Foi com grande interesse que lemos a exaustiva revisão publicada por Machado et al. relativamente às «alterações eletrocardiográficas benignas e patológicas em atletas»1.
Como mencionado no artigo, os critérios de Seattle2 são uma das ferramentas mais utilizadas atualmente na avaliação do eletrocardiograma (ECG) do atleta, de forma a identificar e diferenciar as alterações ditas patológicas das alterações fisiológicas relacionadas com a atividade física intensa. Estes critérios vieram melhorar a taxa de falsos‐positivos mantendo a capacidade diagnóstica em certas populações3–5, quando comparada com as recomendações previamente existentes de interpretação do ECG no atleta, emitidas pela Sociedade Europeia de Cardiologia (SEC), primeiro em 20056 e com o seu update de 20107.
No entanto, e apesar de os critérios de Seattle terem sido a primeira guideline a abordar a questão racial, endereçando especificações nos indivíduos de origem africana/afro‐caribenha, nos quais a incidência de morte súbita cardíaca é mais elevada8, mantém‐se uma taxa elevada de falsos positivos, especialmente nos indivíduos de raça negra3–5,9,10. Estas taxas de falsos positivos aumentam os custos inerentes ao rastreio pré‐desportivo7, assim como acarretam consequências relativamente à abstenção desportiva e fatores emocionais.
Relativamente a esta temática, Sheikh et al.10 publicaram um artigo onde comparam as alterações no ECG entre atletas de raça branca e de raça negra e apresentam um novo set de «critérios refinados» que, sem perderem a sensibilidade, melhoram a especificidade, especialmente nos atletas de raça negra. Estes novos critérios baseiam‐se no baixo rendimento demonstrado pelos achados ECG isolados (em atletas assintomáticos, sem história familiar ou alterações no exame físico) de dilatação auricular (direita ou esquerda), desvio do eixo (direito ou esquerdo) e hipertrofia ventricular direita (Tabela 1). Neste estudo, foram avaliados retrospetivamente os ECG de 5505 atletas de elite (4297 atletas de raça branca e 1208 de raça negra), maioritariamente do sexo masculino. Foram aplicados os critérios propostos pela SEC7, os critérios de Seattle2 e os novos «critérios refinados»10, sendo que a taxa total de ECG anormais identificados pelos diferentes critérios foi de 21,5%, 9,6% e 6,6%, respetivamente. A diminuição de ECG identificados como anormais foi mais acentuada nos atletas de raça negra, passando de 40,4% pelos critérios SEC para 18,4% pelos de Seattle e para 11,5% pelos critérios refinados. Nos atletas de raça branca essa diminuição também existiu, mas de forma menos marcada, sendo de 16,2%, 7,1% e 5,3%, respetivamente. Estes resultados representam uma redução de ECG anormais de 37,5% nos atletas negros e 25,4% nos brancos em relação aos critérios de Seattle. Em termos de especificidade, os «critérios refinados» atingem o valor de 94,1% para os atletas brancos e de 84,2% nos de raça negra, com resultados superiores aos critérios da SEC (73,8% e 40,3%) e de Seattle (92,1% e 79,3%). Esta melhoria na especificidade foi acompanhada pela manutenção da sensibilidade, tendo os três critérios identificado todos os atletas com patologia cardíaca major e apresentando sensibilidades de 98,1% quando aplicados a uma população de atletas com miocardiopatia hipertrófica. Algumas limitações têm de ser apontadas a este estudo, dado que, apesar de terem sido avaliadas a história clínica, exame objetivo e ECG de 5505 atletas (1208 atletas de raça negra e 4297 de raça branca), esta avaliação foi efetuada de forma retrospetiva e os critérios derivam de atletas definidos como de «elite», não sendo seguro que estes dados se possam generalizar a outras populações10. Outro aspeto a considerar é o facto de não ter sido realizado estudo ecocardiográfico a todos os atletas, podendo ter sido subestimada a prevalência de alterações minor10.
