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Vol. 39. Núm. 7.
Páginas 401-406 (Julho 2020)
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Páginas 401-406 (Julho 2020)
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Cuidados intensivos cardíacos em Portugal: projetar a mudança
Cardiac intensive care in Portugal: The time for change
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Sílvia Monteiroa,
Autor para correspondência
silvia.reis.monteiro@gmail.com

Autor para correspondência.
, Ana Teresa Timóteob, Daniel Caeiroc, Marisa Silvac, António Tralhãod, Cláudio Guerreiroc, Doroteia Silvae, Carlos Aguiarf, José Santosg, Pedro Monteiroh, Victor Gili, João Moraisj
a Serviço de Cardiologia, CHUC, Coimbra, Portugal
b Serviço de Cardiologia, Hospital de Santa Marta, Lisboa, Portugal
c Serviço de Cardiologia, Hospital de Gaia, Gaia, Portugal
d Serviço de Cardiologia, Hospital de Santa Cruz, Lisboa, Portugal
e Serviço de Medicina Intensiva, Hospital Santa Maria, Lisboa, Portugal
f Serviço de Cardiologia, Hospital de Santa Cruz, Lisboa, Portugal
g Serviço de Cardiologia, Hospital da Luz, Setúbal, Portugal
h Serviço de Cardiologia, CHUC, Coimbra, Portugal
i Unidade Cardiovascular, Hospital Lusíadas, Lisboa, Portugal
j Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar Leiria, Leiria, Portugal
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Tabela 1. Características das UCIC nível 1, 2 e 3 (adaptado de Bonnefoy‐Cudraz et al8)
Resumo

Nos últimos anos, temos assistido a um aumento do número de doentes com necessidade de cuidados cardíacos agudos, com patologia cardiovascular progressivamente mais complexa, muitas vezes complicada por comorbilidades não cardiovasculares agudas ou crónicas, com impacto na abordagem e prognóstico destes doentes. As unidades coronárias têm evoluído para unidades de cuidados intensivos cardíacos, caracterizadas por cuidados de saúde altamente especializados ao doente cardíaco crítico. Tendo em conta que os recursos humanos e técnicos nesta área são limitados, considerámos ser urgente uma reflexão profunda sobre o modelo de organização dos cuidados ao doente cardíaco agudo, incluindo a definição do nível de cuidados, a constituição e formação da equipa e a criação de redes de referenciação.

Paralelamente, é fundamental um investimento claro dos serviços nesta área central da cardiologia, de forma a alavancar o desenvolvimento contínuo e sustentado de outras áreas cardiológicas essenciais, nomeadamente a eletrofisiologia e a cardiologia de intervenção, assegurando cuidados de excelência e de elevada diferenciação a todos os doentes cardíacos críticos.

Palavras‐chave:
Unidades de cuidados intensivos cardíacos
Modelos de organização
Abreviaturas:
UCIC
ESC
ACCA
Abstract

In recent years, the number of patients requiring acute cardiac care has increased, with progressively more complex cardiovascular conditions, often complicated by acute or chronic non‐cardiovascular comorbidities, which affects the management and prognosis of these patients. Coronary care units have evolved into cardiac intensive care units, which provide highly specialized health care for the critical heart patient. In view of the limited human and technical resources in this area, we consider that there is an urgent need for an in‐depth analysis of the organizational model for acute cardiac care, including the definition of the level of care, the composition and training of the team, and the creation of referral networks. It is also crucial to establish protocols and to adopt safe clinical practices to improve levels of quality and safety in the treatment of patients. Considering that acute cardiac care involves conditions with very different severity and prognosis, it is essential to define the level of care to be provided for each type of acute cardiovascular condition in terms of the team, available techniques and infrastructure. This will lead to improvements in the quality of care and patient prognosis, and will also enable more efficient allocation of resources.

Keywords:
Cardiac intensive care units
Organizational models
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Enquadramento

Nos últimos anos temos assistido a alterações importantes na população cardiológica, em parte decorrentes do seu envelhecimento, mas sobretudo consequência da melhoria dos cuidados de saúde e do seu impacto na história natural de diversas doenças cardiovasculares.

