A biópsia do endomiocárdio (BEM) foi inicialmente efetuada por toracotomia e só em 1961 é introduzida por Sakakibara e Konno a técnica percutânea1. Ao longo das ultimas décadas assistimos a importantes desenvolvimentos na BEM, bem como em modalidades diagnósticas de imagem cardíaca não invasiva, métodos que se complementam em particular no estudo de miocardiopatias de etiologia não isquémica. A biópsia continua a ser o método de referência no diagnóstico de várias patologias do miocárdio, na avaliação de rejeição em doentes submetidos a transplante cardíaco e no esclarecimento etiológico de algumas massas intracardíacas. Apesar do valor diagnóstico e para orientação terapêutica da técnica estar bem estabelecido, bem como algumas das suas indicações2,3, a BEM tem sido subutilizada, em parte por receio das complicações.
Ainda assim, o número de biópsias em coração nativo tem vindo a registar um crescimento importante, sustentado na melhoria dos resultados do próprio procedimento, bem como das técnicas de diagnóstico imuno‐histoquímicas e de virologia molecular4,5.
Vários estudos parecem indicar uma melhor rentabilidade diagnóstica nalgumas patologias (miocardite, algumas miocardiopatias infiltrativas) quando obtidas amostras por biópsia no ventrículo esquerdo ou biventricular6,7.
No artigo de Menezes MN et al.8 são descritos os primeiros casos em Portugal de BEM efetuada por acesso radial. Trata‐se de um estudo observacional, com doentes selecionados, em que os autores demostram a segurança e eficácia da técnica num grupo de doentes com suspeita de miocardiopatia/miocardite, não incluindo doentes transplantados. Os bons resultados obtidos por via transradial estão em linha com outros estudos reportados na literatura9,10 e a evolução do material disponível, bem como a experiência dos operadores em acesso radial, indicia um desejável crescimento do método. A realização simultânea de ecocardiograma parece ser um contributo importante para a segurança da técnica. As limitações referidas pelos AA, condicionadas pelas características do estudo e número de doentes, bem como pela ausência de avaliação objetiva da patência vascular após o procedimento, não invalidam as conclusões sobre a exequibilidade e segurança evidenciadas nos resultados reportados. A patência da artéria após a realização da biópsia é uma questão que deve merecer melhor avaliação, dado estar descrita uma elevada taxa de oclusão da radial após BEM, embora sem consequências clínicas major no imediato11.
Importa referir que em doentes com suporte circulatório, condicionante de circulação não pulsátil, a obtenção de acesso radial pode ser facilitada utilizando a ecografia com Doppler como guia para a punção12. Este aspeto pode revelar‐se importante em doentes com insuficiência cardíaca aguda de etiologia a esclarecer e que apresentam por vezes problemas de acesso vascular condicionados pelo seu estado crítico, presença de cateteres centrais e/ou cânulas venosas e arteriais.
A hipótese avançada pelos AA de que a biópsia do ventrículo esquerdo parece ser pelo menos tão segura, se não mais segura, do que a do ventrículo direito não pode ser inferida da população do estudo. Em relação à utilidade da bióspsia, independentemente da tranquilização conferida pelo diagnóstico, nos doentes com miocardite aguda e crónica (56% da amostra) a percentagem de casos em que o resultado poderá ter influenciado a terapêutica foi baixa, em particular se considerarmos que foram doentes selecionados.
A BEM tem vindo ainda a estabelecer a sua utilidade em situações menos frequentes, como no diagnóstico e caracterização de massas intracardíacas, socorrendo‐se do apoio ecocardiográfico (nomeadamente do ecocardiograma intracardíaco) para aumentar sua eficácia e segurança13.
No contexto da presente pandemia SARS‐CoV‐2 têm sido descritos casos de miocardite14,15, com diagnóstico baseado essencialmente na ressonância cardíaca, estando ainda por estabelecer se a biópsia pode vir a ter um papel neste contexto.
Em resumo, a BEM tem sido uma técnica subutilizada, apesar das indicações estabelecidas em várias recomendações internacionais. O acesso radial mostra‐se promissor em doentes com necessidade de biópsia única, sendo menos indicado em doentes com necessidade de múltiplos procedimentos, como os transplantados cardíacos, pelo risco de trombose do acesso na utilização repetida. É importante manter presentes as indicações para a sua realização, bem como selecionar o melhor acesso de acordo com a indicação e probabilidade de rentabilidade das amostras. Independentemente do acesso vascular, a realização da BEM por operadores experientes tem um impacto determinante na sua eficácia e segurança.
Conflitos de interesseA autora declara não haver conflitos de interesse.