Definição de ECG anormal em atletas utilizando os «critérios refinados»
Alterações normais relacionadas com o treino (sem necessidade de investigação adicional em atletas assintomáticos, sem história familiar ou exame físico anormal) |
Bradicardia sinusal |
Bloqueio auriculoventricular de 1.° grau |
Bloqueio incompleto de ramo direito |
Repolarização precoce |
Critérios isolados de voltagem para hipertrofia ventricular esquerda |
Alterações «borderline» (possível necessidade investigação adicional se presença de 2 ou mais) |
Dilatação auricular esquerda |
Dilatação auricular direita |
Desvio esquerdo do eixo cardíaco |
Desvio direito do eixo cardíaco |
Hipertrofia ventricular direita |
Inversão da onda T em atletas negros até V4 (precedida de elevação ST convexa característica) |
Alterações não relacionadas com o treino (necessidade de investigação adicional) |
Depressão do segmento ST |
Ondas Q patológicas |
Pré‐excitação ventricular |
Inversão onda T para além de V1 (atletas brancos) e V4 (atletas negros) |
Bloqueio completo de ramo (direito ou esquerdo) |
QTc ≥ 470ms em homens e ≥ 480ms em mulheres |
Padrão de brugada |
Arritmias ventriculares ou auriculares |
≥ 2 contrações ventriculares precoces em traçado de 10 segundos |
No entanto, estes dados foram já comprovados numa população de atletas masculinos (1367 de origem árabe, 748 negros e 376 caucasianos), tendo os «critérios refinados» apresentado melhor desempenho, com identificação de ECG anormal em 5,3% da população versus 11,6% (Seattle) e 22,3% (SEC), com os três critérios a apresentarem uma sensibilidade de 100%9. Os atletas de raça negra continuaram, no entanto, a apresentar maior prevalência de ECG anormais (10%) quando comparados com os atletas de origem árabe (3,6%) e caucasianos (2,1%), sendo no entanto menor do que pelos critérios de Seattle (respetivamente, 16,6%, 9,7% e 8,5%) e pelos da SEC (29,9%, 19,1% e 18,6%).
De realçar ainda que já após a aceitação do artigo por Machado et al.1, novos dados sugerem que a combinação da presença de elevação do ponto J e inversão da onda T confinada a V1‐V4 poderá ainda melhorar a diferenciação entre padrão fisiológico e padrão patológico nesta situação11. Neste estudo, foram comparados os padrões eletrocardiográficos da inversão da onda T nas derivações anteriores (inversão onda T≥1mm em≥2 derivações contíguas de V1‐V4) de atletas saudáveis (n=80), doentes com miocardiopatia hipertrófica (n=95, 26 dos quais atletas) e doentes com displasia arritmogénica do ventrículo direito (n=58, 9 dos quais atletas), e verificou‐se que a presença de elevação<1mm nas derivações anteriores com inversão da onda T e que a inversão da onda T para além de V4 foram preditores independentes para displasia arritmogénica do ventrículo direito e miocardiopatia hipertrófica. Por outro lado, a combinação da elevação do ponto J≥1mm e inversão da onda T (não se estendendo para além de V4) excluíram estas patologias com uma sensibilidade de 100% e especificidade de 55% (Figura 1)11.
Derivação V3 aumentada em diferentes condições clínicas. Cima: notar a elevação do ponto J antecedendo a inversão da onda T (ambos os painéis de atletas saudáveis). Meio: notar a elevação do segmento ST (sem elevação do ponto J) antecedendo a inversão da onda T (ambos os painéis de doentes com miocardiopatia hipertrófica). Em baixo: notar a ausência de elevação do ponto J antecedendo a inversão da onda T (ambos os painéis de doentes com displasia arritmogénica do ventrículo direito). Setas indicam «ponto J». Adaptado de Calore et al.11.
Apesar de referido no artigo de Machado et al.1, que a exclusão de «algumas alterações do ECG consideradas ainda «patológicas», mesmo quando isoladas» pode vir a melhorar a taxa de falsos positivos, com referência ao estudo de Sheikh et al.10 pensamos que não foi dado a ênfase suficiente a estes novos «critérios refinados», que embora não se encontrem ainda refletidos nas guidelines, muito provavelmente farão parte das mesmas e permitirão a redução de falsos‐positivos sem comprometer a sensibilidade diagnóstica.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.