A redução dos valores de c‐LDL é uma das estratégias mais importantes para a redução do risco de eventos cardiovasculares. Contudo, na prática clínica, um grande número de doentes não atinge os valores recomendados de c‐LDL com a modificação do estilo de vida e a terapêutica hipolipemiante com estatinas e ezetimiba.
Os fármacos inibidores da PCSK9 (iPCSK9) são uma nova opção terapêutica que permite uma redução significativa dos valores de c‐LDL (50‐60%), que se traduziu nos ensaios clínicos numa redução adicional do risco de eventos cardiovasculares, com bom perfil de segurança. Porém, é uma terapêutica com custos elevados, pelo que a utilização na prática clínica deve ter em conta a sua custo‐efetividade devendo ser dada prioridade à utilização nos doentes de maior risco cardiovascular e que mantêm valores elevados de c‐LDL apesar da terapêutica hipolipemiante otimizada.
Este documento de consenso, tem como objetivo resumir os principais dados sobre a utilização clínica dos iPCSK9 e estabelecer recomendações para Portugal sobre o perfil de doentes que mais pode beneficiar desta terapêutica.
Reducing low‐density lipoprotein cholesterol (LDL‐C) levels is one of the most important strategies for reducing the risk of cardiovascular events. However, in clinical practice, a high proportion of patients do not achieve recommended LDL‐C levels through lifestyle and lipid‐lowering therapy with statins and ezetimibe. PCSK9 inhibitors (PCSK9i) are a new therapeutic option that significantly (50‐60%) reduces LDL‐C levels, which in clinical trials translates into an additional reduction in risk for cardiovascular events, and has a good safety profile. However, it is a high‐cost therapy, and therefore its use in clinical practice should take its cost‐effectiveness into account. Priority should be given to use in patients at higher cardiovascular risk and those in whom high LDL‐C levels persist despite optimal lipid‐lowering therapy.
This consensus document aims to summarize the main data on the clinical use of PCSK9i and to make recommendations for Portugal on the profile of patients who may benefit most from this therapy.
A doença cardiovascular (DCV) permanece a principal causa de morte em Portugal1 e nos países desenvolvidos. São conhecidos vários fatores de risco para o desenvolvimento da doença cardiovascular aterotrombótica (ou aterosclerótica), sendo um dos mais relevantes a dislipidemia. Nos últimos anos surgiram inúmeros dados provenientes de estudos epidemiológicos, genéticos, fisiopatológicos e clínicos que demonstram, de forma inequívoca, uma associação clara, consistente e gradativa entre o aumento do colesterol‐LDL (c‐LDL) plasmático e o risco de doença aterosclerótica, confirmando que o c‐LDL como fator causal direto no desenvolvimento desta doença2.
Por outro lado, existe evidência inequívoca de que a redução dos valores de c‐LDL permite a redução proporcional do risco de eventos cardiovasculares3,4. Por isso, as guidelines recomendam, de forma consistente, que a terapêutica antidislipidémica seja ajustada de acordo com «valores‐alvo» de c‐LDL, que devem ser individualizados de acordo com o risco cardiovascular do doente5–7.
Contudo, os vários estudos mostram que existe uma elevada percentagem de doentes que não atingem o controlo efetivo dos fatores de risco cardiovascular (CV)8. Em Portugal, o estudo DYSIS (Dyslipidemia International Study‐Portugal) mostrou que 63% dos portugueses não atingem os valores recomendados de c‐LDL9. Existem múltiplos fatores responsáveis por este mau controlo dos valores de c‐LDL que são dependentes do doente (como a má aderência e a não persistência com a terapêutica), do médico (em especial a inércia clínica), e da terapêutica (designadamente a variabilidade interindividual e a eficácia limitada da terapêutica hipolipemiante)5,10.
Nos últimos anos, os fármacos inibidores da PCSK9 (iPCSK9) surgiram como uma nova opção terapêutica que permite uma redução significativa e consistente dos valores de c‐LDL (∼50‐60%) que, por sua vez, se traduziu em vários ensaios clínicos numa redução adicional do risco de eventos cardiovasculares11–13. Contudo, a terapêutica com iPCSK9 tem custos elevados, pelo que a sua utilização clínica deve ser criteriosa, tendo em consideração os dados de custo‐efetividade destes fármacos e a manutenção da sustentabilidade do sistema de saúde14.
Este documento baseado no consenso entre autores de várias especialidades médicas (Cardiologia, Endocrinologia e Medicina Interna) e apoiado por várias sociedades científicas, tem como objetivo resumir os principais dados sobre a utilização clínica dos iPCSK9 e estabelecer recomendações, adaptadas à realidade portuguesa, sobre o perfil de doentes que mais pode beneficiar desta terapêutica.
Evidências para a hipótese do c‐ldl: será the lower, the better?A associação entre o c‐LDL e o desenvolvimento de aterosclerose foi estabelecida há várias décadas, a partir de múltiplos estudos epidemiológicos que mostraram uma relação contínua e linear entre a magnitude de exposição a valores plasmáticos elevados de c‐LDL e o risco de eventos cardiovasculares15.
Mais recentemente, dados de vários estudos genéticos, mais especificamente dos estudos de «aleatorização Mendeliana», mostraram mais uma vez de forma consistente que as variantes de vários genes que determinam valores mais elevados de c‐LDL se associam a aumento do risco de eventos vasculares16,17, confirmando que os níveis de c‐LDL têm um papel causal no desenvolvimento de DCV2.
Contudo, a evidência clínica mais significativa do papel do c‐LDL como fator causal de DCV vem dos ensaios clínicos aleatorizados que demonstraram uma relação proporcional entre a magnitude de redução do c‐LDL e a redução do risco de eventos. Uma meta‐análise de 36 ensaios envolvendo 170 000 indivíduos tratados com estatina demonstrou uma redução linear de 22% de risco de eventos CV major por cada mmol/l (39mg/dl) de redução de c‐LDL, estabelecendo o conceito de quanto mais baixo melhor3,18,19. Esse benefício da terapêutica hipolipemiante é menor no primeiro ano de tratamento (∼10% redução de risco), seguido de uma redução consistente nos anos seguintes, de 22‐24% por mmol/l reduzido20,21. A redução de eventos está comprovada para diferentes opções terapêuticas que em comum têm o efeito na redução de c‐LDL e aumento da expressão do recetor LDL no hepatócito (estatina, ezetimiba, resinas, inibidor da PCSK9, cirurgia de bypass‐ileal), como prova uma meta‐análise de 49 estudos, incluindo 312 175 doentes e 39 645 eventos4. Finalmente, os ensaios clínicos que avaliaram a progressão da placa de aterosclerose através ecografia intracoronária (IVUS) demonstraram que é possível parar a progressão da placa de aterosclerose quando se atingem níveis de c‐LDL inferiores a 70mg/dl22,23.
