Os tumores cardíacos primários (TCP) são muito raros, com uma incidência de 0,001 a 0,030%. Os tumores benignos são os mais frequentes, representando cerca de 80% dos TCP; os sarcomas são responsáveis por 95% dos tumores malignos.
Os autores relatam o caso de uma doente de 75 anos de idade a quem foi diagnosticada uma massa na aurícula esquerda, que impressionava pelas suas dimensões. O diagnóstico final revelou tratar-se de um sarcoma cardíaco indiferenciado. Este tumor representa um verdadeiro desafio não só no diagnóstico atempado, mas principalmente a nível da terapêutica a instituir.
Primary cardiac tumors are rare, with an incidence ranging from 0.0001% to 0.030%; 80% are benign, while sarcomas account for 95% of malignant tumors.
The authors report the case of a 75-year-old patient with a giant mass in the left atrium. The final diagnosis was of an undifferentiated cardiac sarcoma. This tumor represents a real challenge not only for timely diagnosis, but especially the therapeutic approach to adopt.
Os tumores cardíacos primários malignos são extremamente raros sendo que, destes, os sarcomas são os mais frequentes1.
Os sarcomas cardíacos têm uma origem mesenquimal, podendo afetar qualquer parte do coração, sendo os mais frequentes o angiossarcoma, o sarcoma cardíaco indiferenciado (SCI), o histiocitoma fibroso maligno e o leiomiossarcoma2,3. Podem surgir em qualquer idade, mas são mais frequentes na quarta década de vida, não apresentando predominância de sexo4.
Cerca de 50% estão localizados na aurícula esquerda (no caso do SCI cerca de 81%). O SCI define-se por não apresentar um padrão histológico específico. Tem origem nos fibroblastos ou histioblastos e, pela sua forma e localização, muitas vezes é inicialmente diagnosticado como tratando-se de um provável mixoma2. O envolvimento valvular tem sido relatado em 50% dos casos. A propensão para a metastização não é tão frequente como nos outros tipos de sarcomas (por exemplo, os angiossarcomas), sendo que, na maioria das vezes, os doentes acabam por morrer de doença local cardíaca antes do desenvolvimento de metástases. Estes tumores podem manifestar-se com clínica de insuficiência cardíaca, dispneia, edema agudo do pulmão, síncope, embolização sistémica, sintomas constitucionais, fadiga, entre outros5. Quanto aos exames complementares de diagnóstico, consideram-se aqueles que são mais frequentemente utilizados na avaliação de lesões cardíacas em geral, desde o ecocardiograma transtorácico e transesofágico, a ressonância magnética (RM) e a tomografia computadorizada (TC)3,5.
Macroscopicamente este tipo de tumor pode apresentar uma coloração branca-amarelada, com áreas de necrose e extensa infiltração do miocárdio e estruturas cardíacas. A histologia fornece o diagnóstico definitivo. Microscopicamente pode ser heterogéneo, com arranjo celular estoriforme, marcado pleomorfismo, elevada atividade mitótica e, por vezes, focos de necrose. A imunohistoquímica é fundamental, sendo os marcadores epiteliais, neuronais ou endoteliais geralmente negativos e a vimetina tipicamente positiva4.
O tratamento preconizado é a exérese cirúrgica completa (sempre que possível), a qual é muitas vezes difícil por existir invasão difusa das estruturas cardíacas ou localização do tumor em locais anatómicos que exigem uma reconstrução cirúrgica complexa4. Sendo a ressecção incompleta, mais de 90% dos doentes não sobrevivem mais de um ano, mesmo se empregue terapêutica não cirúrgica adjuvante. Não existe acordo devidamente fundamentado sobre a eficácia deste tipo de terapêuticas. A quimioterapia, segundo alguns autores, pode ser recomendada, mas existem estudos nos quais não se encontrou benefício da mesma6,7. A radioterapia pós-operatória pode ser considerada, mas tem ainda valor limitado pela toxicidade cardíaca que a radiação pode causar. O transplante cardíaco pode ser uma opção em doentes devidamente selecionados4.
No presente artigo, os autores descrevem o caso clínico de uma doente com o diagnóstico de SCI de grandes dimensões. Pretendem rever o papel da literatura, da clínica e dos diferentes exames complementares de diagnóstico neste tipo de patologia muito pouco frequente e documentada, e cujo tratamento ainda não se encontra devidamente consolidado.
