Foi nosso objetivo reportar a evolução da angioplastia coronária no tratamento do enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (EAMCST), entre 2002‐2013.
MétodosOs dados prospetivos multicêntricos do Registo Nacional de Cardiologia de Intervenção (RNCI) e os dados oficiais da Direção Geral de Saúde (DGS) foram conjugados para estudar os procedimentos no EAMCST entre 2002 e 2013.
ResultadosEm 2013 realizaram‐se 3524 angioplastias primárias (ICP‐P), representando um crescimento de 315% relativamente ao ano de 2002. Em 2002 a ICP‐P representava 16% do total de angioplastias coronárias, passando a representar 25% nos anos de 2012‐2013. Entre 2002‐2013 o número de procedimentos por milhão de habitantes aumentou de 106 para 338 e a angioplastia de recurso decresceu de 70,7 para 2%. Durante o período em análise, a utilização de stents eluidores de fármaco cresceu de 9,9 para 69,5%. Após 2008, observou‐se uma utilização crescente da trombectomia de aspiração, atingindo 46,7% em 2013. Os inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa registaram um decréscimo no seu uso, sendo de 73,2% em 2002 e de 23,6% em 2013. O acesso radial cresceu de 8,3% em 2008 até 54,6% em 2013.
ConclusõesDurante o período em análise, a taxa de angioplastia coronária por milhão de habitantes triplicou. A angioplastia de recurso foi ultrapassada pela angioplastia primária a partir de 2006. Observaram‐se novas tendências no tratamento do enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST, salientando‐se a utilização de stents eluidores de fármacos e o acesso radial.
The aim of the present paper was to report trends in coronary angioplasty for the treatment of ST‐elevation myocardial infarction (STEMI) in Portugal.
MethodsProspective multicenter data from the Portuguese National Registry of Interventional Cardiology (RNCI) and official data from the Directorate‐General for Health (DGS) were studied to analyze percutaneous coronary intervention (PCI) procedures for STEMI from 2002 to 2013.
ResultsIn 2013, 3524 primary percutaneous coronary intervention (p‐PCI) procedures were performed (25% of all procedures), an increase of 315% in comparison to 2002 (16% of all interventions). Between 2002 and 2013 the rate increased from 106 to 338 p‐PCIs per million population per year. Rescue angioplasty decreased from 70.7% in 2002 to 2% in 2013. During this period, the use of drug‐eluting stents grew from 9.9% to 69.5%. After 2008, the use of aspiration thrombectomy increased, reaching 46.7% in 2013. Glycoprotein IIb‐IIIa inhibitor use decreased from 73.2% in 2002 to 23.6% in the last year of the study. Use of a radial approach increased steadily from 8.3% in 2008 to 54.6% in 2013.
ConclusionDuring the reporting period there was a three‐fold increase in primary angioplasty rates per million population. Rescue angioplasty has been overtaken by p‐PCI as the predominant procedure since 2006. New trends in the treatment of STEMI were observed, notably the use of drug‐eluting stents and radial access as the predominant approach.
A angioplastia primária (ICP‐P), quando realizada atempadamente e executada por equipas experientes, é a melhor opção para o tratamento do enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (EAMCST)1. Com o objetivo de reportar a evolução do tratamento do EAMCST tratado por angioplastia coronária em Portugal, recorremos ao Registo Nacional de Cardiologia de Intervenção (RNCI) da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), assim como aos dados de atividade oficiais relativos à cardiologia de intervenção, publicados pela Direção Geral de Saúde (DGS)2.
O RNCI foi criado pela SPC, em 2002, e está sediado no Centro Nacional de Coleção de Dados (CNCDC), sob a responsabilidade da Associação Portuguesa de Intervenção Cardiovascular (APIC) da SPC. O seu objetivo é documentar de forma prospetiva e contínua as características dos doentes e dos procedimentos percutâneos realizados em Portugal3, sendo um registo multicêntrico, voluntário, prospetivo, caso a caso, tendo como base o European Data Standards for Clinical Cardiology Practice (CARDS)4.
MétodosA inclusão de doentes no RNCI tem sido progressiva. No ano inicial de atividade (2002) deste registo a amostra representou 37% do total de doentes tratados nesse ano, atingindo 99% em 2012 e 95% em 2013 (Figura 1).