Inibição da PCSK9: do mecanismo de ação, aos ensaios clínicos de redução de eventos cardiovascularesA pró‐proteína convertase subtilisina quexina tipo 9 (PCSK9) é uma protease da serina que reduz os níveis de recetores celulares das lipoproteínas de baixa densidade (r‐LDL). Desta forma, a sua inibição permite um aumento do número de r‐LDL na superfície do hepatócito o que permite uma diminuição dos níveis séricos de c‐LDL (figura 1)24.
No hepatócito a SREP‐2 regula a transcrição de vários lípidos e proteínas, nomeadamente o recetor do LDL (LDLR) e a pró‐proteína convertase subtilisina quexina tipo 9 (PCSK9). Numa primeira fase a PCSK9 é transformada no reticulo endoplasmático na sua forma madura (passo 2) e passa pelo aparelho de Golgi antes de ser secretada (passo 3). Na superfície do hepatócito o recetor do LDL (LDL‐R) liga‐se ao c‐LDL circulante e este complexo é internalizado para os endossomas no interior do hepatócito (passo 4). Em seguida o LDL‐R recircula para a superfície do hepatócito (passo 5), processo que ocorre cerca de 150 vezes e que permite que mais c‐LDL seja removido da circulação. A PCSK9 regula a quantidade de recetores de LDL na superfície do hepatócito, uma vez que quando se liga a este recetor causa a sua internalização e destruição no lisossoma (passos 6 e 7), impedindo o LDL‐R de recircular para a superfície do hepatócito.
Os inibidores da PCSK9 são anticorpos monoclonais que se ligam à PCSK9 impedindo‐a de se ligar ao recetor do LDL, aumentando assim a quantidade de recetores de LDL na superfície do hepatócito o que permite uma redução significativa dos valores circulantes de c‐LDL25.
O gene que codifica a PCSK9 foi identificado há cerca de 15 anos em conexão com o fenótipo de hipercolesterolemia familiar, que rapidamente se demonstrou estar associado a uma mutação com ganho de função26,27. A identificação subsequente de variantes do PCSK9 com perda de função, associadas a níveis de c‐LDL sérico baixos e menor risco de DCV criou o modelo farmacológico para o aparecimento dos inibidores da PCSK928. Rapidamente se desenvolveram anticorpos monoclonais (mAb) contra a PCSK9, dando origem a programas abrangentes de investigação clínica para testar a eficácia clínica dos iPCSK9 na redução de eventos cardiovasculares29. Em paralelo, continuam a ser desenvolvidas outras formas alternativas de inibição do PCSK9 conforme detalhado na tabela 130,31.
Diferentes formas de inibição da PCSK9
Tecnologia | Agente | Programa de Investigação Clínica | Fase de Investigação |
---|---|---|---|
Anticorpo monoclonal anti‐PCSK9 | Alirocumab | ODYSSEY | Aprovação pela EMA |
Bococizumab | SPIRE | Descontinuado | |
Evolocumab | PROFICIO | Aprovação pela EMA | |
Inativação do gene do PCSK9 | |||
Pequeno RNA de interferência | Inclisiran | ORION | Fase III |
Oligonucleótido antisentido | BMS‐84442, SPC5001, SPC4061 | Fase I | Descontinuados |
Pequenas moléculas inibidoras da PCSK9 | |||
Adnectina | BMS‐962476 | ‐ | Fase I |
Anexina | Anexina A2 | ‐ | Pré‐clínica |
Vacina | AT04A | ‐ | Pré‐Clínica |
RNA: Ácido ribonucleico
Os anticorpos monoclonais ligam‐se à PCSK9 impedindo a sua fixação ao r‐LDL e a consequente degradação no lisossoma, aumentando o número de recetores de LDL (figura 1)25. Foram desenvolvidos três anticorpos: o alirocumab, o bococizumab e o evolocumab. O alirocumab e o evolocumab são imunoglobulinas totalmente humanas, dos isotipos G1 e G2, respetivamente. Por outro lado, o bococizumab é um anticorpo monoclonal humanizado do isotipo G2. Todos são administrados por via subcutânea e, como são anticorpos completos, apresentam uma semivida longa, compatível com uma administração em cada 2 a 4 semanas.
Efeito no perfil lipídicoApós a administração subcutânea (SC) de 140‐420mg de evolocumab, o pico mediano das concentrações séricas é alcançado em três‐quatro dias. A biodisponibilidade absoluta é de 72% e a semivida (t½) efetiva de 11‐17 dias. A administração SC continuada determina um aumento de exposição ao fármaco proporcional à dose, alcançando um estado de equilíbrio das concentrações séricas mínimas às 12 semanas. A administração única SC de evolocumab determina a supressão máxima precoce, quase completa, às quatro horas da PCSK9 livre circulante, com um nadir médio na redução do LDL‐C em 14‐21 dias. As variações da PCSK9 livre e das lipoproteínas séricas são reversíveis, após a descontinuação do tratamento, sem qualquer evidência de efeito de retoma (rebound). As características farmacocinéticas do alirocumab são comparáveis. Após a administração SC, os tempos médios para a concentração sérica máxima (tmax) são três‐sete dias, a sua biodisponibilidade absoluta é ≈ 85% e o estado estacionário é obtido após 2‐3 doses. A semivida média aparente é de 17‐20 dias32,33.
Os anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 reduzem os níveis de C‐LDL em cerca de 60%, conforme demonstrado em vários estudos de curta duração (tabela 2)34,35, independentemente da terapêutica antidislipidémica de base36. Contudo, a eficácia é ligeiramente maior nos doentes medicados com estatina devido ao aumento da expressão do gene do PCSK937. Além da redução do c‐LDL, esta classe permite uma redução do colesterol total de cerca de 38%, da apolipoproteína B (ApoB) de 50% e a da lipoproteína (a) [Lp(a)] de 28%. Também em doentes intolerantes às estatinas a sua utilização permitiu uma redução do c‐LDL de 51,4%38–41.
Diferença na variação percentual dos parâmetros lipídicos, entre os AM anti‐PCSK9 e placebo às 12/24 semanas.34,35
Colesterol total | C‐LDL | C‐HDL | TG | Lp(a) | ApoB | |
---|---|---|---|---|---|---|
Alirocumab | ‐39,0 | ‐60,4 | -6,3 | ‐9,3 | ‐26,8 | ‐50,2 |
Bococizumab | ‐34,1 | ‐57,1 | -6,0 | ‐14,2 | ‐24,2 | ‐46,0 |
Evolocumab | ‐42,0 | ‐71,4 | -12,8 | ‐17,4 | ‐45,0 | ‐56,4 |
TG: Triglicerídeos; Lp(a): lipoproteína (a); ApoB: Apolipoproteína B
A longo prazo, a eficácia na redução do c‐LDL manteve‐se para o alirocumab (‐54,7% aos 48 meses) e para o evolocumab (‐54,0% aos 39 meses) nos ensaios de eventos CV11,13. Contudo, em relação ao bococizumab ‐ que é um anticorpo humanizado da PCSK9 ‐ observou‐se uma atenuação da sua eficácia (‐38,3% aos 24 meses)12, geralmente atribuída ao desenvolvimento de anticorpos neutralizantes do bococizumab, efeito que ocorre em cerca de 30% dos doentes ao fim de um ano, o que levou à interrupção do seu programa de desenvolvimento clínico35.
