O potencial anti‐inflamatório da colchicina tem vindo a ser avaliado em várias patologias, incluindo a pericardite. A revisão sistemática da Cochrane incluiu quatro ensaios clínicos aleatorizados e controlados, com 564 doentes com pericardite aguda (dois estudos) e pericardite recorrente (dois estudos), seguidos por um período de 20‐24 meses. A colchicina esteve associada a uma redução significativa do risco de persistência de dor torácica (curto prazo) e do risco de recidiva de pericardite (longo prazo), sem aumento significativo dos eventos adversos totais. Apesar da evidência disponível, o uso de colchicina neste contexto mantém‐se off‐label.
The potential anti‐inflammatory effect of colchicine has been explored in many conditions, including pericarditis. The Cochrane Collaboration Systematic Review included four randomized controlled trials enrolling 564 patients with acute pericarditis (two studies) or recurrent pericarditis (two studies), followed for a period of 20‐24 months. Colchicine was associated with a significant reduction in short‐term persistence of chest pain and in long‐term risk of recurrence of pericarditis. No significant increase in overall adverse events was observed. Despite the available evidence, the use of colchicine in this context remains strictly off‐label.
Qual é o impacto da colchicina na prevenção de recorrência de episódios de pericardite1?
ObjetivosAvaliar o impacto da terapêutica com colchicina (em monoterapia ou como terapêutica adjuvante) na prevenção da recorrência de pericardite.
Tipo e descrição do estudoFoi realizada uma revisão sistemática de ensaios clínicos controlados e aleatorizados (RCT) que avaliaram doentes com pericardite aguda idiopática ou pericardite recorrente1. Foram considerados todos os regimes terapêuticos de colchicina, incluindo esquemas terapêuticos envolvendo concomitantemente anti‐inflamatórios não‐esteroides (AINE) ou corticosteroides. O controlo não foi restrito, considerando‐se estudos comparando a colchicina com placebo ou com fármacos (ácido acetilsalicílico, AINE, corticosteroides).
Foram pesquisadas as bases de dados de Ensaios Clínicos da Cochrane Library (CENTRAL, julho de 2014), MEDLINE (1946‐2014), EMBASE (1947‐2014), Web of Science (Conference Proceedings Citation Index ‐ Science, 1990‐2012) e registos internacionais de ensaios clínicos (International Clinical Trials Registry Platform Search Portal, ClinicalTrials.gov, and European Union Clinical Trials Register).
Os resultados dos estudos foram agregados em meta‐análises. As variáveis dicotómicas associadas ao tempo (time to event) foram expressas através de hazard ratio (HR) e respetivo intervalo de confiança 95% (IC95%), e as variáveis dicotómicas puras foram expressas através do G (RR) e respetivo IC95%. Em caso de significância estatística, os resultados foram expressos em Number Needed to Treat ([NNT] número de doentes necessários tratar para obter benefício em um doente).
ResultadosForam incluídos na revisão sistemática quatro RCT com um seguimento de 20‐24 meses: dois estudos com desenho aberto e cujo controlo era a terapêutica anti‐inflamatória recomendada para a pericardite; dois estudos em dupla ocultação e controlados com placebo. Foram incluídos um total de 564 doentes (64% com pericardite aguda e 36% com pericardite recorrente), a maioria destes com o diagnóstico de pericardite idiopática (>75%).
Todos os doentes receberam doses diárias cumulativas de 2,4‐3,2g ácido acetilsalicílico durante uma semana, com redução gradual durante três a quatro semanas até cessar a administração. Em dois RCT foi oferecida a possibilidade de tratamento com ibuprofeno 600mg (em administração tridiária), como alternativa ao ácido acetilsalicílico. Os corticosteroides foram considerados para os doentes com contraindicação ao ácido acetilsalicílico.
A colchicina foi administrada por via oral, e em três estudos foi realizada dose de carga (1g 12 em 12 horas) durante o primeiro dia, com dose de manutenção 0,5mg de colchicina de 12 em 12 horas (ou 0,5mg por dia se <70kg) durante três meses nos doentes com pericardite aguda e seis meses nos doentes com pericardite recorrente.
