Quando a Direção da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) para o biénio 2001‐2003 decidiu implementar o Registo Nacional de Intervenção Coronária Percutânea (RNCI), o tema dos registos era bastante atual. Era necessário conhecer a prática clínica nos vários países face aos dados dos ensaios clínicos aleatorizados e se as guidelines estavam realmente a ser implementadas. Em Portugal, pouco mais se sabia do que a mortalidade global por doenças cardiovasculares e mesmo a informação sobre coronariografias ou angioplastias era omissa ou muito incompleta.
A criação do registo pela SPC foi um desafio que se acreditou ser possível vencer. A SPC teria o papel fundamental na motivação dos médicos, naturalmente membros da sociedade, e na organização necessária para a criação dos aspetos administrativos e de recolha e análise estatística dos dados. Aproveitando a colaboração de um médico alemão amigo e com grande experiência em registos no seu país (Alselm Gitt), foi possível iniciar o RNCI em janeiro de 2002, usando folhas de registos de dados enviados para o Centro Nacional de Coleção de Dados em Cardiologia (CNCDC), criado no mesmo ano na sede da SPC, em Coimbra1. O objetivo inicial com que o projeto foi lançado era, contudo, ainda mais ambicioso. Criar‐se um registo contínuo como o existente na Suécia, que teoricamente daria mais informação do que os registos parciais que a Sociedade Europeia de Cardiologia (SEC) organizava sob a designação de Euro Heart Surveys2. O entusiasmo pela organização de registos verificou‐se em vários países e, para se usar uma linguagem comum, a Comunidade Europeia aprovou em 2004 o projeto European Data Standards for Clinical Cardiology Practice (CARDS), com a descrição dos dados sobre intervenção coronária que deviam ser recolhidos e no qual estive envolvido2.
O RNCI implementado em Portugal continental e ilhas era multicêntrico, mas voluntário, prospetivo e contínuo. Ambicionava‐se que a adesão ao projeto fosse total, porque para além de se obterem dados nacionais sobre intervenção coronária, tinha a potencial vantagem de ser fonte de investigação clínica, dando oportunidade de haver «números» que pudessem competitivamente ser apresentados no estrangeiro.
Se descrevi com um pouco mais de detalhe como o RNCI foi imaginado e implementado, é porque o presente artigo de Pereira et al. apresenta dados recolhidos entre 2002‐20133. E em 2012‐2013 foi possível ter todos os 20 centros públicos e cinco privados a incluir doentes de modo contínuo no CNCDC. É fantástico! O trabalho da Associação Portuguesa de Intervenção Coronária (APIC) deve ter sido enorme, e todos os responsáveis pelos centros e coautores do trabalho devem ser felicitados. Haverá poucos países europeus com tal registo multicêntrico contínuo.
Acredito que o caminho não terá sido fácil na exportação e uniformização de dados das múltiplas bases de dados existentes e na humildade em partilhar as diferentes experiências, embora toda a informação fosse confidencial. O apoio informático à APIC terá sido fundamental ao longo dos anos. Mas agora, com um registo contínuo de todo o país, não só todos se devem sentir orgulhosos, como haverá oportunidade de avançar muito mais em termos de investigação clínica. Como os autores reconhecem, faltam o seguimento dos doentes, as auditorias de qualidade externa e interna, e a atualização de aspetos técnicos e farmacológicos que acompanhem o progresso científico feito nos últimos anos no tratamento do enfarte agudo do miocárdio e na intervenção coronária, aspetos que dizem respeito ao artigo agora apresentado.
No artigo de Pereira et al.3 são apresentados dados correspondentes a 95‐99% dos doentes que fizeram angioplastia primária no enfarte agudo do miocárdio (ICP‐P) em 2013, em 18 centros públicos do continente e ilhas e em quatro privados. Comparando com 20024 (37% dos doentes em seis centros), o número de ICP‐P aumentou de 1118 para 3524 em 2013 (entre 106‐338 por milhão de habitantes, p<0,001). Embora abaixo do número de angioplastias primárias que deveríamos estar a fazer (600 ICP‐P/ano/milhão de habitantes) e apesar de iniciativas várias, como as Vias Verdes Coronárias (VV) e o Stent for Life, estamos não só a tratar mais doentes e doentes mais graves, como se mostra na Tabela 1, do artigo e, eventualmente, a contribuir para reduzir a mortalidade cardiovascular em Portugal. Dada a ausência de participação de todos os centros até 2012, alguns dos aspetos descritos (tipo de stents, vias de acesso, trombectomia aspirativa, etc.) e outros mais atuais só virão a ser mais valorizados na população portuguesa a partir de agora.
No entanto, os dados mais importantes e omissos no presente trabalho dizem respeito às complicações hospitalares das ICP‐P4. Em artigos recentes em mulheres5 e comparando centros com e sem cirurgia cardíaca6, não parece haver diferenças, mas não se percebe porque não são mostrados números. Este aspeto era particularmente relevante para se comparar com números de ICP‐P e estatísticas de mortalidade, relativas exclusivamente a Portugal continental, apresentadas pela Direção‐Geral de Saúde. Teria sido interessante saber a mortalidade nos doentes que fizeram ICP‐P comparativamente aos que não fizeram (trombólise ou qualquer reperfusão) e os que fizeram ICP‐P quando a admissão foi pelas VV, embora se continue a morrer mais por enfarte agudo fora do hospital.
Concretizado o sonho de ter um registo contínuo com todos os centros de cardiologia de intervenção em Portugal, para o qual estão de parabéns os médicos a APIC e a SPC, parece agora ser altura de se olhar para o futuro. A evolução da investigação científica de base clínica está em risco pelo custo dos ensaios clínicos, que eram a base da cardiologia baseada na evidência, e pela diminuição do investimento da indústria. Alternativamente, surge como emergente a chamada big data7, com dados clínicos eletrónicos e registos contínuos por doença que alteram o método científico clínico em áreas muito ricas em dados, como a cardiologia. Não será só a cardiologia de intervenção em registos clínicos contínuos com dados atulizáveis, mas o futuro passa pelo tipo de informação em a cardiologia que alguns já começam a colecionar, de modo a serem combinados e analisados conjuntamente. Acredito na importância crescente da coleção dos dados clínicos contínuos de todos os doentes e da capacidade de os comparar numa base individual, como um processo interativo que modificará profundamente o método científico e a prática médica, e obrigará, no futuro, a alterações estruturais e institucionais.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.