A síndrome de Kounis corresponde a uma síndrome coronária aguda em contexto de reação de hipersensibilidade. O mecanismo fisiopatológico principal parece estar relacionado com vasospasmo coronário. Apresentamos o caso de um doente com história de alergia a quinolonas, ao qual foi administrado ciprofloxacina antes de um procedimento cirúrgico eletivo e que, durante a administração do fármaco, desenvolve quadro sugestivo de síndrome coronária aguda com supradesnivelamento de ST. O fármaco foi suspenso e a realização de cateterismo cardíaco emergente revelou ausência de doença coronária epicárdica. Duas horas após a interrupção do fármaco, o quadro clínico resolveu completamente.
Kounis syndrome is an acute coronary syndrome in the context of a hypersensitivity reaction. The main pathophysiological mechanism appears to be coronary vasospasm.
We report the case of a patient with a history of allergy to quinolones, who was given ciprofloxacin before an elective surgical procedure and during drug administration developed symptoms and electrocardiographic changes suggestive of ST‐segment elevation acute coronary syndrome. The drug was suspended and coronary angiography excluded epicardial coronary disease. Two hours after withdrawal of the drug the symptoms and ST elevation had resolved completely.
No contexto de síndrome coronária aguda, a angiografia coronária revela ausência de doença coronária significativa em cerca de 5‐20% dos casos1. O caso que apresentamos diz respeito a um doente admitido no nosso serviço por síndrome coronária aguda com supradesnivelamento do segmento ST, sem doença coronária epicárdica na coronariografia, a qual terá ocorrido no contexto provável de reação de hipersensibilidade. O enfarte ou angina secundários a uma reação alérgica é conhecido como síndrome de Kounis2.
Caso clínicoDoente de 85 anos, sexo masculino, caucasiano, com antecedentes pessoais de hipertensão arterial, tabagismo prévio, doença renal crónica (estádio 4), neoplasia maligna vesical em seguimento e alergia a quinolonas. Medicado habitualmente com hidroxizina 25mg qd e alprazolam 0,25mg qd.
Foi admitido eletivamente em unidade hospitalar para cirurgia de circuncisão e meatoplastia. Durante a administração de ciprofloxacina, no bloco operatório, desenvolveu quadro de desconforto pré‐cordial, tipo aperto, associado a dispneia, hipersudorese e hipotensão arterial. Foi constatado aparente supradesnivelamento do segmento ST na monitorização eletrocardiográfica, suspensa a administração de ciprofloxacina e o doente foi transferido para a sala de emergência desse hospital. O eletrocardiograma mostrava supradesnivelamento do segmento ST (>3mm) em DII, DIII e aVF, com infradesnivelamento do segmento ST e inversão da onda T em aVL e V1‐V3 (Figura 1). Dada a suspeita de síndrome coronária aguda com supradesnivelamento de ST ínfero‐posterior, foi realizada medicação com dose de carga de ticagrelor (180mg), ácido acetilsalicílico (250mg) e 8mg de morfina. Foi referenciado para cateterismo emergente no nosso hospital e a coronariografia, realizada duas horas após o início das queixas, revelou ausência de doença coronária epicárdica (Figura 2). Posteriormente, foi admitido na unidade de cuidados intensivos cardíacos e na admissão não apresentava queixas, encontrava‐se hemodinamicamente estável (pressão arterial: 112/67mmHg) e o eletrocardiograma mostrou ritmo sinusal, com bloqueio de ramo direito e sem alterações do segmento ST (Figura 3). O ecocardiograma transtorácico não revelou alterações da contractilidade segmentar ou outras alterações relevantes. A avaliação laboratorial mostrou leucocitose de 11,72×103/uL (valores de referência: 3,8‐10,6×103/uL), neutrofilia (86,8%) e elevação da proteína C reativa de 5,24mg/dL (valores de referência: 0‐0,5mg/dL), parâmetros inflamatórios que normalizaram nas primeiras 24 horas. A avaliação de biomarcadores cardíacos mostrou ligeira variação de troponina T de alta sensibilidade (descida de 0,051 para 0,035ng/mL às 12 horas, valores de referência: 0,003‐0,014ng/mL) e NT‐pro‐pepti¿do natriurético B normal (102pg/mL, valores de referência: 0‐450pg/mL). Dada a ausência de doença coronária epicárdica, associada à história prévia de alergia a quinolonas e relação temporal com a administração de ciprofloxacina, foi assumido o diagnóstico de síndrome coronária aguda alérgica (síndrome de Kounis). O doente teve alta após 24 horas de vigilância, medicado com nitrato oral de longa ação e não apresentou quaisquer eventos em dois meses de seguimento.