Caso clínicoO presente caso remete-se a uma doente do sexo feminino, raça caucasiana, de 75 anos de idade, tendo como antecedentes pessoais conhecidos hipertensão arterial essencial e diabetes mellitus de tipo 2; medicada no domicílio com antidiabéticos orais (metformina 850mg 2 vezes por dia e vildagliptina 50mg 2 vezes por dia) e diurético (furosemida 20mg/d). A doente apresentava um quadro de sintomas constitucionais com perda de cerca de 20kg de peso durante os últimos 12 meses e clínica de dispneia para médios esforços, bem como edemas dos membros inferiores nos seis meses prévios à admissão.
Recorreu ao Serviço de Urgência por agravamento dos sintomas, com dispneia para pequenos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna. Ao exame objetivo inicial apresentava-se taquipneica, com turgescência venosa jugular a 45°, edemas moderados dos membros inferiores, até à raiz da coxa; estabilidade elétrica e hemodinâmica, com saturações de oxigénio, a ar ambiente, de 90%. Na auscultação cardíaca era audível um sopro sistólico de grau ii/vi no bordo esquerdo do esterno e um sopro mesodiastólico ii/vi apical. A gasimetria era compatível com insuficiência respiratória de tipo i. O eletrocardiograma (ECG) mostrava ritmo sinusal com alterações inespecíficas da repolarização ventricular. Analiticamente, verificadas as seguintes alterações relevantes: anemia (hemoglobina 9,2g/dL) normocítica e normocrómica, marcadores de necrose do miocárdio negativos, proteína C reactiva de 3,1mg/dL, pró-Brain Natriuretic Peptide 7 332 pg/mL e D-dímeros de 2mg/mL. Na radiografia do tórax observava-se aumento do índice cardiotorácico e derrame pleural bilateral. Realizou-se, nesta sequência, angiotomografia computadorizada do tórax por suspeita de tromboembolismo pulmonar (uma das hipóteses postuladas inicialmente), tendo a mesma excluído este diagnóstico, observando-se derrame pleural bilateral de médio volume, bem como uma lesão volumosa na aurícula esquerda e gânglios mediastínicos infracentimétricos. Dada a clínica e os achados nos exames iniciais, foi internada para tratamento, bem como para investigação adicional. O ecocardiograma transtorácico e, posteriormente, transesofágico, revelaram uma massa na aurícula esquerda, de contornos definidos, apensa ao septo interauricular, de dimensões aproximadas de 5,4 por 3,2cm, com protusão em diástole para o ventrículo esquerdo (Figuras 1 e 2). Esta lesão condicionava obstrução significativa ao fluxo mitral (com gradiente máximo de 20mmHg e médio de 13mmHg; área funcional de 1,0cm2 por tempo de hemipressão e 0,8cm2 pela equação de continuidade). Verificou-se igualmente a existência de insuficiência tricúspide grave (dilatação do anel, com cerca de 41mm), com pressão sistólica da artéria pulmonar estimada em 100mmHg. Com o objetivo de orientação cirúrgica, realizou-se cateterismo cardíaco observando-se apenas doença parietal não significativa no segmento médio da descendente anterior. Dadas as dimensões da lesão, a obstrução que esta condicionava, bem como o quadro de insuficiência cardíaca, a doente foi rapidamente proposta e aceite para cirurgia. Pela localização da massa e pelas manifestações clínicas a hipótese diagnóstica inicial foi de mixoma cardíaco.
Após 5 d da admissão hospitalar a doente foi submetida a cirurgia para exérese da lesão. Esta consistiu na abertura do septo interauricular, através da fossa ovale, e extensão da incisão para a aurícula esquerda (Figura 3). Posteriormente, foi observada lesão tumoral com invasão do septo interauricular, parte do teto da aurícula esquerda, com projeção através da válvula mitral, com aparente invasão da mesma a nível do folheto anterior. Foi efetuada a exérese da massa, que mostrou ter uma morfologia nodular, com superfície bosselada, constituída por tecidos de consistência relativamente mole, elástica e com áreas de hemorragia, com peso aproximado de 55g e de dimensões 7,4cm × 5cm × 3cm (Figura 4). Aquando da sua observação direta, a hipótese de mixoma surgiu como um diagnóstico menos plausível. Após a exérese tumoral, verificou-se uma válvula mitral francamente insuficiente, sem coaptação central dos folhetos. Foi necessária a sua substituição por prótese biológica, sendo removido o folheto anterior e preservado o posterior. A inspeção da válvula tricúspide e o ecocardiograma transesofágico intra-operatório, após substituição valvular mitral, não revelavam insuficiência grave, mas sim moderada, não se tendo optado por realização de plastia. A cirurgia revelou-se morosa e mais complexa do que o espectável.
