A tomografia computorizada cardíaca (angioTC cardíaca) permite documentar a presença de doença coronária, independentemente do seu grau de estenose. Recentemente, foi validado o valor prognóstico da doença coronária não obstrutiva documentada por angioTC cardíaca. No entanto, não existem ainda recomendações claras acerca da abordagem destes doentes, nomeadamente sobre o início de medidas farmacológicas mais agressivas em prevenção primária. A abordagem destes doentes permanece controversa, sobretudo nos casos em que existe uma discrepância entre o risco cardiovascular e a carga aterosclerótica objetivada na angioTC.
Os autores descrevem o caso de um doente com discrepância entre a extensão da aterosclerose coronária objetivada e a sua estimativa de acordo com os scores de probabilidade pré-teste e de eventos cardiovasculares. Tratando-se de um indivíduo com documentação de aterosclerose coronária acima do esperado - score de cálcio superior ao percentil 90 e doença coronária não obstrutiva na angioTC cardíaca, mas por outro lado, assintomático e sem fatores de risco nem antecedentes cardiovasculares, com uma estimativa de risco cardiovascular muito baixa e atleta de competição, torna-se difícil decidir acerca do risco/benefício de medidas farmacológicas de prevenção primária.
Cardiac computed tomography (CT) documents the presence of coronary artery disease, regardless of the degree of stenosis. The prognostic value of non-obstructive coronary artery disease documented by cardiac CT has recently been validated. However, there are still no clear guidelines on the management of such patients, particularly concerning initiation of more aggressive pharmacological measures for primary prevention. The approach to these patients remains controversial, especially in cases in which there is a discrepancy between cardiovascular risk and the atherosclerotic burden as documented by cardiac CT.
The authors describe the case of a patient with a discrepancy between the extent of documented coronary atherosclerosis and that estimated according to pretest probability and cardiovascular risk scores. As this individual had more severe coronary atherosclerosis than expected (calcium score above the 90th percentile and non-obstructive coronary artery disease on cardiac CT) but was a competitive athlete and otherwise asymptomatic and without risk factors or cardiovascular history, with a very low estimated cardiovascular risk, it was difficult to decide on the risks and benefits of pharmacological primary prevention.
Descreve-se o caso de um homem de 47 anos, sem fatores de risco cardiovascular ou antecedentes pessoais/familiares relevantes, desportista de alta competição, praticante de Ironman – triatlo de longas distâncias composto por natação (3 800 m), ciclismo (180km) e corrida (42,2km). O doente negava a toma de medicação regular e o abuso de substâncias aditivas como tabaco, álcool ou estimulantes como sendo esteroides anabolizantes. Na sequência de um quadro de infeção respiratória e a pedido do seu médico assistente (Medicina Geral e Familiar), realizou uma tomografia computorizada (TC) torácica, em que foi relatada como achado extrapulmonar a presença de «calcificação das artérias coronárias». Por este motivo, realizou uma angioTC cardíaca para quantificação da calcificação coronária e exclusão da presença de doença coronária obstrutiva. O score de cálcio foi de 226, distribuído por todas as artérias coronárias epicárdicas, com predomínio na artéria descendente anterior proximal (Figura 1). De acordo com os normogramas publicados1, este valor estava muito acima do esperado para o sexo masculino nesta faixa etária (superior ao percentil 90). Este valor seria o expectável (percentil 50) para um indivíduo na sexta década de vida.
Na aquisição com contraste foi possível excluir doença coronária obstrutiva. Documentou-se a presença de placas mistas, mas predominantemente calcificadas, dispersas por toda a árvore coronária, sobretudo no tronco comum e no segmento proximal da artéria descendente anterior. Foram evidentes placas com remodelagem positiva (Figuras 2 e 3).
AngioTC cardíaca: A – placas predominantemente calcificadas dispersas no segmento proximal da artéria descendente anterior, sem condicionar estenose significativa; B – placa mista, excêntrica, com remodelagem positiva; C e D – artérias circunflexa e coronária direita (vaso dominante) com placas mistas minor, sem estenoses significativas.