Os dados do RNCI foram complementados pelos dados oficiais publicados pela DGS no que se refere ao número total angioplastias, de ICP‐P e de fibrinólise, sendo coligidos por inquéritos anuais dirigidos aos centros com cardiologia de intervenção. Os restantes dados de atividade, expressos em taxas de utilização, tiveram por base o RNCI.
Análise estatísticaAs características basais foram comparadas ao longo dos anos pelo teste de Kruskal‐Wallis para as variáveis contínuas e pelo teste de qui‐quadrado para as variáveis categóricas. As variáveis contínuas foram descritas como «média (± desvio padrão)», e as variáveis dicotómicas através de frequências relativas e absolutas.
A análise foi efetuada com recurso ao software SPSS 19, tendo sido considerado significativo um valor de p < 0,05.
ResultadosA Figura 2 mostra a evolução da intervenção percutânea coronária entre os anos de 2002‐2013. Em números absolutos, durante esse mesmo período, a ICP‐P triplicou em Portugal (Figura 3, p < 0,001), observando‐se um incremento progressivo de 106 até 338 ICP‐P por milhão de habitantes (Figura 4, p < 0,001).
No início do estudo, predominava a angioplastia de recurso, que representava 70,7% da ICP no contexto de EAMCST, em contraste com o último ano, em que representou 2,0%, face a 85,9% da ICP‐P (p < 0,001). Entre 2002‐2013, a ICP‐P cresceu de 16 até 25% da atividade global nacional (Figura 5, p < 0,001).
A Figura 6 apresenta a proporcionalidade entre ICP‐P, angioplastia de recurso e angioplastia facilitada, no tratamento do EAMCST.
Na Tabela 1 pode observar‐se a evolução, em termos demográficos, da população tratada. Constata‐se não haver diferenças estatisticamente significativas quanto à idade, sexo e antecedentes de insuficiência cardíaca. Observam‐se diferenças nas variáveis: antecedentes de diabetes mellitus, antecedentes de ICP e antecedentes de insuficiência renal crónica, que demonstram um crescimento ao longo do período analisado. Também se observa um decréscimo no número de intervenções nos doentes com antecedentes de cirurgia de pontagem aortocoronária (CABG).
Dados demográficos e antecedentes clínicos
2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 62±12 | 63±12 | 64±11 | 64±11 | 64±11 | 64±12 | 64±12 |
Sexo feminino | 24,5% | 24,2% | 25% | 26,3% | 25,8% | 25% | 25,1% |
Antecedentes diabetes mellitus | 22,6% | 23% | 27% | 29,3% | 28,4% | 29,4% | 28,7% |
Antecedentes de PCI | 22,9% | 24,5% | 25,4% | 27,1% | 30,5% | 28,1% | 26,6% |
Antecedentes de CABG | 9,2% | 9,5% | 9,6% | 9,4% | 8% | 8,7% | 7,4% |
Antecedentes de insuficiência cardíaca | 8,3% | 4,5% | 4,3% | 2,9% | 2,1% | (127/3107) 4,1% | (218/5546) 3,9% |
Antecedentes de doença vascular periférica | (18/2310) 0,8% | (37/2851) 1,3% | (38/2781) 1,4% | (42/3357) 1,3% | (92/3731) 2,5% | (72/3431) 2,1% | (112/5350) 2,1% |
Antecedentes de insuficiência renal crónica | 3,6% | 4% | 6,4% | 5,9% | 5,9% | 5,8% | 5,2% |
2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2103 | p | |
---|---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 65±12 | 65±12 | 65±12 | 65±12 | 65±12 | ns |
Sexo feminino | 26% | 25,4% | 25% | 25,1% | 26,2% | ns |
Antecedentes diabetes mellitus | 30,7% | 29,9% | 31,9% | 30,4% | 32,5% | <0,001 |
Antecedentes de PCI | 26,9% | 27,4% | 28,8% | 28,7% | 30% | <0,001 |
Antecedentes de CABG | 7,1% | 7,1% | 6,6% | 7,5% | 7,4% | <0,001 |
Antecedentes de insuficiência cardíaca | (220/7353) 3% | (258/7968) 3,2% | (407/9925) 4,1% | (494/10703) 4,6% | (471/10894) 4,3% | Ns |
Antecedentes de doença vascular periférica | (154/6848) 2,2% | (218/7604) 2,9% | (264/8477) 3,1% | (342/9611) 3,6% | (372/10054) 3,7% | 0,020 |
Antecedentes de insuficiência renal crónica | 5,2% | 6,3% | 5,7% | 7% | 7,5% | <0,001 |
Em todo o período em avaliação os stents foram utilizados na grande maioria das intervenções (Figura 7), com uma taxa de utilização de 92,2% em 2013 (p = 0,287). Os stents eluidores de fármaco (DES), introduzidos no mercado português em 2002, tiveram, nesse mesmo ano, uma utilização de 9,9%, passando para 43,4% no ano seguinte, atingindo o pico em 2005, com 69,5% de utilização (p < 0,001). Em 2013, a taxa de utilização foi de 64,5% (Figura 8).