De acordo com a sua farmacodinâmica, os anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 são eficazes na redução do c‐LDL em todos os doentes que sejam capazes de expor r‐LDL hepáticos. Nos vários estudos realizados em doentes com hipercolesterolemia familiar heterozigótica (HeHF) sob estatina, com ou sem ezetimiba, os anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 reduziram significativamente os valores de c‐LDL (entre 39,1% e 61,3%), independentemente do tipo de mutação do r‐LDL42. Na HF homozigótica (HoHF), a eficácia do evolocumab na redução do c‐LDL foi muito variável, observando‐se variações percentuais de 22,9% a 40,8% nos doentes com pelo menos um alelo com mutação defeituosa no gene r‐LDL42–44. Os doentes com HoHF, com défice duplo do r‐LDL, naturalmente, respondem de forma muito deficiente ao tratamento. Têm sido descritos casos raros de ausência de resposta ou de resposta atenuada aos iPCSK9. A variabilidade de resposta está presente na hipercolesterolemia autossómica recessiva (por mutação da proteína adaptadora do recetor de LDL tipo 1 ‐ LDLRAP1 – que participa na internalização do complexo r‐LDLR/c‐LDL no hepatócito e, consequentemente determina um aumento do c‐LDL) ou na mutação R410S do r‐LDL que leva também a uma alteração no metabolismo do r‐LDL nos endossomas. A avaliação genética poderá estar assim indicada nos doentes não respondedores aos iPCSK9.
De notar ainda que esta classe terapêutica não reduziu os valores de proteína C‐reativa, o que pode sugerir que o impacto das estatinas neste biomarcador seja um efeito pleiotrópico independente da redução do c‐LDL45,46.
Estudos de eventos cardiovascularesOs anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 foram avaliados em quatro ensaios clínicos de eventos CV aleatorizados e controlados com placebo, que incluíram mais de 70 mil doentes, maioritariamente em prevenção secundária conforme detalhado na tabela 311–13.
Estudos de eventos cardiovasculares com anticorpos monoclonais anti‐PCSK9
ODISSEY Outcomes13 | SPIRE‐112 | SPIRE‐212 | FOURIER11 | |
---|---|---|---|---|
Agente | Alirocumab | Bococizumab | Evolocumab | |
Dose | 75 ou 150mg 2/2 sem (ajustado para atingir c‐LDL alvo 25‐50mg/dL) | 150mg 2/2 sem(reduzido para 75mg 2/2 sem se c‐LDL<10/dL) | 140mg 2/2 sem ou420mg 4/4 sem | |
Número de doentes incluídos | 18924 | 16817 | 10621 | 27564 |
População | SCA | Prevenção 2ª (84%) ou1ª com risco CV elevado (16%) | EAM (81%), AVC (19%) ou DAP (13%) | |
Idade média (anos) | 58,6 | 63,3 | 62,4 | 62,5 |
Diabetes (%) | 29 | 48 | 47 | 37 |
Elegibilidade – Lípidos | c‐LDL >=70 ou c‐nãoHDL >=100 ou ApoB >=80 | c‐LDL >=70 ou c‐nãoHDL >=100 | c‐LDL >=100 ou c‐nãoHDL>=130 | c‐LDL >=70 ou c‐nãoHDL >=100 |
c‐LDL basal (mg/dl) | 92 | 94 | 134 | 92 |
c‐LDL atingido no estudo (mg/dl) | 53(vs. 101 placebo) | 44(vs. 100 placebo) | 80(vs. 137 placebo) | 30(vs. 86 placebo) |
Estatina em dose intensiva (%) | 89 | 92 | 73 | 69 |
Duração do estudo (anos) | 2,8 | 0,6 | 1 | 2,2 |
Resultado Primário (HR e IC 95%) / NNT | 0,85(0,78‐0,93)*NNT: 63 | 0,99 (0,80‐1,22)** | 0,79 (0,65‐0,97)** | 0,85(0,79‐0,92)°NNT: 67 |
Morte CV, EM ou AVC (HR e IC 95%) / NNT | 0,86(0,79‐0,93)°°NNT: 63 | 1,03 (0,82‐1,30) | 0,74 (0,60‐0,92) | 0,80 (0,73‐0,88) NNT: 67 |
Morte CV (HR e IC 95%) | 0,88(0,74‐1,05) | 1,20 (0,74‐1,95) | 0,82 (0,50‐1,36) | 1,05 (0,88‐1,25) |
EM (HR e IC 95%) / NNT | 0,86 (0,77‐0,96)X NNT: 100 | 1,11 (0,83‐1,48)X | 0,76 (0,58‐1,00)X | 0,73 (0,65‐0,82) NNT: 84 |
AVC (HR e IC 95%) / NNT | 0,73 (0,57‐0,93) NNT: 250 | 0,52 (0,30‐0,91)X | 0,66 (0,40‐1,09)X | 0,79 (0,66‐0,95) NNT: 250 |
Os valores dos parâmetros lipídicos são expressos em mg/dl. ApoB: Apolipoproteína B; AVC: Acidente vascular cerebral; C‐LDL: Colesterol das lipoproteínas de baixa densidade (mg/dl); C‐nãoHDL: Colesterol das lipoproteínas não alta densidade (mg/dl) CV: Cardiovascular; DAP: Doença arterial periférica; EM: Enfarte do miocárdio; SCA: síndroma coronária aguda; Sem: Semanas; 1ª: Primária; 2ª: Secundária;
O ensaio clínico FOURIER, que testou a utilização do evolucumab, numa população de doentes estáveis, mas com doença vascular estabelecida, foi o primeiro a demonstrar a redução de eventos CV com os IPCSK9 numa população de 27 564 doentes em prevenção secundária (tabela 3)11. Neste estudo o evolocumab reduziu significativamente o risco relativo do resultado primário combinado de morte CV, enfarte do miocárdio (EM), acidente vascular cerebral (AVC), internamento por angina instável (AI) ou revascularização coronária (RC) em 15%. Observaram‐se reduções significativas no risco relativo de EM (27%), AVC (21%) e RC (22%). O evolocumab não reduziu o risco de morte CV e de AI. Os resultados foram consistentes independentemente do c‐LDL basal e da terapêutica anti‐dislipidémica de base. O efeito do evolocumab nos eventos CV foi mais acentuado depois do primeiro ano de tratamento, traduzido numa redução de 19% no risco relativo do resultado primário e de 25% no resultado secundário principal em comparação com o placebo, tal como foi observado nos ensaios clínicos com estatinas18. A magnitude da redução do risco relativo de eventos CV com o evolocumab por unidade de redução do c‐LDL (mmol/l) foi sobreponível à descrita na análise do Cholesterol Treatment Trialists Collaboration (CTTC)3. Na análise por redução do risco absoluto do resultado primário e do secundário principal o benefício foi mais acentuado nos doentes de risco mais elevado. Efetivamente, observaram‐se valores do número necessário tratar (NNT) mais baixos nos indivíduos com doença multivaso, EM recorrente ou EM há menos de dois anos (NNT 34 e 40, respetivamente), com doença arterial periférica (NNT 29 para os dois resultados clínicos) ou com índice de risco TIMI 2oP superior a 4 pontos (NNT 28) em comparação com os verificados na população total (NNT 67 para os dois resultados clínicos)36,47,48.