Estas alterações têm conduzido a um aumento do número de doentes com necessidade de cuidados cardíacos agudos, com patologia cardiovascular progressivamente mais complexa, muitas vezes complicada por comorbilidades não cardiovasculares agudas ou crónicas, com impacto na abordagem e prognóstico destes doentes.

Desta forma, as unidades coronárias do passado, que tiveram um papel fundamental no tratamento e melhoria do prognóstico do doente com enfarte agudo do miocárdio, têm evoluído para unidades de cuidados intensivos cardíacos (UCIC), com capacidade de prestar cuidados cardíacos agudos a um largo espetro de doentes e de patologias cardíacas1.

A evolução histórica da tipologia dos doentes admitidos na UCIC tem sido apresentada por vários autores, constatando‐se ser uma população cada vez mais idosa, com doença cardiovascular mais grave e com a presença concomitante de outras patologias, nomeadamente insuficiência renal e respiratória agudas e sépsis, associadas a tempos de hospitalização mais prolongados e taxas de mortalidade mais elevadas2–6.

Atualmente, os principais diagnósticos de admissão na UCIC são: síndrome coronária aguda com ou sem complicações, insuficiência cardíaca aguda, choque cardiogénico, doença valvular grave (endocardite aguda), disritmias graves, disfunção e infeção de dispositivos cardíacos, complicações da cardiologia de intervenção (coronária e estrutural), tromboembolismo pulmonar agudo de risco intermédio ou elevado, estados pós‐paragem cardiorrespiratória, hipertensão pulmonar grave e cardiopatias congénitas do adulto4,5.

A abordagem contemporânea do doente cardíaco crítico exige cuidados de saúde altamente especializados, prestados em UCIC dedicadas, com equipas com formação e experiência em duas áreas distintas da medicina: cardiologia e medicina intensiva.

Tendo em conta que os recursos humanos e técnicos nesta área são limitados, é urgente uma reflexão profunda sobre o modelo de organização dos cuidados ao doente cardíaco agudo, nomeadamente a definição do nível de cuidados e da constituição e formação da equipa.

Foi isso que tentámos fazer na última reunião do Grupo de Estudo de Cuidados Intensivos Cardíacos (GECIC), num debate intenso, abrangente e muito produtivo, do qual resultou este documento de consenso, subscrito e endossado pelo GECIC.

Modelo de organização dos cuidados ao doente cardíaco agudo

Uma UCIC contemporânea deve constituir o core dos cuidados em cardiologia, admitindo os doentes mais complexos dos serviços de urgência, via verde coronária, salas de hemodinâmica e eletrofisiologia, blocos operatórios e enfermarias.

Os cuidados cardíacos agudos incluem patologias com gravidade e prognóstico muito distintos, incluindo desde eventos agudos facilmente tratados e estabilizados com recurso a um baixo nível de cuidados até doentes críticos com patologia complexa, que necessitam de cuidados altamente especializados7. Neste contexto, é fundamental definir para cada tipo de condição cardiovascular aguda qual o nível de cuidados a prestar em termos de equipa, técnicas disponíveis e ambiente, de forma a melhorar a qualidade assistencial e o prognóstico do doente, bem como permitir uma alocação eficiente dos recursos.

Definição do nível da UCIC

Num esforço de fazer corresponder o nível de diferenciação dos cuidados prestados às situações cardiovasculares agudas que dão entrada nas unidades, a Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) desenvolveu um sistema de classificação para as UCIC, que inclui a definição da patologia cardiovascular dos doentes admitidos e os recursos técnicos e humanos que devem estar disponíveis em cada nível8.

Desta forma, as UCIC são classificadas em níveis 1, 2 e 3 – da menor para a maior diferenciação técnica e gravidade clínica dos doentes, tendo em conta as características de cada centro e a disponibilidade de recursos8,9.