O pós-operatório foi complicado pela ocorrência de um acidente vascular cerebral ao 2.° d, manifestando-se clinicamente por hemiparesia esquerda de predomínio braquial e sendo possível observar na TC cerebral um enfarte parcial da circulação anterior.
Aquando da alta, a doente apresentava melhoria significativa em termos neurológicos, com parésia residual a nível braquial. Dado o pós-operatório prolongado com internamento de cerca de um mês, a doente teve alta para uma unidade de cuidados continuados, onde iniciou reabilitação. Posteriormente, foi conhecido o resultado da análise anátomo-patológica, que revelou proliferação celular com marcado pleomorfismo, presença de mitoses atípicas e imunorreacção apenas com o soro anti-vimetina, sendo compatível, morfológica e imunohistoquimicamente, com SCI. Os mesmos achados histopatológicos foram encontrados a nível do folheto anterior da mitral que foi removido, bem como na biópsia do aparelho subvalvular (preservado).
Foi discutida a estratégia terapêutica, tendo sido definida a decisão multidisciplinar de não submeter a doente a químio ou radioterapia adjuvantes. Cerca de dois meses após a cirurgia foi repetido o ecocardiograma, não se visualizando imagens sugestivas de massas intracardíacas; o estudo tomográfico também não revelou evidência/sinais compatíveis com metastização, não se observando derrame pleural. Ao fim de quase seis meses após a cirurgia, a doente mantém-se em programa de reabilitação e de fisioterapia, com défices neurológicos residuais, de predomínio braquial, em classe ii da NYHA.
DiscussãoExistem poucos casos descritos de SCI, nomeadamente com estas dimensões, em que a lesão tumoral ocupa, praticamente, toda a aurícula esquerda.
Inicialmente, pela sua localização e forma, foi equacionada a possibilidade se tratar de um mixoma, sendo esta hipótese questionada aquando da visualização da peça operatória e excluída pela análise anátomo-patológica.
Nesta doente, o processo tumoral manifestou-se, essencialmente, com clínica de insuficiência cardíaca e sintomas constitucionais. Quando a doente foi observada apresentava uma lesão de grandes dimensões, com sintomatologia importante associada, o que motivou a sua rápida orientação para a cirurgia.
O ecocardiograma é de grande utilidade na avaliação de qualquer tipo de lesão cardíaca, nomeadamente nesta em questão3. A TC com contraste também tem um elevado grau de resolução, auxiliando na caracterização das lesões5. No entanto, a RM pode ser superior em vários aspetos, nomeadamente em termos de diagnóstico diferencial8. Este exame teria, muito provavelmente, interesse na abordagem inicial deste caso, mas não foi possível ser realizado em tempo útil.
Em termos de terapêutica adjuvante da cirurgia, foi tomada a decisão de não realizar terapêutica adicional com radio ou quimioterapia. Segundo a literatura, na qual estão descritos apenas alguns casos ou séries pequenas de casos, se a ressecção cirúrgica completa é impossível, mais de 90% dos doentes acabam por falecer ao fim de um ano, mesmo se submetidos a terapia adjuvante. Alguns estudos não encontraram prova de benefício da quimioterapia adjuvante7. Face à raridade da patologia, não existem ensaios clínicos específicos, sendo que os esquemas de quimioterapia são baseados no tratamento de sarcomas de tecidos extracardíacos. A radioterapia também pode ser um adjuvante na exérese não completa de sarcomas de tecidos extracardíacos, mas o seu valor no tratamento de sarcomas cardíacos está limitado pela toxicidade cardíaca da mesma, sendo que o seu papel no tratamento destes tumores ainda não está bem definido4.
O prognóstico dos sarcomas cardíacos em geral continua a ser bastante reservado, apesar da terapêutica que se possa utilizar3,4,7.
Dada a evolução clínica da doente, o resultado histológico (com invasão a nível do aparelho subvalvular) e o estado da arte foi decidida a não realização de quimio ou radioterapia adjuvantes, após ponderação de riscos e benefícios.
ConclusãoPela sua raridade, os sarcomas cardíacos apresentam um desafio no diagnóstico e, principalmente, no tratamento.
Elevado índice de suspeição é necessário para o seu tratamento atempado. A exérese cirúrgica é o único tratamento que mostrou melhorar os sintomas e a sobrevida em determinados doentes selecionados. O papel do tratamento adjuvante continua indefinido.
Estudos adicionais, nomeadamente de índole biomolecular e genética, são necessários para uma adequada caracterização, abordagem e terapêutica no âmbito de melhorar o prognóstico neste tipo de tumores cardíacos.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Especial agradecimento à Dra. Fátima Neves e Dr. Couceiro, do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, Hospital Eduardo Santos Silva.