É sobejamente conhecido que as doenças cardiovasculares (DCV) constituem a principal causa de mortalidade e morbilidade nos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, com consideráveis custos sociais e económicos associados, sendo por isso consideradas um importante problema de saúde pública a que urge dar resposta1–3. De acordo com um recente relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), essa tendência persistirá, pelo menos, até ao ano 20304.
Paralelamente, a conjugação de um conjunto de situações vieram criar alguns desafios no âmbito das doenças cardiovasculares, a nível nacional e internacional, entre os quais se destacam: i) o desenvolvimento dos conhecimentos decorrentes da investigação biomédica; ii) as modificações da patologia ao longo do tempo; iii) as alterações demográficas com particular destaque, pelas suas profundas implicações, para o aumento da esperança de vida; iv) os estilos de vida e consequente aumento dos fatores de risco (destacando-se tabagismo, sedentarismo, diabetes, obesidade, hipertensão, para destacar apenas alguns); v) a crescente incorporação de novas tecnologias e diferentes estratégias terapêuticas na prática clínica, cada vez mais avançadas, sofisticadas e dispendiosas; vi) a busca de sistemas de prestação com a máxima qualidade e segurança; vii) a espiral de crescimento dos custos associados aos cuidados de saúde; viii) o facto de alguns autores apontarem para a existência de uma associação entre as DCV e o nível socioeconómico, remetendo para a necessidade de estudos mais aprofundados no sentido de se avaliar eventuais desigualdades a esse nível.
As desigualdades no modo como os indivíduos nascem e se desenvolvem, e que se repercutem na educação, ocupação ou habitação, têm origem ao nível macro, nomeadamente nas políticas públicas, sociais e macroeconómicas, nos valores da sociedade e no contexto sociopolítico5. Assim, as características socioeconómicas do indivíduo podem condicionar a exposição a situações que poderão influenciar o seu estado de saúde, afetar o estilo de vida e as opções que tomam e interferir no acesso aos cuidados de saúde.
Dentro das características dos indivíduos que podem afetar a utilização dos cuidados de saúde podemos distinguir os fatores de predisposição e os fatores capacitantes. Nos fatores de predisposição insere-se o nível educacional e cultural, a ocupação, a etnia e as redes sociais e familiares. Por sua vez estes fatores influenciam as convicções em saúde (atitudes e valores perante a saúde e cuidados de saúde) as quais podem condicionar a subsequente perceção de necessidade e utilização de serviços de saúde. De acordo com Pereira e Furtado (2012), tais fatores determinam o empowerment do indivíduo para utilizar os cuidados de saúde disponíveis6.
Quanto ao grupo de fatores de capacitação destacam-se os meios necessários para o indivíduo aceder aos serviços de saúde como sejam o rendimento ou capacidade de pagar e a área de residência. As características dos indivíduos a par com as características do sistema de prestação de cuidados de saúde vão condicionar a utilização dos mesmos.
As iniquidades em saúde têm origem nos determinantes sociais da saúde, como por exemplo a educação ou o trabalho, mas também nos estilos de vida da população e, essencialmente, no acesso aos cuidados de saúde. Dessa forma, o estado de saúde das populações deve ser encarado em função dos serviços de saúde, mas também em função das condições em que as pessoas nascem, crescem, habitam e trabalham7. A diminuição das desigualdades em saúde obtém-se atuando nos fatores determinantes, entre os quais o acesso aos cuidados de saúde. Ou seja, a equidade no acesso aos cuidados de saúde é apenas um dos fatores que promove a equidade no estado de saúde.
Embora a temática da garantia de equidade na saúde e no acesso aos cuidados de saúde esteja presente nos principais documentos de política e planeamento de saúde em Portugal, não se assistiu, ainda, a uma estratégia coordenada que vise promover a sua efetivação.
Tais estratégias deverão incidir, preferencialmente, em áreas clínicas onde o peso de doença (burden disease) seja significativo (quer por critérios epidemiológicos, nomeadamente pela incidência e prevalência, quer pelos custos associados) e, também, onde haja um conjunto de evidência que aponte no sentido, ou que confirme, a existência de desigualdades, quer na forma como a doença se encontra «distribuída» (grupos de risco ou grupos vulneráveis) quer no acesso aos cuidados de saúde.
Tendo em consideração a «carga da doença» cardiovascular nas sociedades consideradas desenvolvidas e o seu consequente impacto a nível social e económico torna-se necessário investir, por uma lado na prevenção da doença e promoção da saúde (adaptando às diferentes características dos grupos-alvo, nomeadamente educacionais, sociais, económicas, geográficas, culturais, entre outras), por outro na garantia de equidade no acesso aos cuidados de saúde.
Não obstante o conceito de equidade estar contemplado na legislação do sistema de saúde português (nomeadamente na Constituição da República, artigo 64.°, Direito à saúde e na Lei de Bases da Saúde) tem sido dedicada pouca atenção à promoção, concretização e monitorização desse desiderato. Recentemente, a OMS avaliou o PNS 2004-2010, tendo identificado e evidenciado algumas das suas potencialidades e limitações. Segundo esse relatório, o PNS dedicou pouca atenção ao tema da equidade em saúde, nomeadamente ao nível das estratégias e programas para combater as desigualdades em saúde8. Num outro documento, destinado a avaliar o desempenho do sistema de saúde português, a OMS apontou para melhorias assinaláveis no sistema de saúde tendo, no entanto, destacado a persistência de diferenças significativas no estado de saúde dos portugueses de acordo com o género, região geográfica e nível socioeconómico (por nível educacional ou de rendimento)9. De acordo com os autores, o sistema de saúde português tem como desafio para a consolidação e melhoria do estado de saúde dos cidadãos a diminuição dos níveis de desigualdade entre grupos e a adequação de resposta às expectativas dos portugueses.
São resultados de estudos de investigação, como o que é publicado neste número da revista, que nos ajudam a compreender melhor e, acima de tudo, a definir estratégias no sentido de diminuir as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde. Tais estratégias visam contribuir para um sistema de saúde mais efetivo, eficiente e equitativo e, de forma «indireta», para uma sociedade mais justa, homogénea e solidária.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.