DiscussãoA síndrome de Kounis (também designada angina ou enfarte agudo do miocárdio alérgico) corresponde à ocorrência de uma síndrome coronária aguda concomitante a uma reação de hipersensibilidade3. Foi descrita pela primeira vez em 1991 pelo Prof. Kounis2 e parece estar associada à libertação de mediadores inflamatórios pelas células mastocitárias, em contexto de reação alérgica4. Entre esse mediadores bioquímicos, encontra‐se a histamina que, para além de ativar o fator tecidular e as plaquetas, poderá, em indivíduos suscetíveis, desencadear vasospasmo coronário5. A ocorrência desta patologia já foi descrita em contexto de hipersensibilidade a fármacos (maioritariamente antibióticos, anti‐inflamatórios não‐esteroides e antineoplásicos) e exposição ambiental (por exemplo: alimentos ou picada de insetos)4.
Existem atualmente três subtipos descritos6: tipo 1, que ocorre devido a vasospasmo coronário em indivíduos sem doença coronária significativa; tipo 2, em doentes com doença coronária pré‐existente, nos quais a libertação de mediadores pró‐inflamatórios provoca vasospasmo ou instabilidade de placas ateroscleróticas; e o tipo 3, que diz respeito a trombose de stent em contexto de reação de hipersensibilidade7.
No caso clínico que apresentamos, o doente apresentava história de reação alérgica a quinolonas, o que poderá explicar a rapidez do aparecimento do quadro clínico, dada a existência de sensibilização prévia. A ausência de doença coronária significativa permite também classificar este episódio como tipo 1.
O espetro clínico é muito variável e depende da resposta alérgica inicial, das comorbilidades do doente, da suscetibilidade (nomeadamente história de atopia e, possivelmente, doenças autoimunes8) e da exposição ao alergénio. Pode inclusivamente afetar crianças9 e a gravidade estende‐se desde um quadro clínico transitório como o que descrevemos, até casos de choque cardiogénico10.
Não existe consenso no que diz respeito ao tratamento da síndrome de Kounis e a maioria dos dados resulta da case‐reports. De qualquer forma, a estratégia terapêutica parece depender do subtipo11. No tipo 1, o tratamento dirigido à reação alérgica parece resolver a síndrome coronária, caso não ocorra espontaneamente com a evicção do alergénio, como no caso descrito, onde apenas foi efetuada suspensão imediata do fármaco, sem realização de terapêutica antialérgica. Já nos subtipos 2 e 3, é necessário também tratamento dirigido à síndrome coronária aguda12. Para além da terapêutica habitual da síndrome coronária13, a componente vasospástica do evento deverá ser tratada com terapêutica vasodilatadora (nitratos e bloqueadores de canais de cálcio não‐dihidropiridínicos). No que diz respeito à reação alérgica, o tratamento passa pela utilização de anti‐histamínicos e epinefrina14, no entanto a utilização da última deverá ser ponderada individualmente em função da gravidade da reação anafilática, dada a existência concomitante de uma síndrome coronária aguda.
ConclusãoA síndrome de Kounis deverá ser um diagnóstico a ter conta em casos de suspeita de síndrome coronária em contexto de reação alérgica. Os mecanismos desta patologia ainda não são totalmente conhecidos, no entanto o tratamento deverá ser dirigido à reação de hipersensibilidade e ao evento coronário, de acordo com a coronariografia.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflitos de interesses.