Os mixomas são os tumores cardíacos benignos mais frequentes. Manifestam-se, habitualmente, por sintomas decorrentes da obstrução das válvulas auriculoventriculares ou de fenómenos de embolização. A embolização coronária é uma complicação rara dos mixomas cardíacos, mas real e potencialmente fatal. Apresentamos um caso clínico e a revisão da literatura relativamente a esta associação clínica. Trata-se de uma doente do sexo feminino, 57 anos de idade, internada na Unidade Coronária com o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio (EAM) sem elevação do ST. No ecocardiograma transtorácico observou-se uma volumosa massa auricular esquerda fixada ao septo interauricular, de estrutura coraliforme e aspeto friável, sugestiva de mixoma. A angiografia coronária não revelou lesões significativas e a doente foi submetida a cirurgia de excisão da referida massa, cujo exame histológico foi compatível com mixoma. O pós-operatório decorreu sem complicações e a doente mantém-se clinicamente bem e sem recorrência do mixoma.
Myxomas are the most common type of benign cardiac tumor. The most frequent clinical presentations are symptoms resulting from atrioventricular valve obstruction or systemic embolization. Coronary embolization is a rare, although real and potentially fatal, complication of cardiac myxomas. We present a case report and review of the literature on this disease association. A 57-year-old woman was admitted to our coronary care unit with a diagnosis of non-ST elevation acute myocardial infarction. Transthoracic echocardiography showed a large left atrial mass attached to the interatrial septum, coral-like and with a friable appearance, suggestive of myxoma. Coronary angiography revealed no significant lesions and the patient underwent surgical excision of the mass, which histological study showed to be compatible with myxoma. The postoperative period was uneventful and the patient is doing well, with no recurrence of myxoma.
Os tumores cardíacos primários são uma entidade rara1. A maioria são tumores benignos e, destes, cerca de metade são mixomas e localizam-se frequentemente na aurícula esquerda2.
A apresentação clínica é geralmente inespecífica e com predomínio de sintomas constitucionais, embora também se manifestem através de sintomas decorrentes da obstrução das válvulas auriculoventriculares ou de fenómenos de embolização, pelo que o seu diagnóstico precoce mantém-se um desafio na prática clínica.
A embolização coronária é uma complicação rara dos mixomas cardíacos, mas real e potencialmente fatal, sendo o ecocardiograma precoce no contexto de EAM fundamental para o adequado diagnóstico e orientação urgente para cirurgia cardíaca para a ressecção do mixoma, no sentido de evitar as consequências potencialmente catastróficas de nova embolização coronária ou sistémica.
Caso clínicoDoente do sexo feminino, 57 anos de idade, ex-fumadora, com história conhecida de diabetes mellitus tipo 2 não insulino tratada, dislipidémia e doença bipolar. Recorreu ao Serviço de Urgência por quadro de epigastralgias e náuseas com cerca de uma semana de evolução e agravamento no dia anterior ao internamento, não se identificando fatores desencadeantes, de alívio ou agravamento, embora os sintomas fossem de difícil caracterização. Referia ainda artralgias generalizadas com alguns meses de evolução, predominantemente diurnas e sem caráter mecânico. Negava dor precordial, tonturas, síncope ou queixas de insuficiência cardíaca.
