O papel principal da aurícula esquerda é a modulação do enchimento do ventrículo esquerdo através das suas funções de reservatório, conduto passivo e contração ativa; a avaliação da deformação da parede auricular esquerda é exequível e permite a categorização da disfunção diastólica1. A análise estrutural e funcional da aurícula esquerda reflete um amplo espectro de alterações fisiopatológicas que podem ocorrer como resposta a condições de stress específicas; de facto, a aurícula esquerda está exposta diretamente à pressão diastólica do ventrículo esquerdo através da abertura da válvula mitral e, devido à estrutura fina da sua parede, tende a reduzir as suas propriedades elásticas e finalmente dilatar com o aumento da pressão2. A avaliação das dimensões e da função auricular esquerda tem sido feita em diferentes doenças cardiovasculares, revelou‐se um poderoso marcador de prognóstico em diferentes condições clínicas3. Vieira et al., num artigo de revisão, salientaram a importância clínica do estudo da aurícula esquerda pelas técnicas de deformação miocárdica bidimensional4. Um grande número de trabalhos publicados tem mostrado a exequibilidade e reprodutibilidade das técnicas de deformação miocárdica (speckle‐tracking ‐ ST) na avaliação do miocárdio auricular, que se revelou um dos principais focos de investigação em ecocardiografia5. No entanto, tais índices de função auricular dependem das condições hemodinâmicas e assentam em pressupostos geométricos6,7.
A ecocardiografia tridimensional (3D) acoplada à capacidade do ST é uma metodologia inovadora que demonstrou ser útil na avaliação de volumes e propriedades funcionais das câmaras cardíacas em geral, permite a caracterização das diferentes fases da função da aurícula esquerda e não implica qualquer suposição geométrica, e é a mais precisa8 e reprodutível9. Contudo, os estudos de deformação auricular por ST3D são escassos, em particular em doentes com amiloidose.
Em estudos feitos, foi demonstrado que na cardiomiopatia hipertrófica o strain da aurícula esquerda se encontra reduzido em comparação com os controlos saudáveis, mas também em relação aos doentes com hipertrofia secundária à hipertensão arterial10,11.
A amiloidose cardíaca resulta da deposição de amiloide no coração, tem como forma de apresentação mais frequente nos países ocidentais a cardiomiopatia restritiva, pode em cerca de 5% dos casos mimetizar a cardiomiopatia hipertrófica12–14. O ecocardiograma geralmente mostra o espessamento concêntrico do ventrículo esquerdo e, muitas vezes, associado ao espessamento ventricular direito. A parede ventricular pode apresentar‐se mais ecogénica devido à deposição de amiloide15. Clinicamente, as manifestações cardíacas mais frequentes são a insuficiência cardíaca e as arritmias. É, no entanto, importante reconhecer a amiloidose cardíaca como parte de uma doença sistémica, e não uma condição isolada. O envolvimento cardíaco dessa patologia foi visto até muito recentemente como uma manifestação rara, frequentemente diagnosticada em autópsia, e foi considerada intratável quando diagnosticada em vida. Na última década registaram‐se grandes avanços, quer no diagnóstico quer no tratamento da amiloidose cardíaca, associados ao reconhecimento de que se trata de uma patologia mais comum do que previamente suposto16. O contributo mais recente das técnicas de imagem avançadas como a ressonância magnética cardíaca e a ecocardiografia tem sido muito relevante, permite aumentar a probabilidade de diagnóstico da doença.
A importância do diagnóstico precoce da amiloidose cardíaca tipo AL deve ser fortemente enfatizada. Se não tratada, a sobrevivência mediana após o início da insuficiência cardíaca é de aproximadamente seis meses17, mas as terapias modernas podem colocar a doença em remissão prolongada e prolongar a vida por muitos anos18.