Trombectomia aspirativaA trombectomia manteve‐se com valores residuais até 2008, ano em que sofreu um incremento apreciável, passando de 4,5% no ano precedente para 18,8% nesse ano. Em 2013, 46,7% dos casos de ICP‐P foram submetidos a trombectomia (Figura 9, p < 0,001).
Inibidores das glicoproteínas IIb/IIIaEm 2002, 73,2% das ICP‐P foram efetuadas com recurso a inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa. A partir de 2006, observou‐se uma importante quebra na utilização, que passou a ser de 22,5% nesse ano (Figura 10). Em 2013, a taxa de utilização foi de 23,6% (p < 0,001).
Acesso radialO acesso radial manteve‐se em valores residuais entre 2002‐2007. A partir de 2008 observou‐se um aumento, desde os 8,3% observados nesse ano, até aos 54,6% verificados em 2013, ano em que os doentes foram tratados maioritariamente por esta via (Figura 11, p < 0,001).
DiscussãoNão obstante a ICP se ter desenvolvido e divulgado durante os anos 80, só cerca de uma década mais tarde foi aceite, na generalidade, a efetividade da ICP‐P no tratamento do EAMCST5. Entre 1998‐2001, realizaram‐se em Portugal, respetivamente, 442, 641, 769 e 957 ICP‐P6. Com os dados que agora publicamos, completamos a progressão da ICP‐P até 2013. Esta evolução foi sempre positiva, tendo‐se observado o maior salto entre 2007‐2008, com uma taxa de crescimento de 27%. É muito importante realçar a evolução da proporção de ICP‐P face às restantes intervenções coronárias. No início do estudo, a ICP‐P representava 16% da atividade dos laboratórios, atingindo os 25% nos últimos dois anos do registo, o que coloca mais exigências formativas e organizativas por se tratar de um tipo de procedimento realizado num contexto menos controlado e mais imprevisível.
É também interessante salientar o papel que a ICP‐P foi tomando ao longo dos anos, face aos outros tipos de angioplastia no contexto do EAMCST. Em 2002, ainda não havia registo da angioplastia facilitada e a angioplastia de recurso representava 70,7% dos procedimentos neste contexto. Progressivamente, a angioplastia de recurso foi diminuindo e, a partir de 2007, caiu abaixo dos dois dígitos percentuais. Os dados publicados pela DGS mostram uma relação inversa entre evolução da ICP‐P e da fibrinólise, observando‐se uma redução progressiva da fibrinólise à medida que a ICP‐P cresceu2.
Durante o período em análise já era rotina o uso de stents no EAMCST e isso está refletido na percentagem de utilização de stents que foi sempre superior a 85%. A taxa de utilização de DES na ICP‐P foi 43,4% logo no ano seguinte à sua introdução em Portugal, numa fase em que ainda não havia consenso sobre a sua utilização no contexto de EAMCST. O pico verificou‐se em 2005, onde atingiu uma taxa de 69,4%, a que se seguiu um decréscimo acentuado (37,9% em 2008), atribuível às dúvidas colocadas em 2006 no Congresso Europeu de Cardiologia, em Barcelona, sobre o aumento de trombegenicidade dos DES7. Progressivamente, a partir de 2009, os DES foram ganhando terreno e atingiram uma taxa de 64,5% em 2013, o que está de acordo com as atuais recomendações europeias para a revascularização miocárdica1.
O estudo TAPAS8 sugeriu o benefício da trombectomia aspirativa realizada por rotina e terá contribuído para o aumento da trombectomia manual aspirativa a partir de 2008 (4,5% em 2007 e 18,8% em 2008), atingindo 46,7% no último ano do registo. Estes resultados ainda não refletem os resultados dos estudos TASTE9 e TOTAL10, visto terem sido apresentados fora da janela do presente estudo. Em consonância com os resultados mais recentemente publicados, uma análise do RNCI não demonstrou vantagem da trombectomia aspirativa11.
