A insuficiência cardíaca nos seus diferentes fenótipos é uma síndrome clínica com prevalência crescente e está associada a significativa morbilidade e mortalidade, bem como elevada taxa de readmissões hospitalares com enorme sobrecarga económica e assistencial do sistema nacional de saúde1. A incidência desta síndrome está fortemente correlacionada com a idade, estimando‐se que seja de cerca de 1% aos 65 anos, aumentando para cerca de 20% a partir dos 80 anos. É expectável que a sua incidência e prevalência continue a aumentar devido ao envelhecimento da população, à diminuição da mortalidade na fase aguda da doença coronária, ao aumento da prevalência de fatores predisponentes (diabetes mellitus, HTA, obesidade) e à disponibilidade de fármacos eficazes no prolongamento da vida dos doentes crónicos2.
Nos últimos 30 anos assistimos a uma enorme evolução na terapêutica da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida. A terapêutica médica dirigida ao bloqueio neuro‐hormonal, os dispositivos médicos (nomeadamente CRT e CDI) e a assistência ventricular reescreveram a história natural desta síndrome e num número significativo de doentes (sobretudo numa fase inicial da doença) podemos assistir à reversão, pelo menos parcial, da remodelagem ventricular.
O conceito do coração como órgão endócrino surgiu com a descoberta do peptídeo natriurético auricular (ANP) por Bold et al., em 19813. A esta primeira descoberta seguiu‐se a descoberta do peptídeo natriurético de tipo B e, posteriormente, outras moléculas foram sendo identificadas como potenciais marcadores na insuficiência cardíaca. Atualmente, os biomarcadores têm um papel bem estabelecido no diagnóstico, estratificação e avaliação prognóstica na insuficiência cardíaca4,5. Têm tido também um papel importante na clarificação da fisiopatologia e biologia desta síndrome6. Já na monitorização da progressão da doença e resposta à terapêutica, a evidência é mais escassa, não sendo ainda uma intervenção bem estabelecida. Desde que os biomarcadores começaram a ser utilizados na insuficiência cardíaca que a ideia da terapêutica individualizada e guiada pelos peptídeos natriuréticos tem sido um objetivo, mas a investigação até ao momento ainda não permitiu validar este conceito7.
Atualmente, e duma forma muito generalista, podemos classificar os biomarcadores em diferentes categorias8: 1) stresse e/ou lesão miocárdica; 2) ativação neuro‐hormonal; 3) remodelagem cardíaca; 4) comorbilidades, o que nos permite monitorizar diferentes etapas da doença. Além dos peptídeos natriuréticos e troponinas (biomarcadores que avaliam stresse e/ou lesão miocárdica) já bem conhecidos na prática clínica, mais recentemente, têm sido desenvolvidos outros biomarcadores direcionados para diferentes processos fisiopatológicos na insuficiência cardíaca, que refletem a remodelagem do miocárdio e matriz extracelular. São exemplo o biomarcador sST2 e a galectina‐3, pois ambos traduzem o grau de hipertrofia e fibrose na remodelagem ventricular e têm vindo a ser testados em estudos que avaliam a resposta à terapêutica na insuficiência cardíaca e potencial remodelagem reversa9. Estratégias que permitam combinar diferentes biomarcadores, que reflitam diferentes processos fisiopatológicos, poderão ter uma acuidade preditiva significativa em termos de diagnóstico, prognóstico e monitorização da doença, perspetivando no futuro a possibilidade da terapêutica‐guiada, ou seja, terapêutica dirigida e de alta precisão também na insuficiência cardíaca.
Remodelagem ventricular é o termo comummente utilizado para descrever as alterações funcionais e estruturais (a nível miocelular e intersticial) que ocorrem na sequência da lesão miocárdica e/ou em situações de sobrecarga de volume/pressão. A progressão da remodelagem ventricular ao longo do tempo acontece como resposta à ativação neuro‐hormonal, aumento da sobrecarga de volume e pressão e inflamação, estando associada a um aumento da morbilidade e mortalidade10.