Ao exame objetivo apresentava-se hemodinamicamente estável e sem alterações relevantes. O eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações mostrava taquicardia sinusal, com infra-ST em V4, ondas T negativas em V4-V5 e aplanadas em V6 e derivações frontais (Figura 1). Os testes laboratoriais revelaram hemoglobina 11,3g/dL, velocidade de sedimentação 84mm, proteína C reativa 6,14mg/dL, troponina I 1,89 ng/dL (com discreta subida na segunda determinação para 2,02 ng/mL) e CK-mb 8,4 ng/mL, pelo que foi internada na Unidade Coronária com o diagnóstico de EAM sem elevação do ST. O ecocardiograma transtorácico revelou compromisso moderado a grave da função sistólica do ventrículo esquerdo, com acinésia apical e hipocinésia dos segmentos mesoapicais das paredes anterior, lateral e septo interventricular. Além das alterações da contratilidade segmentar, observou-se uma volumosa massa auricular esquerda fixada ao septo interauricular, de estrutura coraliforme e aspeto friável, com cerca de 46mm de maior eixo, cuja porção mais apical prolapsava para o ventrículo esquerdo em diástole sobre o folheto anterior da válvula mitral, não condicionando obstrução fixa ao fluxo de câmara de entrada do VE (Figura 2). Dada a elevada probabilidade de se tratar de um mixoma, realizou de imediato ecocardiograma transesofágico (Figura 3), que confirmou os achados descritos em transtorácico, pelo que, mediante a possibilidade de embolização eminente, foi contactado o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do nosso hospital de referenciação, que aceitou receber a doente após realização de angiografia coronária, a qual mostrou artérias coronárias sem lesões angiograficamente significativas (Figura 4).
Foi submetida a cirurgia de excisão da massa auricular esquerda, descrita macroscopicamente como uma enorme estrutura, extremamente friável, que se fragmentava à tentativa de fixação com pinça, cujos fragmentos formavam uma esfera com 5cm de diâmetro, de aspeto gelatinoso, com áreas de hemorragia. O exame anátomo-patológico foi compatível com mixoma.
O pós-operatório decorreu sem complicações, tendo-se verificado normalização da função sistólica do ventrículo esquerdo e recuperação quase completa das alterações segmentares previamente descritas. A doente mantém-se clinicamente bem e, até ao presente, não se detetou recorrência do mixoma por avaliação ecocardiográfica (Figura 5).
Discussão/conclusõesO mixoma é o tumor cardíaco mais frequente, constituindo 50% dos tumores cardíacos primários benignos2. Ocorre mais frequentemente entre os 30 e os 60 anos de idade e no sexo feminino1. Manifesta-se habitualmente de forma esporádica, embora estejam descritos casos familiares, de localização multifocal, a maioria pertencentes ao Síndroma de Carney.
Cerca de 85% dos mixomas localizam-se na aurícula esquerda, sendo o local de fixação mais comum a fossa ovalis, e os restantes localizam-se na aurícula direita (10%) e ventrículos (5%)3.
O diagnóstico de mixoma cardíaco é raramente efetuado com base na história clínica, exame físico e radiografia de tórax, uma vez que não existem sinais ou sintomas suficientemente específicos que permitam estabelecer um diagnóstico com segurança4. Os doentes com mixomas cardíacos sintomáticos podem apresentar-se com uma variedade de achados inespecíficos, relacionados com o tamanho, a localização e a mobilidade do tumor. No entanto, a maioria dos casos enquadrar-se-á num dos 3 tipos de apresentação clínica clássicos: obstrutivo, embólico ou constitucional.
O padrão obstrutivo mimetiza a doença valvular mitral e tricúspide e ocorre devido ao bloqueio das válvulas auriculoventriculares, podendo condicionar achados físicos, nomeadamente auscultatórios, que não raramente conduzem ao diagnóstico clínico erróneo de estenose ou insuficiência das respetivas válvulas.
As manifestações constitucionais ou sistémicas, conhecidas globalmente como «síndroma do mixoma», tais como fadiga, febre, perda de peso, artralgias, mialgias, rash eritematoso e alterações laboratoriais, como anemia e elevação da velocidade de sedimentação, proteína C reativa e globulinas, têm sido relacionadas de forma discordante com o tamanho e a localização do tumor1,4. Acredita-se que estas manifestações estejam relacionadas com a produção e libertação de IL-6 pelas células do próprio tumor, sendo também sugerida a relação com fenómenos de hemorragia intratumoral, microembolismo ou a libertação de fragmentos tumorais, que estimulam uma resposta imunológica no doente3. Em qualquer dos casos, as manifestações sistémicas resolvem após remoção do tumor.
No que diz respeito aos fenómenos embólicos, mais concretamente à embolização coronária, até ao presente estão publicados na literatura cerca de 70 casos de associação entre EAM e mixoma cardíaco. Após revisão dos mesmos, conclui-se que a embolização sistémica a partir do mixoma ocorre em cerca de 1/3 dos casos, mas a incidência de embolização coronária é de apenas 0,06%, o que torna o enfarte agudo do miocárdio como manifestação inicial do mixoma num evento raro5. Foram propostas 2 explicações possíveis para esta baixa incidência de embolização coronária. A primeira prende-se com o facto de os ostia coronários estarem dispostos em posição perpendicular relativamente ao fluxo aórtico e a segunda é que a abertura das cúspides aórticas em sístole protege os ostia coronários de fenómenos embólicos5. Por outro lado, suspeita-se que este valor esteja subestimado, quer pela ausência de avaliação ecocardiográfica sistemática de todos os doentes com enfarte agudo do miocárdio, quer pela ausência de publicação de dados relacionados com os eventos fatais. Daqui se depreende a extrema importância da avaliação ecocardiográfica de doentes que se apresentam com enfarte agudo do miocárdio previamente à instituição de terapêutica dirigida, já que será a única forma de evitar a utilização potencialmente deletéria de agentes trombolíticos que aumentam o risco de embolização do mixoma, quer por lise de trombos acumulados, quer por hemorragia e rotura de pequenos fragmentos6.
Nos casos de mixomas cardíacos que se apresentam com enfarte agudo do miocárdio, é pertinente a realização de angiografia coronária para investigação de doença coronária, especialmente em doentes com idade superior a 40 anos ou com fatores de risco cardiovascular. Tem sido documentada a embolização nas artérias coronárias descendente anterior e circunflexa, embora a embolização para a coronária direita seja mais prevalente, possivelmente devido à posição anatómica relativamente favorável do ostia da coronária direita em relação ao fluxo aórtico. Num número não desprezível de casos não foram encontradas lesões coronárias por angiografia, o que pode ser justificado pela elevada taxa de recanalização das embolias coronárias a partir de mixomas6.
O ecocardiograma permanece como o método de eleição para o diagnóstico e a caracterização morfológica do mixoma. Foram determinados 2 padrões de mixoma por ecocardiografia: redondo, que tem aparência sólida e circular com uma superfície imóvel; e polipoide, de contornos irregulares e superfície móvel. A incidência de embolização sistémica é superior nos tumores com uma superfície irregular e friável relativamente aos de superfície lisa4, estando também associada aos tumores polipoides e que prolapsam para o ventrículo2.
No nosso caso clínico, o mixoma auricular esquerdo era polipoide com uma superfície irregular e bastante friável, que prolapsava através do orifício valvular mitral. Não obstante estas características, bem como as suas grandes dimensões, não foram documentados previamente à situação atual outros sintomas obstrutivos ou eventos embólicos periféricos.
Uma vez efetuado o diagnóstico de mixoma, a cirurgia de ressecção é o único tratamento eficaz e deve ser realizado de imediato, dado o perigo eminente de embolização. O prognóstico a curto e longo prazo é excelente e as recorrências são raras, sendo, contudo, recomendado o follow-up ecocardiográfico semestral em todos os casos1.
Com este caso clínico pretendemos alertar para o facto de um diagnóstico tão comum na nossa prática clínica diária como é o enfarte agudo do miocárdio, poder ser a forma de manifestação de uma entidade rara como é o mixoma auricular, devendo ser sempre pesquisada uma fonte embólica nos casos de enfarte do miocárdio com coronárias angiograficamente normais. A ausência de lesões ateroscleróticas ou trombos coronários está de acordo com a elevada taxa de recanalização documentada nas embolias a partir de mixomas, particularmente naqueles com superfícies extremamente friáveis, como é o caso descrito. Salienta-se ainda a importância fundamental da ecocardiografia neste caso, efetuada precocemente na abordagem do doente, que possibilitou o correto diagnóstico e a imediata orientação para a única terapêutica que poderia impedir um desfecho potencialmente fatal.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.