Os ensaios SPIRE‐1 e SPIRE‐2 testaram o efeito do bococizumab um total de 27 438 doentes maioritariamente em prevenção secundária, tendo o SPIRE‐2 um limiar de elegibilidade para o c‐LDL e c‐nãoHDL mais elevado (tabela 3)12. Os dois estudos foram terminados precocemente por atenuação da eficácia hipolipemiante do bococizumab ao longo do tempo. Ainda assim, o bococizumab reduziu o risco relativo do resultado primário combinado de morte CV, EM, AVC ou AI com necessidade de revascularização urgente em 12% e o resultado secundário combinado de morte CV, EM ou AVC em 13%, embora as diferenças não tenham sido estatisticamente significativas. No SPIRE 2, em que a exposição ao bococizumab foi mais prolongada e o c‐LDL basal mais elevado, observaram‐se reduções estatisticamente significativas no risco relativo do resultado primário (21%) e do secundário (26%), em comparação com o placebo.
Finalmente, o ensaio clínico ODISSEY‐Outcomes incluiu 18 924 doentes com síndroma coronária aguda recente, seguidos durante uma mediana de 2,6 anos, sob terapêutica com estatina (tabela 3)13. O alirocumab reduziu significativamente o risco relativo do resultado primário combinado de morte de causa coronária, EM, AVC ou AI em 15% e do resultado secundário combinado de morte de qualquer causa, EM ou AVC em 14%. Ocorreram reduções significativas no risco relativo de EM não fatal (14%), AVC (27%), AI (39%) e RC (12%). O alirocumab não reduziu o risco de morte coronária ou CV. O benefício foi consistente nas análises de subgrupos. Numa análise post hoc observou‐se uma redução significativa de 28% no risco relativo da morte coronária e de 31% na morte CV com o alirocumab versus placebo.
Em resumo, no seu conjunto, os estudos de eventos cardiovasculares com os anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 corroboram o conceito estabelecido da associação linear entre o c‐LDL obtido e a taxa de eventos CV, independentemente do valor de LDL atingido.
Utilização de IPCSK9 na hipercolesterolemia familiarA hipercolesterolemia familiar associa‐se a um risco acrescido de doença cardiovascular numa fase prematura49. É sabido que indivíduos com valores c‐LDL>190mg/dL são considerados de risco cardiovascular elevado5 e que a sua maioria tem hipercolesterolemia familiar (HF), seja monogénica (causada por mutações de genes envolvidos no metabolismo do c‐LDL) ou poligénica (resultante da interação de dieta aterogénica e múltiplos fatores genéticos mal definidos).
A população com HF é bastante heterogénea devido ao número elevado de possíveis mutações causadoras de HF, sendo que a extensão da doença aterosclerótica e o risco cardiovascular dependem fundamentalmente dos níveis de c‐LDL e do tempo de exposição. A causa mais frequente de hipercolesterolemia familiar monogénica é a mutação do gene do r‐LDL (∼90%), seguida de mutações do gene ApoB (∼5%), mutações com ganho de função do gene PCSK9 (<1%) e muito raramente mutações com perda de função do gene LDLRAP1 (que codifica uma proteína que promove a internalização do complexo r‐LDLR/c‐LDL)50. A forma heterozigótica de HF (HFHe) tem uma prevalência estimada de 1/500 ‐ 1/200 na população geral sendo a forma homozigótica (HFHo) mais rara: ∼1/160 000 ‐ 1/300 00042. A HF está subdiagnosticada particularmente a forma heterozigótica em que muitas vezes a suspeita só surge após um evento coronário precoce (idade < 55 anos nos homens e < 60 anos nas mulheres).
Também na dislipidemia familiar a redução dos valores de c‐LDL reduz o risco de eventos CV. Nestes doentes, a prevenção primária é mais eficaz do que a prevenção secundária na redução da mortalidade por doença coronária (48% versus 25%)51. Em geral, na dislipidemia familiar recomenda‐se que o tratamento farmacológico se deverá iniciar o mais precocemente possível (a partir dos 8‐10 anos de idade) para prevenir excesso de mortalidade em adultos. Além disso, ultimamente tem‐se debatido a estratificação de risco CV dos doentes com HF, numa tentativa de identificar precocemente os doentes de risco mais elevado, em que se justifica uma terapêutica hipolipemiante mais agressiva. De acordo com as recomendações europeias nos indivíduos adultos com HF, sem doença cardiovascular estabelecida, o valor alvo de c‐LDL deve ser <100mg/dL5.
Os IPCSK9 foram testados em vários estudos em indivíduos com HF. O programa PROFICIO (evolocumab) incluiu doentes com HFHe (RUTHERFORD‐2) e HFHo (TESLA‐A,TESLA‐B), e está em curso o estudo TAUSSIG. O programa ODYSSEY (alirocumab) incluiu apenas doentes com HFHe, conforme detalhado na tabela 442.
Estudos que avaliaram a utilização dos inibidores da PCSK‐9 em doentes com dislipidemia familiar
Ensaio clínico | População | Redução de c‐LDL (%) | Redução Lp(a) (%) |
---|---|---|---|
Estudos com Evolocumab | |||
RUTHERFORD ‐252 | HFHe(12 sem) | 140mg 2/2 sem: ‐59,2% 420mg 4/4 sem: ‐ 61,3% | 140mg 2/2 sem: ‐ 31,6% 420mg 4/4 sem: ‐ 28,2% |
TESLA parte A53 | HFHo(36 sem) | 4/4 sem: ‐ 16,5% | 4/4 sem: ‐ 11,7% |
2/2 sem: ‐ 13,9% | 2/2 sem: ‐ 18,6% | ||
TESLA parte B44 | HFHo(12 sem) | ‐ 30,9% | ‐ 11,8% (p=0,09) |
TAUSSIG54 | HF grave(5 anos) | Em curso | |
Estudos com Alirocumab | |||
ODYSSEY FH I e FH II55 | HFHe(78 sem) | FH I: ‐ 57,9% | FH I: ‐ 17,7% |
FH II: ‐ 51,4% | FH II: ‐ 20,3% | ||
ODYSSEY HIGH56 | HFHe(78 sem) | ‐ 39,1% à sem 24 | ‐ 14,8% |
ODYSSEY LONG TERM57 | HFHe(78 sem) | ‐ 61,9% à sem 24 | ‐ 25,6% |
ODYSSEY OLE58 | HFHe(176 sem) | Em curso |
HFHe: hiperlipidemia familiar heterozigótica; HFHo: hiperlipidemia familiar homozigótica
Adaptado de Raal, F.J., G.K. Hovingh, and A.L. Catapano, Familial hypercholesterolemia treatments: Guidelines and new therapies. Atherosclerosis, 2018. 277: p. 483‐492.