Na remodelagem reversa ocorre um processo no qual o miocárdio ventricular lesado com um fenótipo dilatado e disfuncional recupera, pelo menos parcialmente, função e normaliza a sua estrutura. A remodelagem reversa pode ocorrer em resposta a intervenções terapêuticas que corrijam ou minimizem a causa de lesão miocárdica, ou intervenções que reduzam ou eliminem o desarranjo neuro‐hormonal e/ou hemodinâmico que contribuem para a progressão da remodelagem ventricular. Vários estudos têm demonstrado remodelagem reversa do ventrículo esquerdo em resposta a terapêutica farmacológica, ressincronização e assistência ventricular11.
No PARADIGM‐HF observou‐se que a redução da concentração do biomarcador sST2 da baseline em relação ao follow‐up tinha valor prognóstico. No subgrupo de doentes tratados com sacubitril‐valsartan, a concentração de sST2 foi cerca de 10% inferior ao subgrupo de doentes tratados com enalapril12. Apesar de se tratar duma redução modesta, tal esteve associado a resultados clinicamente significativos nos doentes tratados com sacubitril. De notar que o biomarcador sST2 tem‐se mostrado particularmente útil na avaliação prognóstica da insuficiência cardíaca com ambos fenótipos FE reduzida e preservada13.
O estudo PROVE‐HF, atualmente a decorrer, pretende determinar alterações na concentração de múltiplos biomarcadores relacionadas com mecanismos de ação e efeitos da terapêutica com sacubitril/valsartan ao longo de 12 meses e a correlação destas alterações, na concentração de biomarcadores com parâmetros de remodelagem cardíaca e morbimortalidade cardiovascular (Clinicaltrials.gov Identifier: NCT02887183). O estudo PROVE‐HF, cujos resultados serão conhecidos em 2019, trará muito provavelmente alguma clarificação sobre o papel dos biomarcadores (e que biomarcadores) na monitorização da resposta terapêutica e da remodelagem ventricular.
O presente estudo reportado por Amorim et al.14 visa compreender o papel dos biomarcadores na monitorização da remodelagem reversa em doentes com insuficiência cardíaca e fração de ejeção reduzida.
Apesar de incluir um grupo restrito de doentes com miocardiopatia dilatada idiopática, o estudo reportado por Sandra Amorim vai ao encontro dos dados descritos na literatura, que referem que a remodelagem reversa ocorre em cerca de um terço dos doentes que desenvolve insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida.
Também é conhecido o perfil clínico dos doentes que apresentam remodelagem reversa miocárdica. Este inclui indivíduos mais jovens, habitualmente com função renal preservada e com remodelagem ventricular mais favorável, ou seja, doença estrutural menos avançada (volumes diastólicos do VE mais baixos). A possibilidade de identificar os potenciais respondedores à terapêutica médica tem óbvias vantagens, sendo a mais imediata evitar implantar dispositivos (nomeadamente CDI) a doentes que não viriam a precisar dele.
Considerando que os biomarcadores cardíacos já mostraram o seu valor no diagnóstico e estratificação da insuficiência cardíaca com FE reduzida, seria interessante perceber se poderiam ser mais um elemento a assessorar a identificação de doentes que vão apresentar remodelagem reversa ou não. No presente estudo, constituído por uma amostra exploratória, avaliam‐se múltiplos biomarcadores, com vista a estabelecer uma correlação entre estas moléculas e parâmetros clínicos e ecocardiográficos na remodelagem reversa. A execução de comparações múltiplas aumenta o risco de falsos positivos e torna mais difícil retirar conclusões e, de facto, não houve correlação entre biomarcadores e remodelagem reversa do ventrículo esquerdo. É‐nos transmitido pelos autores que existe um estudo em curso com novos biomarcadores, o que poderá ajudar a esclarecer esta questão. O estudo PROVE‐HF será certamente uma contribuição clara na definição do papel dos biomarcadores na identificação da remodelagem cardíaca.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.