação ao novo país e com adoção de hábitos de vida menos saudáveis, o que pode justificar a tomada de medidas preventivas e precoces, no sentido de impedir ou atenuar esse aumento de risco.
Este estudo tem ainda duas particularidades: mostra‐nos o aumento do risco cardiovascular numa população jovem, com esperança de vida de várias décadas; não sendo fácil a modificação de comportamentos, será de supor que a persistência no tempo desses fatores de risco irá comprometer a saúde cardiovascular anos mais tarde, o que é preocupante para a comunidade9.
Por outro lado, não deixa de ser curioso que o nível de educação diferenciado e elevado dessa população de estudantes universitários, que poderia funcionar como uma proteção contra influências negativas da mudança de ambiente, acabe por não ter esse efeito; de facto, e como os autores também salientam, apareceram alterações significativas do perfil de risco, mesmo com a curta estada num país estranho.
Sabe‐se que existem vários fatores de ordem social, cultural e económica que contribuem para o desenvolvimento, a manutenção e a alteração dos padrões de comportamento perante a saúde. Mas, o que importa salientar, é que a adoção de comportamentos e estilos de vida saudáveis demonstrou reduzir o risco de doenças cardiovasculares10. Nesse sentido, tem sido dado realce a um outro aspeto, o conhecimento dos fatores de risco modificáveis, que não foi especificamente abordado neste estudo. De facto, esse conhecimento parece ser um requisito para modificação de comportamentos. De acordo com modelos de comportamento para a saúde, o conhecimento das consequências negativas para a saúde de um determinado comportamento é uma condição necessária, embora não necessariamente suficiente, para a sua alteração11–13.
Essa vertente do conhecimento deverá ser tida em conta nas medidas a tomar para controlo dos fatores de risco cardiovascular.
Globalmente, este trabalho contribui, indubitavelmente, para aprofundar o conhecimento do risco cardiovascular em migrantes do continente europeu e abre portas a outros estudos nesta área.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.