Estes estudos demonstraram a eficácia dos IPCSK9, particularmente na HFHe, permitindo redução adicional de c‐LDL ∼60% em doentes com terapêutica hipolipemiante máxima, o que permite que 80% destes doentes consiga atingir o valor alvo de c‐LDL.
Outras formas de inibição da PCSK9A terapêutica com oligonucleótideos, moléculas de cadeia simples ou dupla de DNA ou RNA com 10‐50 nucleotídeos, análogos sintéticos de ácidos nucleicos naturais, é um conceito emergente no tratamento das doenças cardiovasculares e do metabolismo lipídico. Habitualmente, este tipo de terapêutica divide‐se em dois grupos, um, constituído pelos oligonucleótidos antisentido (ASO), as ribozimas e as pequenas moléculas de ácido ribonucleico de interferência (siRNA, que suprimem a expressão de uma proteína por hibridação com o ARN mensageiro alvo) e um segundo grupo constituído por aptâmeros que se ligam como anticorpos às proteínas alvo, inibindo a sua função59.
O inclisiran, uma pequena cadeia única de ácido ribonucleico de interferência, é a alternativa aos anticorpos monoclonais que se encontra em fase mais avançada de desenvolvimento clínico. Este agente sintético possui uma formulação com um ligando de N‐acetilgalactosamina que permite a sua captação hepática, e atua sinalizando o RNA mensageiro do PCSK9 para ser clivado o que condiciona a diminuição da sua síntese60. O efeito farmacodinâmico é prolongado o que permite a sua administração parentérica semestral. No estudo de fase II ORION‐1, a dose de 300mg administrada por via subcutânea no início do estudo e aos três meses reduziu o C‐LDL em 52,6%61.
Segurança dos anticorpos monoclonais da PCSK9No geral, a utilização dos anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 revelou‐se bastante segura nos estudos de eventos cardiovasculares (tabela 5)11–13 (tabela 6), confirmando os dados dos estudos iniciais36. A administração destes agentes pode originar uma reação local como eritema, tumefação ou prurido, geralmente ligeira, cuja incidência variou entre 2,1% e 10,4% (tabela 5). Este valor mais elevado foi observado com o bococizumab e pode estar associado à sua natureza parcialmente murina.
Segurança dos AM anti‐PCSK9 nos estudos de eventos CV
Evento | ODISSEY Outcomes13 | SPIRE‐1 e 212 | FOURIER11 | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Alirocumab | Placebo | Bococizumab | Placebo | Evolocumab | Placebo | |
Evento adverso | 75,8% | 77,1% | 63,7%* | 60,5% | 77,4% | 77,4% |
Evento adverso grave | 23,3% | 24,9% | 19,5% | 19,7% | 24,8% | 24,7% |
Reação local injeção | 3,8%* | 2,1% | 10,4%* | 1,3% | 2,1%* | 1,6% |
Diabetes mellitus de novo | 9,6% | 10,1% | 4,2% | 4,2% | 8,1% | 7,7% |
Evento neurocognitivo | 1,5% | 1,8% | 1,6% | 1,5% | ||
Elevação ALT(>3x) | 2,3% | 2,4% | 0,8% | 0,9% | 1,8% | 1,8% |
Elevação CK** | 0,5% | 0,5% | 1,0% | 0,9% | 0,7% | 0,7% |
Anticorpo neutralizante do inibidor PCSK9 | 0,5% | <0,1% | 29% | ‐ | 0 | 0 |
Resumo das recomendações internacionais para a utilização de IPCSK9 em prevenção secundária
Perfil de doente em prevenção secundária | Limiar de c‐LDL para ser considerada introdução IPCSK9* | |
---|---|---|
Recomendações NICE73 | Evento cardiovascular prévio(SCA, AVC isquémico, revascularização coronária ou arterial, doença coronária ou doença arterial periférica) | c‐LDL ≥ 150 mg/dL |
Doença polivascularouEventos CV recorrentes | c‐LDL ≥130 mg/dL | |
Recomendações Sociedade Espanhola Cardiologia74 | SCA < 12 meses + Dislipidemia familiar | c‐LDL ≥ 70 mg/dL |
Doença coronária estável ou SCA prévio | c‐LDL ≥ 100 mg/dL | |
SCA recorrente | c‐LDL ≥ 70 mg/dL | |
Doença coronária + intolerância/contra‐indicação estatinas | Conforme o valor alvo de c‐LDL | |
Recomendações ESC/ESA75 | Doença cardiovascular clínica(SCA, doença arterial periférica, AVC prévios) | c‐LDL ≥140 |
Doença cardiovascular clínica + 1 dos seguintes:‐Dislipidemia Familiar‐Diabetes com LOA ou um fator risco major‐Doença cardiovascular grave ou extensa (p.e. polivascular)‐Rápida progressão DCV (recorrência de SCA, revascularização coronária repetida ou AVC isquémico recorrente, nos primeiros 5 anos após um primeiro evento) | c‐LDL ≥ 100 | |
Recomendações ACC/AHA76 | Doença aterosclerótica estabelecida | c‐ LDL ≥ 70** |
Não se observou um aumento da incidência do diagnóstico de diabetes mellitus de novo (tabela 5), contrariando a hipótese de que valores mais baixos de C‐LDL poderem condicionar maior risco de diabetes62. Este efeito neutro sobre o controlo glicémico foi confirmado numa subanálise do estudo FOURIER63.
Também não se observou toxicidade hepática ou muscular. O desenvolvimento de anticorpos neutralizantes do dos mAb anti‐PCSK9 foi descrito em 43 doentes sob alirocumab (0,5%) no ODISSEY‐Outcomes mas não foi documentado para o evolocumab no FOURIER. Como já foi referido, a deteção frequente de anticorpos neutralizantes para o bococizumab levou à interrupção do seu programa de desenvolvimento clínico. As reações adversas mais frequentes com o evolocumab foram a nasofaringite (4,8%) e infeção das vias respiratórias superiores (3,2%), a dorsalgia (3,1%) e a artralgia (2,2%), as síndromes gripais (2,3%) e as náuseas (2,1%). Com o alirocumab, as reações adversas mais frequentes foram as reações locais no local da injeção (e.g. eritema, dor e hematoma no local da injeção).