No artigo Left atrial dysfunction in light‐chain (AL) cardiac amyloidosis and hypertrophic cardiomyopathy – A comparative three‐dimensional speckle‐tracking echocardiographic analysis from the MAGYAR‐Path Study, publicado no presente número da Revista Portuguesa de Cardiologia19, os autores apresentam a avaliação comparativa dos sinais ecocardiográficos de disfunção auricular esquerda por ST3D em três grupos (16 doentes com amiloidose cardíaca AL; 20 com cardiomiopatia hipertrófica; 16 indivíduos saudáveis) no âmbito do MAGYAR‐Path Study. Neste trabalho, são referidas as vantagens dessa técnica tridimensional na avaliação funcional da aurícula esquerda tal como já demonstrado em estudos anteriores; contudo, o que encontramos de novo é a avaliação comparativa que envolve doentes portadores de amiloidose cardíaca AL e cardiomiopatia hipertrófica. A análise dos resultados mostrou diferentes padrões de disfunção auricular compatíveis com insuficiência da fase de reservatório em ambas as doenças, enquanto o compromisso significativo na fase de contração ativa ocorreu apenas na amiloidose cardíaca (redução da fração de ejeção auricular ativa e da contração auricular). Na sua discussão são salientadas as limitações da técnica, como sejam, a baixa resolução temporal e espacial, a relevância da idade na avaliação funcional da aurícula esquerda e a potencial influência da insuficiência da válvula mitral quando coexistente.
Adicionalmente, são também grandes desafios para essa técnica a complexidade anatómica da aurícula esquerda, por apresentar em geral uma parede miocárdica fina, não uniforme, e por esse facto com um menor número de speckles, bem como a sua estreita relação com estruturas como as veias pulmonares e o apêndice auricular, o que gera artefactos e dificulta a metodologia usada da divisão segmentar em 16 segmentos, um modelo geralmente usado para o ventrículo esquerdo; se, por um lado, com essa técnica tridimensional a aurícula esquerda pode ser avaliada como um todo num mesmo ciclo cardíaco, a referida heterogeneidade anatómica pode afetar a avaliação do strain regional.
O 3DST é já bem mais do que uma metodologia de investigação ou uma promessa na avaliação funcional do ventrículo esquerdo. A possível evolução dessa tecnologia, com a melhoria progressiva na qualidade da imagem e sobretudo o desenvolvimento de algoritmos de interpretação e análise da informação, automatizados e dedicados à avaliação auricular, pode representar um passo importante para a sua inclusão futura na prática clínica para o estudo da função da aurícula esquerda.
Novos estudos com 3DST sobre a função auricular, com um número mais alargado de doentes, com faixas etárias mais amplas e que envolvam outras patologias (inclusive a avaliação da cardiotoxicidade), poderão vir a acrescentar dados importantes para o conhecimento atualmente existente sobre o já relevante valor de diagnóstico dessa técnica tridimensional; a possível associação entre os diferentes parâmetros de deformação auricular obtidos por 3DST com o risco de arritmias em doentes portadores de cardiomiopatia poderá também ser alvo de investigação adicional. A comparação dos resultados obtidos por 3DST na avaliação funcional da aurícula esquerda com outras técnicas de imagem, nomeadamente a ressonância magnética cardíaca, ou a sua correlação com biomarcadores, pode constituir um importante apoio científico para a sua valorização clínica.
Comentário finalA aurícula esquerda desempenha um papel importante na expressão clínica e no prognóstico dos doentes com patologia cardíaca, em particular nas cardiomiopatias. A ecocardiografia, como método não invasivo, tem contribuído amplamente e com crescente aplicação clínica para a análise quantitativa da função auricular esquerda. A técnica 3DST reúne as vantagens da avaliação anguloindependente da deformação miocárdica com uma superior representatividade geométrica da imagem tridimensional; apesar de apresentar algumas limitações, fornece informação que pode permitir a deteção de padrões de remodelação funcional numa fase inicial, anteriores às alterações anatómicas, e com interesse clínico. A aplicação da técnica ST3D na avaliação da aurícula esquerda revelou‐se neste estudo de Nemes et al. como um passo em frente, ao permitir a obtenção de informação discriminativa com potencial relevância clínica, particularmente por se tratar de patologias de elevado impacto prognóstico.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.