A colchicina reduziu significativamente o tempo para recidiva nos doentes com pericardite aguda (HR 0,40; IC95%: 0,27‐0,61) e nos doentes com pericardite recorrente (HR 0,37; IC95%: 0,24‐0,58) (Figura 1). Aos 18 meses, verificou‐se uma redução significativa de 59 e 62% do risco de recidiva nos doentes com pericardite aguda e recorrente, respetivamente (Figura 1). O NNT foi de cinco para a pericardite aguda e quatro na pericardite recorrente.
Impacto da colchicina nos doentes com pericardite aguda e recorrente. Adaptado de: Alabed et al.1.
A administração de colchicina reduziu em 29% o RR de persistência de dor torácica às 72 horas (Figura 1).
Em relação à tolerabilidade, a colchicina não aumentou significativamente o risco de eventos adversos totais comparativamente com o controlo. Contudo, verificou‐se um aumento significativo de 87% do risco de descontinuação por eventos adversos (RR 1,87; IC95%: 1,02‐3,41).
ConclusõesA colchicina, como terapêutica adjuvante (concomitantemente administrada com ácido acetilsalicílico ou AINE em dose elevada), é eficaz na redução de recidivas em doentes com pericardite aguda ou recorrente. Contudo, deve‐se considerar que o número de estudos que avaliaram esta temática é baixo e a qualidade da evidência é subótima.
ComentárioA colchicina é um dos fármacos mais antigos que se mantém disponível no armamentarium terapêutico contemporâneo. Trata‐se de um fármaco largamente utilizado no tratamento e prevenção das crises gotosas agudas e cuja utilidade em outras áreas começa agora a ser explorada.
A colchicina administrada por via oral tem uma biodisponibilidade estimada em 44%, atinge o pico de concentração plasmática em uma hora, e tem uma eliminação predominantemente hepática. Após entrar em circulação, a colchicina concentra‐se nos leucócitos onde desempenha a função pretendida para as indicações conhecidas2.
A colchicina interfere com a cinética dos microtúbulos do citoesqueleto inibindo a mitose e motilidade leucocitária2. Trata‐se de um fármaco com ação anti‐inflamatória aditiva aos fármacos anti‐inflamatórios clássicos (esteroides e não‐esteroides), pois a sua farmacodinâmica não depende da via do ácido araquidónico2. As últimas normas de orientação clínica da Sociedade Europeia de Cardiologia para as doenças do pericárdio datam de 2004 e consideram a colchicina como um fármaco a ponderar no tratamento da pericardite aguda (recomendação IIa, nível de evidência B) e pericardite recorrente (recomendação I, nível de evidência B)3.
A melhor evidência disponível mostra que a colchicina diminui significativamente a proporção de doentes sintomáticos após três dias de tratamento e o número de doentes com recidiva a longo termo, com reduções importantes, quer do RR quer do risco absoluto. Por outro lado, a colchicina está associada a um aumento significativo da descontinuação por eventos adversos. Contudo, a ausência de diferenças em relação aos eventos adversos totais (versus controlo) e dimensão do potencial benefício clínico sobrepõem‐se a esse dado.
Nestes estudos foram excluídos todos os doentes com pericardite bacteriana, tuberculosa ou neoplásica, doentes com hepatopatia ativa ou grave, disfunção renal grave (creatininemia>2,5mg/dL), miopatia, discrasia hemorrágica ou doença intestinal inflamatória. É importante realçar que a colchicina não foi avaliada no grupo de doentes com pericardite multirrecidivante resistente à terapêutica, nem nos doentes com miopericardite.
Implicações clínicasEm adição aos AINE, a colchicina diminuiu a probabilidade de persistência de sintomas a curto prazo e diminuiu o risco de recidiva a longo termo nos doentes com pericardite aguda (utilização durante três meses) ou recorrente (utilização durante seis meses).
Os esquemas posológicos de manutenção ponderados pelo peso (0,5mg 12/12h ≥70kg; 0,5mg por dia <70kg) parecem ter uma tolerabilidade aceitável. Contudo, pelo potencial risco cumulativo de iatrogenia gástrica (colchicina e AINE), está recomendado o uso de inibidores de bomba de protões em todos os doentes.
A colchicina não está formalmente aprovada para o tratamento e/ou prevenção de eventos na pericardite aguda ou recorrente pelas entidades reguladoras do medicamento, pelo que o seu uso nestas indicações tem que ser considerado off‐label, apesar da existência de evidência de moderada qualidade a suportar um balanço benefício/risco favorável.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.