Finalmente, os receios de que valores muito baixos de c‐LDL pudessem estar relacionados com disfunção cognitiva não foram, até à data, confirmados nos ensaios clínicos. No estudo EBBINGHAUS que avaliou específica e detalhadamente o desempenho neurocognitivo dos doentes sob evolocumab, este foi sobreponível ao do placebo nas avaliações às 24 semanas e no final do ensaio clínico64.
Apesar da excelente segurança demonstrada pelos anticorpos monoclonais anti‐PCSK9 a médio prazo, não se conhecem os efeitos da exposição prolongada a estes agentes. As síndromas genéticas associadas à hipocolesterolemia familiar, em particular as originadas por mutações do PCSK9 com perda de função, podem representar um modelo de exposição prolongada aos anti‐PCSK965. Nos portadores destas doenças não estão descritos distúrbios neurocognitivos, exceto numa mutação específica da ApoB (isoforma truncada de ApoB29.4). Contudo, o risco de esteatose hepática é elevado, sendo superior a 70% nos portadores de isoformas truncadas de ApoB100.
Análises de custo‐efetividade dos IPCSK9Apesar da eficácia dos IPCSK9 na redução do risco de eventos cardiovasculares, a sua utilização na prática clínica tem sido relativamente baixa66, sobretudo devido ao preço do tratamento. Mais do que o preço, hoje em dia é essencial a avaliação da custo‐efetividade da terapêutica. Em relação aos IPCSK9, existem vários estudos de custo‐efetividade publicados. Os resultados destas análises têm sido muito heterogéneos, com valores de ICER (incremental cost‐effectiveness ratio) que variam entre os 30.000€ e os 166.000€ por QALY ganho67 dependendo dos modelos de simulação, do perfil de doentes incluídos na análise, do contexto de utilização e do custo do tratamento.
Para melhorar a custo‐efetividade destes fármacos tem sido proposta uma estratégia de «máximo risco/máximo benefício»68. Isto significa que a utilização destes fármacos deve ser privilegiada nos doentes de «máximo risco», nomeadamente aqueles com maior probabilidade de virem a ter um evento cardiovascular como aqueles com antecedentes de DCV + atingimento multivascular ou diabetes. Por outro lado, tendo como premissa que a redução do risco relativo em doentes com risco CV elevado é proporcional à diminuição absoluta do c‐LDL e que a magnitude da redução percentual de c‐LDL com os IPCSK9 é semelhante nos diferentes subgrupos de c‐LDL basal, os doentes com valores iniciais mais elevados de c‐LDL irão alcançar a maior redução absoluta no c‐LDL e, consequente, uma redução mais significativa do risco CV («máximo benefício»). É com base neste conceito que, nestas recomendações, propõe‐se uma utilização preferencial nos grupos de doentes que mais podem beneficiar da terapêutica atendendo, simultaneamente, ao risco CV do doente e o valor absoluto de c‐LDL.
Relativamente às análises de custo‐efetividade na realidade portuguesa, apesar dos dados não serem conhecidos, em 28 de dezembro de 2018, o INFARMED apresentou o Relatório Público de Avaliação Prévia do Medicamento em Meio Hospitalar respeitante ao evolocumab, que considera que «os valores de custo‐efetividade incrementais associados à introdução do evolucomab no arsenal terapêutico, assim como os resultados do impacto orçamental, foram considerados aceitáveis»69.
Recomendações para a utilização dos IPCSK9Utilização dos IiPCSK9 em prevenção secundáriaOs doentes com DCV estabelecida e, em particular, os que já tiveram um evento de natureza aterotrombótica, são aqueles que apresentam maior risco de recorrência de eventos CV70. Dada a associação entre os valores de c‐LDL e o risco de eventos, os objetivos terapêuticos recomendados de c‐LDL para estes doentes são particularmente restritivos, sendo desejável atingir c‐LDL <70mg/dl5, mas reconhecendo‐se que há subgrupos de «risco extremo», que poderão beneficiar de valores ainda mais baixos, nomeadamente < 55mg/dl7.
Nestes doentes, o primeiro passo na terapêutica deve ser a utilização de estatina de alta intensidade, nomeadamente atorvastatina 40‐80mg ou rosuvastatina 20‐40mg, a que se associa um aconselhamento nutricional adequado e o cumprimento adequado das medidas de estilo de vida. Segundo alguns modelos de simulação publicados, estima‐se que 32% dos doentes não vão atingir o valor alvo apenas com estatina de alta intensidade, sendo necessário recorrer a associações de antidislipidémicos71. Deste modo, o passo seguinte é considerar a associação de ezetimiba que, pelo seu custo e boa tolerabilidade, permite uma redução adicional de c‐LDL72 e desse modo cerca de mais 19% dos doentes atingirão o valor de c‐LDL desejado de acordo com a mesma análise. Ainda assim, há cerca de 14% que irão manter valores de c‐LDL acima do desejável, para os quais deverá ser considerada a terapêutica com IPCSK9.
A utilização racional destes fármacos passa pela identificação de grupos de maior risco absoluto e com valor de c‐LDL mais elevado, nos quais o benefício esperado é maior. Esta tem sido a postura da maioria das recomendações já publicadas sobre a utilização dos IPCSK9, conforme detalhado na tabela 5.
O National Institute for Health and Care Excellence (NICE), em 2016, emitiu recomendações para a sua utilização em doentes com doença cardiovascular estabelecida se os valores de c‐LDL> 150mg/dl e alto risco (SCA, AVC isquémico, procedimento de revascularização coronária ou arterial, doença coronária ou doença arterial periférica) ou > 130mg/dl e muito alto risco (doença polivascular ou eventos CV recorrentes). O único cenário em que foi considerada a terapêutica em prevenção primária foi a com HeHF se c‐LDL > 190mg/dl73. A Sociedade Espanhola de Cardiologia (SEC) considera a utilização destes fármacos em doentes em prevenção secundária que tenham cardiopatia isquémica e c‐LDL > 100mg/dl apesar de tratamento otimizado e em doentes com c‐LDL> 70mg/dl e SCA recorrente ou cardiopatia isquémica e hipercolesterolemia familiar74. Além disso, é recomendada a utilização de IPCSK9 nos doentes com cardiopatia isquémica e intolerância comprovada às estatinas e ainda nos doentes que apesar de não terem doença cardiovascular conhecida tenham c‐LDL > 130mg/dL e diabetes (tipo 1 ou 2) com lesão de órgão alvo (LOA), doença renal crónica (DRC) com TFG < 60ml/min/1,73 m2 ou SCORE> 10%. A Task Force da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) e a Sociedade Europeia de Aterosclerose (ESA) propõe como candidatos a esta terapêutica os doentes com muito alto risco cardiovascular, incluindo os doentes com evidência clínica ou imagiológica de doença aterosclerótica que, apesar de dose máxima de estatina, e após associação de ezetimiba, têm c‐LDL > 140mg/dl ou > 100mg/dl se evidência de rápida progressão da doença (definida como recorrência de SCA, revascularização não programada ou AVC nos 5 anos após o evento índex)75.