De acordo com esta classificação, uma UCIC de nível 3 é uma unidade hospitalar dedicada e especializada no tratamento de doenças cardiovasculares agudas, com capacidade de abordar todos os doentes do foro cardíaco com necessidade de monitoração e suporte das funções vitais em falência, de forma a implantar medidas de diagnóstico e tratamento precoces, com equipas especializadas em cuidados intensivos cardíacos, com um foco importante na segurança dos cuidados prestados. Estas UCIC de nível 3 devem ter a possibilidade de prestar os cuidados globais apropriados ao doente cardíaco crítico, incluindo o choque cardiogénico com necessidade de suporte cardiovascular avançado, ventilação mecânica invasiva e não invasiva, terapêutica de substituição renal, dispositivos de assistência circulatória mecânica (percutâneos e cirúrgicos) e suporte de vida extracorpóreo8. Estas unidades de nível 3 devem estar associadas a unidades de nível inferior, de forma a permitir o step down progressivo de cuidados ao doente.

A Tabela 1 apresenta de forma sumária algumas das características de cada nível de UCIC, de acordo com o documento da ESC8.

Tabela 1.

Características das UCIC nível 1, 2 e 3 (adaptado de Bonnefoy‐Cudraz et al8)

  Nível 1  Nível 2  Nível 3 
Doentes e patologia cardiovascular  Doentes com patologias cardiovasculares agudas sem condições para admissão numa enfermaria de cardiologia geral, devido ao risco de descompensação, necessidade de recursos adicionais ou de maior nível de observação.Monitorização de doentes pós intervenção estrutural ou endovascular.  Doentes com patologias cardiovasculares agudas cujo risco requer observação mais avançada que a monitorização de nível 1.Doentes graves ou de alto risco com insuficiência cardíaca congestiva e/ou baixo débito cardíaco a complicar uma patologia cardíaca aguda ou crónica.  Doentes com patologias cardiovasculares agudas que requerem um nível de cuidados ou de intervenção equivalente a cuidados intensivos.Condições cardíacas agudas que necessitam de ventilação mecânica invasiva, terapêutica de substituição renal, suporte de vida extracorpóreo, cirurgia cardíaca emergente ou assistência cardiovascular cirúrgica 
Tecnologia e terapêutica disponível  Todos os equipamentos não invasivos de monitorização de parâmetros clínicosEcocardiograma e ecografia torácica (24/7)Cardioversão elétricaVentilação não invasivaPacing transcutâneo temporárioDreno torácico  Todos os equipamentos invasivos e não invasivos de monitorização de parâmetros clínicosOs mesmos que o Nível 1 mais:Colocação de acesso venoso central guiada por ecografiaPacing transvenoso temporárioEcocardiograma transesofágicoCateter da artéria pulmonar/ cateterização cardíaca direitaSuporte circulatório percutâneoSistema de raio‐X por fluoroscopia  Todos os equipamentos avançados, invasivos e não invasivos, de monitorização de parâmetros clínicosOs mesmos que o Nível 2 mais:Suporte de vida extracorpóreoAssistência circulatória mecânicaTerapêutica de substituição renalVentilação mecânica 
Nível de competência  Direção: cardiologistaEquipa: cardiologistasIntensivista disponível para consulta 24/7  Direção: cardiologista intensivistaEquipa: cardiologistas intensivistas Intensivista disponível para consulta 24/7  Direção: cardiologista intensivista ou partilhada com intensivista geralEquipa: cardiologistas intensivistas com formação adicional em cuidados intensivos; pode incluir intensivistas com formação adicional em cardiologia 
Equipa de enfermagem  Rácio de 1 enfermeiro por cada 4 doentes  Rácio de 1 enfermeiro para cada 2 ou 3 doentes  Rácio de 1 enfermeiro para cada 1 ou 2 doentes 

Em Portugal, é urgente promover a definição das UCIC em níveis 1, 2 e 3, de forma a aprimorar a alocação dos doentes de acordo com a severidade da doença cardiovascular e o nível de intensidade de cuidados exigido. Neste sentido, é fundamental um levantamento das características dos centros nacionais para melhor conhecer a realidade e definir onde e como prestar os melhores cuidados a cada doente.

Composição e formação da equipa

A complexidade da doença cardíaca avançada, o aumento de complicações sistémicas graves, a rápida emergência de novas tecnologias, o papel crucial da experiência e do conhecimento na redução de complicações iatrogénicas, bem como a complexidade geral do ambiente vivido atualmente nas UCIC, tornam essencial a presença de uma equipa médica dedicada, constituída por cardiologistas com experiência e formação na área dos cuidados intensivos cardíacos, que assegure assistência em permanência (24h/7 dias). Desta forma, particularmente nas UCIC mais diferenciadas, não é aceitável a prestação de cuidados por médicos que asseguram episodicamente algumas horas de serviço em regime de escala, sem treino adequado à complexidade da patologia a tratar.

Diversos trabalhos têm demonstrado a vantagem da presença permanente de um intensivista em unidades de cuidados intensivos, com impacto na redução da mortalidade, tempo de hospitalização e número de eventos, verificando‐se uma menor necessidade de realização de procedimentos e melhoria dos outcomes clínicos dos doentes10–12.

Os cuidados multidisciplinares integrados, com atividades coordenadas entre médicos, enfermeiros (que assumem um papel central nos cuidados intensivos), equipa de reabilitação respiratória e cardíaca, farmacêuticos, nutricionistas, dietistas, psicólogos e assistentes sociais, são essenciais para abordar o doente de uma forma abrangente, eficaz e segura13. Sempre que necessário, deve ser solicitado o apoio de outras subespecialidades da cardiologia (para discussão e tomada de decisões no âmbito da heart team), bem como de outras áreas médicas: cirurgia cardíaca e vascular, medicina intensiva, nefrologia e neurologia, entre outras.

Por outro lado, os avanços técnicos da cardiologia de intervenção, nomeadamente a angioplastia de alto risco e a intervenção valvular percutânea no laboratório de hemodinâmica, bem como a ablação da fibrilhação auricular e de taquiarritmias complexas e a extração de elétrodos de pacemaker no laboratório de pacing e eletrofisiologia, beneficiam do apoio da equipa médica da UCIC. Neste contexto, o intensivista cardíaco deve ser informado e integrado nas decisões e planificação destes procedimentos e, sempre que necessário para maior segurança dos doentes, deve estar presente no laboratório para prevenir e tratar precocemente eventuais complicações.

Neste sentido, é fundamental definir, capacitar e organizar as UCIC de forma a que sejam autossuficientes no diagnóstico e tratamento de todos os doentes com patologia cardiovascular.

Subsequentemente, a formação e aquisição de competências em intervenção cardíaca especializada e em medicina de cuidados intensivos é essencial, como comprovado num inquérito recentemente publicado, realizado junto de cardiologistas com dupla certificação nos Estados Unidos, em que se verificou a valorização de uma formação específica em cuidados intensivos cardíacos, para a além da especialidade em cardiologia, atendendo à complexidade da patologia apresentada pelos doentes cardíacos, às técnicas a dominar e à gestão específica da UCIC14.

A Acute Cardiac Care Association (ACCA) da ESC definiu um modelo de formação padronizado em cuidados intensivos cardíacos, o ACCA Core Curriculum15. Atendendo às especificidades e capacidade de cada instituição, este documento serve como um modelo standard (e não como um requisito mínimo) de formação em cuidados cardiovasculares agudos em toda a Europa15. O documento descreve as competências do subespecialista em cuidados cardíacos agudos, incluindo a necessidade de aquisição simultânea de conhecimento e experiência na área da cardiologia geral e dos cuidados intensivos gerais, bem como nas demais subespecialidades cardíacas e não cardíacas, de forma a garantir a capacidade para assegurar o encaminhamento adequado dos doentes para técnicas e terapêuticas mais avançadas. À semelhança dos níveis definidos para as UCIC, o ACCA Core Curriculum define três níveis de competência, com um aumento progressivo da exigência ao nível de conhecimento, competência na realização de técnicas e autonomia do cardiologista15.

Os cuidados cardíacos agudos e intensivos são uma subespecialidade emergente dentro da cardiologia que, como qualquer outra subespecialidade, requer treino, avaliação formal e aprendizagem contínua para a aquisição de competências específicas. Contudo, face às necessidades existentes, está ainda longe de ser colmatado o número de especialistas com a formalização dos conhecimentos e competências necessários para trabalhar no ambiente específico da UCIC7,16,17.

Os profissionais da UCIC, particularmente os médicos e enfermeiros, deverão ter diferenciação própria em cuidados intensivos cardíacos, realizada preferencialmente em centros de referência internacional e atualizada com regularidade através de certificação nacional ou internacional, de forma a garantir a excelência dos cuidados prestados.

Atualmente, a especialização em medicina intensiva em Portugal é possível através de duas vias, o internato médico (60 meses) ou a titulação em medicina intensiva (via «clássica»: especialidade base mais 27‐38 meses de medicina intensiva). Neste contexto, surgem algumas questões sobre o melhor modelo de subespecialização em cuidados intensivos cardíacos: realizar a titulação em cuidados intensivos polivalentes depois da conclusão da especialidade de cardiologia ou criar a subespecialidade de cuidados intensivos cardíacos com base no modelo de formação proposto pela ACCA.

Somos de opinião de que esta última opção é a mais acertada, pelo que é urgente a elaboração e aprovação de um plano formal de formação em Portugal que nos permita avançar para a formalização da subespecialidade de cuidados intensivos cardíacos. Estamos cientes das dificuldades e desafios que tal opção representa, mas consideramos que deve ser encarada como uma prioridade pela cardiologia nacional.

Implantação de protocolos, avaliação de resultados e melhoria contínua

A segurança constitui um imperativo no ambiente de cuidados intensivos cardíacos. Os doentes críticos com doença cardíaca complexa apresentam uma elevada suscetibilidade para desenvolver complicações sistémicas major, por vezes relacionadas com os próprios cuidados intensivos: insuficiência renal e respiratória, trombose e hemorragia, infeção relacionada com o cateter, pneumonia adquirida no ventilador, sépsis e disfunção multiorgânica9.

A definição de protocolos e adoção de práticas clínicas seguras são cruciais para melhorar os níveis de qualidade e segurança no tratamento do doente cardíaco crítico9,13,18, devendo ser considerados para as seguintes situações: colocação de acessos centrais guiada por ecografia, monitoração hemodinâmica não invasiva com recurso a parâmetros ecocardiográficos, prevenção da infeção nosocomial, prática de ventilação mecânica protetora, prevenção da nefropatia de contraste, prevenção do tromboembolismo venoso, sedação e analgesia, entre outros.

Com a implantação de protocolos e guidelines, a avaliação dos indicadores de qualidade das UCIC é fundamental para identificar aspetos a desenvolver e incentivar os profissionais de saúde a melhorar a sua performance. Neste sentido, devem ser instituídos programas de auditoria que incluam a avaliação da adesão aos protocolos e guidelines estabelecidos, bem como a avaliação dos indicadores de qualidade definidos, tais como taxas de readmissão, tempos de internamento, mortalidade, morbilidade e infeção nosocomial9,13. A avaliação da qualidade deverá obedecer a critérios nacionais, a definir pelas sociedades científicas, processo este que será naturalmente complexo e moroso na sua implantação. A criação de sistemas locais poderá ser uma forma de agilizar este processo.

Adicionalmente, a criação de registos e bases de dados locais, bem como a participação em registos nacionais e internacionais, constitui uma fonte de informação inesgotável para o controlo de qualidade dos cuidados e para o desenvolvimento de investigação clínica13. A UCIC representa uma área privilegiada para todo o tipo investigação, incluindo os estudos multicêntricos, tendo em conta o elevado nível de instrumentalização, a elevada incidência de eventos cardiovasculares e a relação de proximidade e confiança estabelecida entre o médico e o doente.