Com o resultado deste exame, o doente recorreu a consulta de cardiologia. Encontrava-se assintomático e, ao exame objetivo, não apresentava alterações relevantes: TA 140/80mmHg, FC 60 bpm, IMC 23,7kg/m2; auscultação cardíaca com S1S2 rítmicos, sem sopros e auscultação pulmonar com murmúrio vesicular mantido, simétrico e sem ruídos adventícios audíveis; membros sem edemas periféricos, pulsos distais palpáveis, amplos e simétricos.
O doente tinha realizado recentemente (há menos de 6 meses) exames laboratoriais, prova de esforço e ecocardiograma, pedidos no âmbito de avaliação em medicina do trabalho. Nos exames laboratoriais havia a destacar: hemoglobina 14,0g/dl, glicemia em jejum 84mg/dl, colesterol total 217mg/dl, colesterol LDL 116mg/dl, colesterol HDL 116mg/dl e triglicéridos 70mg/dl. A prova de esforço foi efetuada segundo o protocolo Bruce, teve a duração de 21 min, atingiu 19,3 MET, normal evolução cronotrópica (101% da FC máxima prevista) e normal evolução tensional (TA basal 130/80mmHg e 200/80mmHg no pico de esforço). Não apresentou queixas durante a realização da prova, nomeadamente angor, nem ocorreram alterações electrocardiográficas sugestivas de isquemia nem disritmias. O ecocardiograma revelou alterações típicas de coração de atleta – hipertrofia ventricular esquerda excêntrica ligeira, sem dilatação ventricular, com fração de ejeção e função diastólica normais, assim como dilatação auricular esquerda ligeira (Figura 4).
Pelo cálculo de scores de probabilidade de doença coronária, o doente encontra-se numa categoria de baixa probabilidade, sobretudo atendendo à idade e à ausência de sintomas: Score de Diamond-Forrester – baixa probabilidade; Score de Morise – score 6 (baixa probabilidade se < 8).
O risco de eventos cardiovasculares estimado foi igualmente baixo: HeartScore – 1%; Framingham – 4%, nomeadamente atendendo à idade, à ausência de fatores de risco e a um perfil lipídico favorável.
Apesar de se tratar de um indivíduo assintomático e com baixo risco cardiovascular, pela presença de doença aterosclerótica coronária na angioTC cardíaca com um score de cálcio elevado, além da manutenção de medidas preventivas para o controlo dos fatores de risco cardiovascular, optou-se por iniciar terapêutica farmacológica com estatina (rosuvastatina 5mg/d). Foi também recomendada a redução da intensidade da prática desportiva, nomeadamente em contexto de alta competição.
DiscussãoO caso apresentado descreve um quadro clínico com uma importante discrepância entre a carga aterosclerótica coronária objetivada na angioTC cardíaca e o baixo risco cardiovascular estimado. Este caso levanta várias questões controversas e com resposta ainda inconclusiva, nomeadamente em relação à indicação para realização de angioTC cardíaca e à abordagem de doentes em que se documenta doença coronária não obstrutiva, sendo representativo de um subgrupo de doentes com que cada vez mais somos confrontados e para os quais ainda não existem recomendações claras.
O primeiro passo a adotar na avaliação de um doente com suspeita de doença coronária deve ser a avaliação clínica exaustiva com o cálculo da probabilidade pré-teste para a presença de doença coronária e a estimativa da ocorrência de eventos cardiovasculares. Existem inúmeros scores que permitem fazer esta estratificação de risco, sendo os mais usados na determinação da probabilidade pré-teste para a presença de doença coronária o Diamond-Forrester e o Morise e na estimativa da probabilidade para a ocorrência de eventos cardiovasculares o HeartScore e o Framingham. O doente em causa, de acordo com todos estes scores, encontra-se na categoria de baixa probabilidade de doença coronária e de baixo risco para eventos cardiovasculares.
No caso descrito, o primeiro ponto que importa analisar e discutir é a indicação deste doente para o cálculo do score de cálcio e a realização de angioTC cardíaca. Nos doentes assintomáticos e com baixo risco cardiovascular não está indicada a avaliação do score de cálcio nem a realização de angioTC cardíaca. Nas recomendações para a avaliação do risco cardiovascular em adultos assintomáticos da American Heart Association, neste contexto, ambos os exames têm classe de recomendação iii, não devendo, portanto, ser realizados2. A maior acessibilidade existente atualmente para o pedido e a realização de exames complementares de diagnóstico leva a que, por vezes, estes sejam realizados de forma indiscriminada e sem indicação, sendo difícil a interpretação dos seus resultados. No caso descrito, após a realização destes exames, o doente passou para um patamar de risco superior ao indicado pelos scores de avaliação e de predição de risco cardiovascular. Por um lado, o valor do score de cálcio associa-se diretamente a maior mortalidade a longo prazo3. Por outro lado, além do pior prognóstico comprovado pela presença de doença coronária obstrutiva determinada pela angioTC cardíaca, também a presença de doença não obstrutiva se associa a maior mortalidade, comparativamente aos doentes sem estenoses coronárias. Estes dados foram comprovados pelo registo multicêntrico CONFIRM, recentemente publicado, após a análise de 23 854 doentes4. Portanto, as alterações encontradas neste doente, score de cálcio elevado e placas não obstrutivas, terão impacto negativo no seu prognóstico.
Com estes dados, surge também a questão sobre quais deverão ser as medidas preventivas a implementar. A presença de doença aterosclerótica representa uma manifestação subclínica de doença coronária e pode ser considerada como um qualifier, colocando o doente num patamar de risco superior, com indicação para estratégias preventivas diferentes dos doentes com o mesmo perfil de risco, mas sem estas alterações5. Independentemente do perfil lipídico, que neste caso é normal, salientando-se mesmo o elevado valor do colesterol HDL, comum em atletas, poderá estar indicado o início de terapêutica farmacológica com estatina, além das medidas preventivas comuns de controlo dos fatores de risco cardiovascular6,7. Assim, além do controlo destes fatores de risco através da manutenção de hábitos de vida saudáveis, a estratégia adotada incluiu o início de terapêutica com estatina. Esta atitude advém da comprovada redução do grau de estenose e do volume da placa aterosclerótica nos doentes medicados com estatina8. Outra classe farmacológica com benefício comprovado em doentes com doença coronária conhecida são os antiagregantes plaquetários. No entanto, segundo as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia para a prevenção da doença cardiovascular, deverão ser apenas prescritos aos doentes com doença coronária estabelecida ou risco cardiovascular elevado (HeartScore > 10%)5. Neste sentido e adicionalmente aos efeitos adversos não desprezíveis destes fármacos, sobretudo num doente potencialmente exposto a eventuais complicações hemorrágicas pelo tipo de desporto que pratica, optou-se pela sua não prescrição.
Outro ponto importante é avaliar a indicação para a suspensão ou redução do exercício físico, nomeadamente em contexto de alta competição. O triatlo, segundo a 36.a Conferência de Bethesda, é um desporto caracterizado tanto por uma elevada intensidade dinâmica como estática9. Por outro lado, o Ironman (triatlo levado ao extremo) corresponderá a cargas de intensidade ainda mais elevadas. Segundo esta conferência, os atletas de baixo risco cardiovascular com doença coronária, como o caso do doente apresentado, podem realizar desporto competitivo de baixa intensidade dinâmica e de baixa/moderada intensidade estática, mas deverão evitar provas com intensidade competitiva elevada. Nas mesmas recomendações releva-se também o papel do score de cálcio na avaliação dos atletas, devendo os cuidados ser acrescidos quando os valores são superiores a 1009. Assim, o doente foi aconselhado a suspender provas de alta competição e a reduzir a intensidade do exercício efetuado.
ConclusãoA determinação do risco cardiovascular e da probabilidade pré-teste constituem o primeiro passo na avaliação dos doentes com suspeita de doença coronária. A presença de doença coronária não obstrutiva tem impacto prognóstico, devendo estes doentes, mesmo com risco cardiovascular baixo, ser alvo de medidas preventivas mais intensas. Contudo, a melhor abordagem a adotar, especialmente iniciar terapêutica farmacológica, permanece mal definida. Adicionalmente, na presença de doentes que praticam desporto de alta competição, a controvérsia estende-se ao tipo de recomendação relativamente à redução da sua prática. Provavelmente, a melhor atitude deverá ser a avaliação de cada doente caso a caso, de acordo com o tipo de desporto efetuado e a intensidade do mesmo.
Responsabilidades éticasProteção dos seres humanos e animaisOs autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsínquia.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.