As recomendações do consenso de peritos do American College of Cardiology (ACC) sobre o uso de antidislipidémicos que não estatinas são mais abrangentes, definindo que se deve considerar a associação de ezetimiba ou inibidor PCSK9 na prevenção secundária em doentes com doença aterosclerótica estabelecida se não tiver sido atingido o objetivo de redução de ≥ 50% (considerar c‐LDL< 70mg/dl) sob a dose máxima tolerada de estatina. Para os doentes sem comorbilidades associadas, a adição de ezetimiba deve ser o primeiro passo. Contudo, nos doentes com um fator multiplicador de risco (como diabetes, doença renal crónica, evento cardiovascular sob estatina, AVC isquémico ou EAM prévio, ≥65 anos) o inibidor PCSK9 deve ser preferido ao ezetimiba se a redução adicional pretendida for >25%76. Mais recentemente as recomendações americanas para a abordagem da hipercolesterolemia reforçam o conceito de otimização terapêutica inicial com ezetimiba antes de considerar o IPCSK9, acrescentando ainda uma nova recomendação de valor relacionada com a análise de custo‐efectividade para estes fármacos, os quais, para os valores de 2018 praticados nos EUA, são pouco custo‐eficazes14. Esta reflexão, que não questiona os resultados dos ensaios clínicos, mas faz uma análise sobre a sua utilidade nos ganhos em saúde, vai largamente depender do custo do fármaco em cada país e daquilo que é considerado aceitável por cada sistema de saúde a nível nacional.
Recomendações do painel para PortugalDepois de analisada a evidência clínica, as análises de custo‐efetividade e as recomendações emitidas por outras sociedades científicas, os autores propõem que se considere a associação de um IPCSK9 nos doentes com terapêutica anti‐dislipidémica otimizada que tenham tido evento aterotrombótico prévio e tenham:
- 1.
Valor c‐LDL ≥ 140mg/dl
- 2.
Valor c‐LDL ≥ 100mg/dl e um dos seguintes fatores:
- ‐
Diabetes com lesão de órgão‐alvo (exemplo, proteinúria)
- ‐
Doença polivascular
- ‐
Doença coronária significativa multivaso, revascularizada ou não
- ‐
Evento cardiovascular recorrente (<5 anos após primeiro evento)
- ‐
Hipercolesterolemia familiar
Antes de se considerar a introdução de IPCSK9 devem verificar‐se (todas) as seguintes condições:
- ‐
Tratamento com a dose máxima tolerada de estatina de alta intensidade (atorvastatina 40‐80mg ou rosuvastatina 20‐40mg)
- ‐
Tratamento de associação com ezetimiba 10mg
- ‐
Adequado controlo dos restantes fatores de risco
- ‐
Implementação de alteração do estilo de vida, incluindo aconselhamento nutricional e cessação tabágica (figura 2)
Figura 2.Algoritmo com as recomendações para o tratamento hipolipemiante em doentes com evento aterotrombótico prévio
*Em doentes com risco cardiovascular extremo deve ser considerado um valor alvo de c‐LDL < 55mg/dL (exemplo, evento aterotrombótico prévio + diabetes, + atingimento polivascular ou evento cardiovascular recorrente)
IPCSK9 ‐ inibidor da PCSK9; LOA: lesão de órgão‐alvo; FRCV: fator de risco cardiovascular.
(0.39MB).
As recomendações da ESC/EAS sobre o uso de IPCSK9 aconselham a sua utilização em doentes com HeHF sem doença cardiovascular estabelecida, de risco CV alto ou muito alto, se tiverem níveis de c‐LDL > 180mg/dL após a otimização da terapêutica hipolipemiante77. Aconselham ainda que na presença de fatores de risco adicionais (diabetes, níveis elevados de Lp(a), DCV prematura em familiar de primeiro grau, tabagismo, indicadores de gravidade por imagem) o valor de c‐LDL para se considerar a introdução de IPCSK9 deve ser mais baixo (> 140mg/dL).
Em doentes com HFHo os IPCSK9 são recomendados como terapêutica adicional para reduzir os níveis de c‐LDL, em doentes a fazer ou não aférese das LDL. Por outro lado, em doentes com mutações negativa/negativa do r‐LDL, que têm uma atividade de r‐LDL inferior a 2% não se recomenda IPCSK9, porque o seu mecanismo de ação implica algum nível de atividade do r‐LDL44,54.
Recomendações do painel para PortugalNa hipercolesterolemia familiar, sem evento cardiovascular prévio, propõem‐se que se considere a associação de um iPCSK9 nos doentes que, após terapêutica hipolipemiante otimizada, mantenham:
- 1.
Valor c‐LDL ≥ 180mg/dl;
- 2.
Valor c‐LDL ≥ 140mg/dl e um dos seguintes fatores:
- ‐
Diabetes com lesão de órgão‐alvo (ex. proteinúria) ou 1 fator de risco major
- ‐
Lipoproteína (a) > 50mg/dL
- ‐
Fatores de risco major: exemplo, hipertensão arterial estadio 2 e 3 (PA > 160/100mmHg) não controlada
- ‐
Doença cardiovascular prematura em familiar 1° grau (homem < 55 anos; mulher < 60 anos)
- ‐
Doença aterosclerótica subclínica significativa
Uma vez mais, antes de se considerar a introdução de iPCSK9 devem verificar‐se (todas) as seguintes condições:
- ‐
Tratamento com a dose máxima tolerada de estatina de alta intensidade (atorvastatina 40‐80mg ou rosuvastatina 20‐40mg)
- ‐
Tratamento de associação com ezetimiba 10mg
- ‐
Adequado controlo dos restantes fatores de risco cardiovascular
- ‐
Implementação de alteração do estilo de vida, incluindo aconselhamento nutricional específico e cessação tabágica (figura 3)
A maioria dos casos de intolerância à estatina está diretamente relacionada com queixas subjetivas do doente, sendo as alterações laboratoriais – como causa de descontinuação do tratamento ‐ uma situação menos comum. Assim, na maioria dos casos, a intolerância à estatina não deve ser pontuada pela simples ocorrência de sintomas em geral, mas pela presença de sintomas percebidos como inaceitáveis. Sendo assim, intolerância à estatina deve ser entendida como uma síndrome apurada, atestada e documentada que leva a uma dosagem não ideal de estatinas, a menor aderência ao tratamento, a diminuição da qualidade de vida do doente, ou à cessação da estatina78,79.