Redes de referenciação

Fruto da complexidade da patologia cardíaca e da maior suscetibilidade para desenvolver disfunção multiorgânica, a abordagem do doente cardíaco crítico tem necessidade de decisões rápidas com margens de segurança estreitas, estratificação de risco dinâmica, prevenção e reconhecimento precoce de complicações. Por outro lado, na gestão destes doentes é importante o domínio da evolução tecnológica, particularmente nas técnicas de imagem cardíaca, cardiologia de intervenção e dispositivos de assistência ventricular, bem como em modos complexos de ventilação mecânica e técnicas de substituição renal. Pelas razões expostas, torna‐se fundamental que a abordagem do doente cardíaco crítico seja feita por médicos com formação e experiência na intervenção cardíaca especializada e competência em medicina de cuidados intensivos. A multidisciplinaridade e o recurso a profissionais de áreas afins é essencial dando corpo e espírito ao Heart Team.

Tendo em conta os recursos humanos e logísticos limitados dos sistemas de saúde e os melhores resultados obtidos nas UCIC de alto volume assistencial, é importante a criação de uma rede de referenciação regional, incluindo uma variedade de modelos organizativos com diferentes níveis de recursos profissionais e tecnológicos8. Deste modo seria possível dar a cada doente o nível de cuidados mais adequado à sua situação clínica. Um bom exemplo da importância desta hierarquização ordenada de cuidados são os doentes que requerem suporte circulatório avançado, designadamente com recurso a membrana de oxigenação extracorpórea.

Desta forma, preconiza‐se que os doentes mais complexos sejam transferidos das UCIC de nível 1 e 2, dos diversos serviços de cardiologia, ou mesmo diretamente do pré‐hospitalar, para as unidades de nível 3, em vez de serem tratados nas unidades de cuidados intensivos polivalentes, como acontece atualmente na generalidade dos casos.

Torna‐se assim crucial a criação de redes de referenciação formais, com integração de hospitais e UCIC com diferentes níveis de diferenciação e protocolos de referenciação bem definidos. Estes protocolos devem integrar critérios clínicos e modalidade de transferência, protocolos de tratamento antes e durante o transporte, informação atualizada da disponibilidade de camas e meios de comunicação entre as partes envolvidas8,19.

Conclusão

O momento atual coloca desafios importantes nesta área estimulante da cardiologia, que necessita de uma reflexão profunda e urgente, no sentido de definir qual o caminho a prosseguir.

Cabe ao cardiologista da UCIC contemporânea estabelecer a interligação com as redes do pré‐hospitalar, aprofundar a colaboração entre as diferentes unidades, interagir com outras áreas da cardiologia e outras especialidades das áreas médicas e cirúrgicas, sempre focado na sua formação profissional contínua, na formação de internos e novos subespecialistas e no controlo de qualidade dos cuidados prestados ao doente.

Considerando que os cuidados cardíacos agudos incluem patologias com gravidade e prognóstico muito distintos, é essencial definir para cada tipo de condição cardiovascular aguda o nível de cuidados a prestar em termos de equipa, técnicas disponíveis e infraestruturas, de forma a melhorar a qualidade dos cuidados e o prognóstico do doente, mas também a permitir uma alocação eficiente dos recursos.

A definição clara dos modelos de organização das UCIC, incluindo a colaboração estreita entre a cardiologia e a medicina intensiva, bem como a criação de uma rede nacional de referenciação, com integração de hospitais e unidades com diferentes níveis de diferenciação, a colaboração entre os diferentes centros e a formação e aquisição de competências são elementos essenciais para a melhoria dos cuidados ao doente cardíaco agudo.

Paralelamente, é fundamental um investimento claro dos serviços nesta área central da cardiologia, de forma a alavancar o desenvolvimento contínuo e sustentado de outras áreas cardiológicas essenciais, nomeadamente a eletrofisiologia e a cardiologia de intervenção, assegurando cuidados de excelência e de elevada diferenciação a todos os doentes cardíacos críticos.

Urge projetar a mudança!

Financiamento

Não aplicável

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Agradecimentos

A todos os peritos que colaboraram no debate e elaboração deste artigo.

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