A utilização de inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa sofreu um decréscimo de 68% entre 2002‐2013. Em 2002, a taxa de utilização foi de 73,2% e, em 2013, foi de 23,6%, podendo‐se especular que a esta evolução não será alheia a introdução, no arsenal da terapêutica adjuvante, da bivalirudina e dos novos antiagregantes plaquetários. As heparinas de baixo peso molecular mantiveram sempre valores de utilização relativamente residuais.
O acesso radial manteve uma utilização diminuta até 2008, altura em que cresceu para 8,3%, observando‐se desde então um importante incremento anual, atingindo os 54,6% em 2013, o que está na linha com o que se passou nos procedimentos portugueses12 em geral e com os bons resultados apresentados pelos estudos STEMI‐RADIAL13 e MATRIX14.
O acesso à ICP‐P, em Portugal, mostrou uma evolução positiva, com boas taxas de crescimento e mostrando a incorporação da inovação e das novas tecnologias. No contexto europeu, em particular com os números do norte da Europa, Portugal, durante a década passada, apresentava‐se como um dos países europeus com menores taxas de ICP‐P por ano e por milhão de habitantes. No artigo publicado por Petr Widimsky15, em 2010, surgimos como um dos países com menos de 200 ICP‐P/ano/milhão de habitantes, assim como com uma taxa de ICP‐P de apenas 19% e com 37% de doentes não reperfundidos, nem por angioplastia, nem por fibrinólise. Na origem desta taxa de não reperfusão poderá estar o facto de 55% dos doentes terem chegado após as 12 horas do início dos sintomas16. Igualmente preocupante era a diminuta taxa 23% de doentes que ligava para o 112. Nesta prestação da ICP‐P Portugal estava acompanhado por outros países da orla mediterrânica, em contraste com os países do norte da Europa, em que o número de ICP‐P/ano/milhão era superior a 600. Foi neste contexto que, no Congresso Europeu de Cardiologia de 2009, a Sociedade Europeia de Cardiologia deu corpo à iniciativa Stent for Life (SFL)17–19, com o objetivo reduzir a mortalidade por EAMCST. Para este efeito, o projeto propôs‐se atingir uma taxa de 600 ICP‐P/ano/milhão de habitantes. Portugal integrou a SFL em 2011, através da APIC da SPC, tendo sido criada uma task force que analisou as principais barreiras a uma terapêutica de eleição20. Numa revisão mais recente, publicada por Steen Kristensen21 em 2014, no âmbito da iniciativa SFL, Portugal apresenta indicadores bem mais favoráveis e enquadrados com a média europeia. Os dados relativos a 2010/2011 são referentes a 37 países europeus, mantendo os países do norte da Europa taxas mais elevadas de ICP‐P. Os nossos resultados21 comparam‐se com os da Bélgica (297/ano/milhão), Espanha (225/ano/milhão), Finlândia (265/ano/milhão), Grécia (346/ano/milhão), Gronelândia (396/ano/milhão) e Inglaterra/País de Gales (286/ano/milhão). Os resultados obtidos têm diversas explicações: a evidência científica robusta favorável à adoção da ICP‐P, a cooperação local entre os referenciadores e as instituições, a extensão e aperfeiçoamento da Via Verde Coronária, as ações da campanha SFL e a inovação, que permite evoluir a técnica do procedimento e tratamentos adjuvantes.
Limitações do estudoO RNCI apresenta algumas limitações. A exportação de todos os centros para o registo foi alcançada em 2013, pelo que as percentagens aqui apresentadas têm por base os doentes que estão registados, que variaram entre 37% em 2002 e 99% em 2012. Como referimos anteriormente, não existe seguimento sistemático de todos os doentes, o que nos impede a apresentação de resultados clínicos hospitalares e no seguimento após a alta. Outra limitação atual do RNCI é a ausência de auditoria interna e externa.
ConclusãoEntre 2002‐2013 triplicou a taxa de ICP‐P por milhão de habitantes. A angioplastia de recurso foi ultrapassada pela ICP‐P em 2006. Observaram‐se novas tendências no tratamento do EAMCST, salientando‐se a utilização preferencial de DES e o acesso radial, que passou a predominar em 2013.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Agradecemos à Dra. Adriana Belo, bioestatística do Centro Nacional de Coleção de Dados em Cardiologia (CNCDC), a colaboração no tratamento dos dados do Registo Nacional de Cardiologia de Intervenção.