Não existe uma definição universalmente aceite de intolerância à estatina, mas existem vários documentos que procuraram um consenso (Tabela 1, Suplemento). Comummente, a intolerância à estatina é tida como a ocorrência de sintomas adversos (quase sempre músculo‐esqueléticos) percebidos como intoleráveis pelo doente e/ou pela presença de alterações laboratoriais sugestivos de risco indevido (e.g. CK, ALT/AST ou bilirrubina), atribuíveis ao tratamento com estatinas e que levam à descontinuação do tratamento (Tabela 2, Suplemento). Na prática, é necessário definir melhor a aceitabilidade dos sintomas, a atribuição de uma presumível causalidade e o grau de real intolerância. Muito frequentemente – mesmo quando ocorrem durante o tratamento com uma estatina – os efeitos adversos musculares (ou outros) não estão, de facto, relacionados com o fármaco e a larga maioria destes doentes são capazes de tolerar o tratamento adequado. Esta identificação dos falsos casos de intolerância às estatinas é fundamental para evitar a descontinuação intempestiva, desnecessária e imprudente das estatinas em doentes que delas necessitam80. Existem características que ajudam o clínico a identificar a maior ou menor probabilidade de causalidade dos sintomas com a toma de estatinas (Tabela 3, Suplemento), podendo também ser utilizado o aplicativo ACC Statin Intolerance ou scores de probabilidade81. Além disso, deve‐se estar atento a fatores favorecedores de maior risco de intolerância às estatinas ou capazes de desencadear as manifestações sintomáticas, que devem ser também avaliados (Tabela 4, Suplemento).
Face à grande variação dos doentes em relação ao número e à dosagem de estatinas que são incapazes de tolerar, do ponto de vista prático, podem‐se ponderar dois graus de intolerância às estatinas: (1) a intolerância completa à estatina assente na incapacidade de tolerar um mínimo de três estatinas (ainda que na menor dose diária: atorvastatina 10mg, fluvastatina 40mg, lovastatina 20mg, pitavastatina 2mg, pravastatina 40mg, rosuvastatina 5mg e sinvastatina 20mg); e (2) a intolerância parcial às estatinas definida pela impossibilidade de tolerar a estatina na posologia necessária ao atingimento do objetivo terapêutico pretendido. Esta última deve ser entendida, de forma pragmática, de acordo com as necessidades terapêuticas e os objetivos apontados em cada doente, de modo que a intolerância a algumas estatinas (ou a determinada posologia) não deve ser imprudentemente tida como intolerância à estatina, desde que não interfira com o atingimento dos objetivos terapêuticos.
Apesar da utilização de IPCSK9 em doentes intolerância às estatinas ser lógica e consensual, esta não é indicação formalmente aprovada nas atuais indicações para a utilização dos iPCSK9da EMEA.
Recomendações do painelEm resumo, a administração de iPCSK9 deve ser considerada nos doentes incapazes de tolerar o tratamento com doses apropriadas de, pelo menos, três estatinas, especialmente se coexistirem outros índices de gravidade acrescida (e.g. hipercolesterolemia familiar, doença polivascular ou multivasos ou doença cardiovascular de natureza aterosclerótica rapidamente progressiva)77.
Gestão clínica do doente sob terapêutica com iPCSK9Os iPCSK9 devem ser prescritos em consulta hospitalar dedicada à gestão de risco CV sob a coordenação de especialidades médicas hospitalares. Esta consulta deve ser baseada em protocolos de diagnóstico e tratamento pré‐estabelecidos, elaborados por uma equipa multidisciplinar.
A elegibilidade para a eventual terapêutica com iPCSK9 deve ser avaliada após otimização da terapêutica farmacológica com estatina na dose máxima tolerada e ezetimiba, mas também após otimização da terapêutica não farmacológica, com particular ênfase na dieta orientada por nutricionista e controlo de outros fatores de risco CV, incluindo o tabagismo 6,77. A avaliação para terapêutica com iPCSK9 deve incluir a confirmação de adesão ao tratamento com estatina na dose máxima tolerada e ezetimiba, podendo ser necessário reavaliar o perfil lipídico após um período de quatro semanas com adesão plena, se apropriado. Recomenda‐se ainda a avaliação da função renal e hepática antes do início do tratamento.
O início do tratamento com um iPCSK9 constitui uma oportunidade para a implementação de um programa de ensino multidisciplinar e estruturado ao doente, visando a doença aterosclerótica e a terapêutica específica, com eventual recurso a material multimédia e didático.
A administração inicial do anticorpo monoclonal anti‐PCSK9 deve ser efetuada em ambiente hospitalar, seguida de vigilância durante um período de 30 minutos. As administrações seguintes poderão ser efetuadas no domicílio, após o ensino do doente ou do seu cuidador.
O efeito hipolipemiante da terapêutica deve ser avaliado cerca de quatro semanas após o início do tratamento. No caso de o doente ser hiporrespondedor (redução do c‐LDL<25%) deve ser considerada a descontinuação da terapêutica. Nos indivíduos que atinjam valores de c‐LDL<25mg/dl deve ser considerada a redução da dose13.
A monitorização do efeito hipolipemiante deve ser mantida com uma periodicidade pelo menos semestral e os efeitos adversos devem ser reportados ao Sistema Nacional de Farmacovigilância (figura 4).
ConclusãoOs iPCSK9 são uma nova opção terapêutica que permite uma redução significativa dos valores de c‐LDL e do risco de eventos CV, em doentes já medicados com terapêutica hipolipemiante otimizada.
Estas recomendações para a utilização dos iPCSK9 na prática clínica em Portugal, são o resultado de uma reflexão multidisciplinar, tentando integrar uma estratégia de privilegiar a sua administração aos doentes que mais possam beneficiar, ou seja, aqueles que têm simultaneamente maior risco e valores absolutos de c‐LDL mais elevados. Como com todas as recomendações, a sua aplicação na prática clínica não substitui a avaliação clínica individual de cada doente.
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PMS has received advisory or speaker fees from Bayer, JABA‐Recordati, MSD Portugal, Kowa Pharmaceuticals, Novartis, Daiichi Sankyo, Amgen, Sanofi‐Regeneron e Tecnimede.
FA reports no conflts of interest.
CG received advisory or speaker fees from MSD, Amgen.
JF has received advisory fees from Amgen.
JM has received advisory or speaker fees from Astra Zeneca, Amgen, Bayer, Boehringer Ingelheim, Jaba, Servier, Novartis.
Com o apoio da Sociedade Portuguesa de Cardiologia; Sociedade Portuguesa de Aterosclerose; Sociedade Portuguesa de Endocrinologia; Núcleo de Estudos de Prevenção e Risco Vascular da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna.