Os autores apresentam o caso de um doente adulto com regurgitação mitral severa no contexto de um defeito do septo auriculoventricular. A avaliação conjunta por ETE 2D e 3D foi fundamental para a caracterização anátomo‐funcional da válvula e orientação do procedimento cirúrgico. As particularidades anatómicas de uma «fenda» em contexto de defeito do septo auriculoventricular e de uma fenda numa válvula mitral são aqui discutidas.
In this report, we present the case of an adult male with severe mitral regurgitation due to an atrioventricular septal defect. Anatomical assessment by two‐ and three‐dimensional transesophageal echocardiography was essential for detailed morphological characterization and surgical planning. The different features of a ‘cleft’ in an atrioventricular septal defect compared to an anterior leaflet cleft in an otherwise normal mitral valve are here discussed.
Os defeitos do septo auriculoventricular (DSAV) abrangem um conjunto de malformações cardíacas congénitas tendo em comum uma junção auriculoventricular (AV) única. Esta particularidade resulta em alterações morfológicas significativas, caracterizando‐se o DSAV parcial por uma junção AV comum, mas com duas válvulas AV separadas devido à fusão dos folhetos superior e inferior (bridging leaflets) que conferem à válvula AV esquerda uma morfologia trifoliada. Esta situação é bem distinta das fendas que ocorrem em válvulas mitrais fora do contexto de malformação dos coxins endocárdicos1.
Caso clínicoUm homem de 52 anos é proposto para cirurgia valvular por regurgitação mitral severa secundária a fenda mitral e regurgitação aórtica moderada em válvula aórtica bicúspide. O ecocardiograma transesofágico 2D (ETE‐2D) mostrou uma junção AV comum, com uma válvula AV esquerda composta por três folhetos: um mural, um ântero‐superior e um póstero‐inferior com uma «fenda» orientada ao septo interventricular, na sua zona de aposição (Figura 1A‐B). Os músculos papilares estavam deslocados lateralmente, posicionando‐se junto das comissuras do folheto mural com as bridging leaflets. O exame 3D (ETE‐3D) permitiu detalhar as características anatómicas (Figura 1C‐D). De notar que não se evidenciou comunicação interauricolar ou interventricular, características dos DSAV.
A,B – 2D janela transgástrica. Em diástole (A), observa‐se o aspeto trifoliado do componente esquerdo da válvula AV e a «fenda» (*). Em sístole (B), evidencia‐se a regurgitação mitral com ponto de partida na «fenda».
Fig. 1C,D – 3D zoom em tempo real cropped images. Em diástole, por vista auricular (C) e ventricular (D), a morfologia dos três folhetos da válvula AV esquerda aparece bem detalhada e a orientação septal (ventrículo direito) da «fenda» bem definida. A presença de cordas anormais ligando os bordos da «fenda» ao septo interventricular é bem observada por vista ventricular (seta).
Aprecie‐se o formato elíptico do anel e a reduzida dimensão do folheto mural, outras particularidades de uma válvula esquerda AV. 1 – folheto ântero‐superior, 2 – folheto póstero‐inferior, 3 – folheto mural. AOV – válvula aórtica; LVOT – trato de saída do ventrículo esquerdo, TV – válvula tricúspide.
As duas válvulas foram reconstruídas. A mitral foi reparada por sutura direta da «fenda» com pontos separados de polipropileno 6‐0, alargamento do folheto posterior com retalho de pericárdico autólogo e anuloplastia com anel semirrígido (Carpentier‐Edwards Physio 28, Edwards Lifesciences). A regurgitação aórtica foi corrigida através da plicatura do folheto não coronário e reduzindo o anel por anuloplastia da junção ventrículo‐aórtica. O ETE pós‐operatório mostrou regurgitações mínimas e gradiente AE/VE médio de 5mmHg.
DiscussãoContrariamente aos corações normais, que apresentam junções AV esquerda e direita separadas, os DSAV têm como principal marca distintiva a junção AV comum, deixando de existir septo AV, estando os anéis AV no mesmo plano anatómico2. Nesta patologia não existem válvulas AV morfologicamente normais. Enquanto no DSAV total existe uma válvula AV comum única, formada por cinco folhetos, no defeito parcial identifica‐se classicamente uma estrutura com três componentes, fruto da fusão dos folhetos superior e inferior: o folheto ântero‐superior, póstero‐inferior e mural, com três comissuras: ântero‐lateral, póstero‐lateral e septal, designadas de acordo com as respetivas posições. Desta fusão surge uma «fenda» que pode provocar graus variáveis de regurgitação valvular, sendo que a estenose valvular é rara. Observa‐se, ainda, frequentemente, cordas anormais ligando os bordos da «fenda» ao septo interventricular.
Esta é uma situação bem diferente das fendas observadas em válvulas mitrais estruturalmente normais. Sendo mais comuns no folheto anterior, a solução de continuidade não só não divide o folheto em duas partes distintas, como apresenta uma orientação diferente, direcionada à câmara de saída do ventrículo esquerdo (Figura 2).
A,B – 2D janela transgástrica. Em diástole (A) e em sístole (B) observamos uma fenda do folheto anterior (*) numa válvula mitral.
Fig. 2C,D – 3D zoom em tempo real cropped images. Em diástole, fenda do folheto anterior por vista auricular (C) e ventricular (D). Repare‐se na orientação típica da fenda para o trato de saída do ventrículo esquerdo.
Esta destrinça é importante, pois pode implicar abordagens cirúrgicas diferentes. Nas «fendas» dos DSAV a simples aproximação dos bordos por sutura direta, ou através de um patch, não transforma a válvula AV esquerda numa válvula anatomicamente normal3. A dilatação do anel e alguma restrição central causam normalmente regurgitação residual. A resolução da insuficiência e o evitar da estenose valvular requerem habitualmente o recurso a outras técnicas reparadoras, diferentes da comum comissuroplastia ou encerramento direto da «fenda» e colocação de anel protésico. O aumento da mobilidade dos folhetos anteriores através da exérese das cordas da comissura acessória, associado ao encerramento total com ou sem a utilização de retalho de pericárdio autólogo e o aumento do folheto posterior através do alargamento com retalho de pericárdio autólogo, contribuem normalmente para um bom resultado funcional final.
No sentido de evitar lesões do tecido de condução, há também a ter presente que, nos DSAV, o nódulo AV se posiciona numa posição mais póstero‐inferior relativamente ao ápex do triângulo de Koch4.
Embora a maioria das particularidades tivesse sido reconhecida pelo ETE‐2D, o ETE‐3D foi fundamental para a melhor caracterização da válvula AV. Informação que teve papel relevante no delinear da estratégia cirúrgica de reconstrução valvular, evidenciando a importância do estudo tridimensional no apoio à cirurgia reparadora5.
Os autores apresentam o caso clínico de um doente adulto com regurgitação mitral severa no contexto de uma válvula AV complexa. A avaliação anatómica por ecocardiografia 2D e 3D permitiu um estudo detalhada da morfologia da válvula, informação relevante no delinear da estratégia cirúrgica. As diferentes características de um cleft numa válvula mitral AV e de uma fenda numa válvula não AV são aqui abordadas e discutidas.
Em nosso entendimento, este é um caso invulgar de regurgitação mitral numa válvula mitral de um adulto, mostrando‐se o estudo ecocardiográfico, em particular a avaliação por ETE‐3D, fundamental na caracterização anatómica da válvula e na orientação da cirurgia reparadora.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.