Na última década, assistimos a um crescimento e a uma grande melhoria das técnicas de imagem em diversas áreas, e na área cardiovascular em particular. Esta evolução veio possibilitar e facilitar o diagnóstico, mas levou a um dramático aumento da utilização dos meios complementares de diagnóstico (MCD), provocando um crescimento considerável com os custos da saúde. Nos Estados Unidos da América (EUA), os encargos da Medicare com os meios diagnósticos mais do que duplicaram entre 2000‐2006. Especificamente, na área de cardiologia, os EUA gastaram 1,6 bilhões de dólares em 2000 e 5,1 bilhões em 20061,2. Estes valores levaram a uma preocupação crescente do ponto de vista económico, pois este crescimento exponencial tornar‐se‐ia, a breve prazo, social e economicamente incomportável. Estudos de revisão na área da economia da saúde mostraram que, entre 1996‐2010, a utilização da TAC aumentou 3x, da RMN 4x e os estudos com ultrassons 70%, enquanto os estudos da medicina nuclear diminuíram em cerca de um terço a partir de 2008, possivelmente devido ao aumento e aparecimento de outras técnicas (por ex: angiografia por tomografia computorizada coronária [angioTAC])3. Foi o disparar dos custos entre 2000‐2006 e o impacto e peso que isso teve na economia que levou a que múltiplos estudos fossem efetuados, na busca das causas e na tentativa de encontrar uma solução2–4.
Os estudos tentaram identificar causas para este boom, tendo sido apontadas várias que vão desde a maior capacidade diagnóstica que os novos MCD proporcionam e o «fascínio de algo novo» que os próprios acarretam, à exigência e objetividade por parte do doente, à fragmentação dos cuidados de saúde que leva a duplicação de exames, à prática de medicina defensiva, à perda de confiança dos médicos na clínica médica levando a uma «necessidade» de confirmação de diagnóstico por múltiplos MCD, aos incentivos remuneratórios para o médico e a fatores demográficos (envelhecimento da população) entre os mais comuns5–8.
Estes estudos focam a realidade dos EUA e, possivelmente, não terão aplicação direta sobre outros países, que têm sistemas de saúde diferentes. No entanto, alguns aspetos merecem reflexão, designadamente: a necessidade exaustiva da confirmação diagnóstica, ou seja, a crescente prática de uma «medicina defensiva» baseada numa «imagem intensiva», resultante cada vez mais da pressão do doente, da informação a que os próprios doentes têm acesso (Dr. Google), da mediatização que os temas relacionados com a saúde têm tido nos últimos anos e do crescente número de processos judiciais contra o setor médico (sobretudo, nos EUA). Num estudo de 2008, promovido pela Massachusetts Medical Society, foi demonstrado que 22% dos exames de RX, 28% das TAC, 27% das RMN e 24% das ecografias foram efetuadas por razões «defensivas»8.
Todas estas causas explicam porque num estudo se chegou à conclusão que, entre 20‐50% dos exames complementares de diagnóstico avançados efetuados, tiveram pouco ou nenhum benefício para o doente9.
Para tentar delimitar e ter algum controlo sobre a situação, não só do ponto de vista económico, mas também médico, por forma a orientar e defender a própria comunidade médica em relação ao timing da realização dos MCD, surgiu a necessidade de definição de critérios de utilização apropriada10,11. Tenta‐se, assim, evitar o subdiagnóstico, mas também o pluridiagnóstico, que leva a riscos desnecessários para o doente, quer diretos (técnicas invasivas) quer a longo prazo (radiação)12–14.
A definição do que se considera um exame apropriado foi efetuada por Fitch para a Research and Development Corporation (RAND) como: «an appropriate procedure is one in which the expected health benefit (e.g., increased life expectancy, relief of pain, reduction in anxiety, and improved functional capacity) exceeds the expected negative consequences (e.g., mortality, morbidity, anxiety, pain, and time lost from work) by a sufficiently wide margin that the procedure is worth doing, exclusive of cost»15, ou numa adaptação mais simples «the right test for the right patient at the right time».
Em relação à ecocardiografia, esta definição de critérios foi feita pelo American College of Cardiology (ACC)/ASE, em 2007; critérios revistos posteriormente em 201116,17, numa tentativa de corrigir e de melhorar algumas limitações dos mesmos. É preciso não esquecer que estes critérios foram definidos com base na realidade dos EUA, tendo sido adaptados noutros países18,19.
A Associação Europeia de Imagem (EACVI) tem previsto definir os seus próprios critérios de utilização adequada da ecocardiografia20, adaptados à realidade europeia21, ponderando o custo/benefício da ecocardiografia, de modo a haver uma racionalização adequada e otimização dos meios disponíveis. É fundamental definir o que é inapropriado/apropriado, ficando ainda alguns casos num score intermédio que necessitam de maior evidência clínica para uma decisão.
Estes critérios visam alguns aspetos fundamentais:
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decisão do timing da realização de um ecocardiograma e da sua repetição para cada patologia;
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orientação do trabalho num laboratório de ecocardiografia pela definição do que é apropriado/inapropriado, permitindo definir prioridades de agendamento e uma melhor organização dos recursos;
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otimização e uniformização de resultados, de forma a evitar repetições desnecessárias;
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de âmbito económico; contenção de custos e racionalização dos meios.
Num estudo recente sobre o impacto que a revisão de critérios de 2011 teve sobre a adequação dos métodos cardiovasculares de imagem não invasivos, verificou-se que houve franca melhoria em relação aos estudos de ecocardiografia transtorácica e angioTAC, não se verificando o mesmo para a ecocardiografia de sobrecarga e transesofágica22.
O ACC criou, em 2012, uma campanha on‐line – Choosing Wisely –, que visa informar os doentes e os médicos (cardiologistas e não cardiologistas) sobre o que é apropriado em termos de exames cardiovasculares, nomeadamente em ecocardiografia23,24. Choosing Wisely is a campaign to engage physicians and patients in conversations about unnecessary tests, treatments and procedures. The campaign began in the United States in 2012, in Canada in 2014.
Em relação à ecocardiografia surgem várias advertências.
Quanto à realidade portuguesa, ela é desconhecida e, portanto, este trabalho foi pioneiro neste campo (Figura 1).
Os autores revêm os pedidos de ecocardiograma/execução de exames, durante um mês (escolha aleatória), num laboratório de um centro hospitalar terciário25.
A sua principal limitação é que reflete a realidade de um centro terciário com características específicas, não se podendo extrapolar para a realidade de outros serviços de cardiologia.
De salientar um aspeto importante e diferente da literatura: a percentagem de exames inapropriados é maior nos cardiologistas do que os exames pedidos por não cardiologistas. Isto só pode ser explicado pela proximidade e acessibilidade fácil dos cardiologistas em relação ao laboratório de ecocardiografia. Os exames pedidos por cardiologistas constituíram a maioria dos exames (cerca de 52%). Este aspeto é corroborado pelo facto de os expert em ecocardiografia terem a mesma percentagem de exames inapropriados que os outros cardiologistas (provavelmente pelo acesso fácil à técnica).
Num trabalho publicado por Ward em 2008, efetuado num único centro, o autor encontrou que em 1553 ecocardiogramas, 89% poderiam ser considerados apropriados e 11% inapropriados. Apenas foram encontrados dados de novo relevantes para o doente em cerca de 40% dos ecocardiogramas apropriados e em 17% dos inapropriados. Os especialistas não cardiologistas foram os que pediram mais exames inapropriados – 13 versus 9%, p<0,00126.
Noutro estudo, efetuado em Itália por Latanzi, foram revistas as indicações dos pedidos de ecocardiogramas em 2848 doentes e concluiu‐se que metade eram inapropriadas, sendo que a % de exames inapropriados nos médicos não cardiologistas chegava aos 23,1%, sendo apropriados apenas 37% e duvidosamente apropriados 39,9% versus 11,4, 58,8 e 29,8% nos cardiologistas27.
O facto dos exames inapropriados serem mais frequentes nos doentes de ambulatório do que nos doentes internados é um achado lógico, pois o internamento já constitui uma «pré‐seleção» do doente.
Quanto à tendência de os médicos em fase de internato de especialidade terem um ligeiro desvio para um maior número de exames inapropriados, pode ser atribuído a dois aspetos; prática de uma medicina mais defensiva e menor experiência, já referidos na literatura28,29.
Alguns estudos ecocardiográficos foram impossíveis de classificar, segundo os critérios definidos em 2011 pelo ACC/ASE. Neste grupo estão muitos estudos pré e pós‐procedimentos invasivos – TAVI, encerramento de apêndice auricular, etc. –, que são procedimentos cada vez mais frequentes e que irão ser certamente englobados em revisões futuras. Aguardemos pelos critérios da EACVI.
Ainda que estejamos pouco familiarizados com estes aspetos durante a nossa formação, é fundamental uma aprendizagem destes conceitos e empreender a sua divulgação30, pois só assim se poderão otimizar recursos, evitando exames complementares de diagnóstico desnecessários, onerosos, por vezes com riscos para o doente, consumindo tempo e meios, que não parecem levar a uma melhor prática médica.
Conflito de interessesA autora declara não haver conflito de interesses.