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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 521-524 (julho - agosto 2012)
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Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 521-524 (julho - agosto 2012)
Caso Clínico
Open Access
Assistência ventricular esquerda numa criança de 5 anos – ponte para recuperação num caso de miocardite viral
Left ventricular assist device in a five-year-old child: A bridge to recovery in a case of viral myocarditis
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Margarida Silvaa,
Autor para correspondência
margaridaoms@gmail.com

Autora para correspondência.
, Nuno Carvalhoa, Graça Nogueiraa, Patrícia Costab, Rui Rodriguesc, Miguel Abecasisc, Manuela Nunesd, Rui Anjosa, José Nevesc
a Serviços de Cardiologia Pediátrica, Hospital de Santa Cruz, Carnaxide, Portugal
b Serviço de Cardiologia Pediátrica, Hospital de São João, Porto, Portugal
c Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, Hospital de Santa Cruz, Carnaxide, Portugal
d Serviço de Anestesia, Hospital de Santa Cruz, Carnaxide, Portugal
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Resumo
Introdução

A miocardite viral pode cursar com insuficiência cardíaca refratária à medicação. Nestes casos, a assistência ventricular externa é uma alternativa que pode ser usada como ponte para transplante ou para recuperação. Descrevemos o primeiro caso em Portugal de recuperação da função ventricular após assistência ventricular por miocardite grave.

Caso clínico

Apresentamos o caso de uma criança de 5 anos, sexo masculino, sem doença cardíaca prévia, com miocardite viral grave, insuficiência cardíaca refratária à medicação e serologias positivas para Parvovírus B19 e vírus Ebstein-Barr. Foi implantado o Berlin Heart Excor® 15 dias após o diagnóstico. A biopsia cardíaca, na altura da implantação, mostrava áreas de fibrose subendocárdica. Verificou-se recuperação da função miocárdica, tendo sido retirada a assistência ventricular após 40 dias da implantação. O doente teve alta 15 dias depois.

Discussão

A sobrevida das crianças em assistência ventricular tem vindo a melhorar significativamente, devido ao planeamento atempado e à otimização da anticoagulação. A presença de fibrose subendocárdica no contexto de miocardite não constitui uma indicação formal para transplante.

Palavras-chave:
Assistência ventricular externa
Berlin Heart Excor®
Insuficiência cardíaca
Miocardite viral
Abstract
Introduction

Viral myocarditis can lead to heart failure that is refractory to medication. In these cases, a ventricular assist device is a good therapeutic option that can be used as a bridge to transplantation or recovery. We describe the first case in Portugal of recovery with ventricular assistance after severe myocarditis.

Case report

A five-year-old boy with no previous cardiac disease presented with severe viral myocarditis, refractory to medical treatment, with positive serology for parvovirus B19 and Ebstein-Barr virus. A Berlin Heart Excor® was implanted 15 days after diagnosis. A biopsy at the time of implantation showed subendocardial fibrosis. After 40 days of assistance ventricular function recovered and the device was explanted. The patient was discharged from hospital 15 days later.

Discussion

Survival of children with ventricular assistance has improved significantly because of earlier implantation and coagulation monitoring. The presence of subendocardial fibrosis in the context of myocarditis is not a mandatory indication for transplantation.

Keywords:
Assisted circulation
Circulatory assist devices
Heart failure
Viral myocarditis
Texto Completo
Introdução

A miocardite viral é uma doença rara em idade pediátrica. A verdadeira incidência da miocardite viral na população em geral é desconhecida. Caracteriza-se histologicamente por infiltrado inflamatório mononuclear, edema intersticial e, por vezes, necrose1. Em grande número de casos é uma doença benigna, com recuperação espontânea da função cardíaca após alguns meses. Nalguns casos ocorre necrose extensa do miocárdio com subsequente substituição do tecido necrosado por tecido fibrótico. Nos casos mais graves há mesmo progressão para miocardiopatia dilatada com insuficiência cardíaca refratária à medicação e a assistência ventricular esquerda (AVE) pode ser usada como ponte para transplante.

Descrevemos o primeiro caso em Portugal de recuperação da função ventricular com AVE após miocardite grave.

Caso clínico

Apresentamos o caso de um doente do sexo masculino, de 5 anos de idade, obeso (26 quilos, 117cm, IMC>p97%), com antecedentes pessoais de asma brônquica.

Três dias antes do internamento no hospital de origem iniciou quadro de vómitos, diarreia, tosse e febre. A observação inicial mostrou ritmo de galope, fervores bilaterais e hepatomegália 3 centímetros abaixo do rebordo costal direito. A radiografia do tórax demonstrou índice cárdio-torácico de 65% e infiltrado intersticial difuso. O ecocardiograma revelou dilatação grave do ventrículo esquerdo (VE), diminuição global da contratilidade, insuficiência mitral ligeira e derrame pericárdico. O diâmetro diastólico do VE medido em parasternal eixo longo em modo M (VEd) era de 54mm (z-score=5,5) e a fração de encurtamento do VE (FencVE) de 22%. Foi internado e iniciou dopamina, milrinona e noradrenalina, furosemida, antibioticoterapia de largo espetro e ventilação mecânica invasiva. Durante a entubação endotraqueal sofreu episódio de paragem cardiorrespiratória com necessidade de reanimação. Iniciou terapêutica com digoxina ao 3.° dia de internamento e fez um curso de levosimendan ao 7.° dia de internamento. Apesar da terapêutica instituída, verificou-se agravamento progressivo do quadro clínico com edemas generalizados e hepatomegália de 6 centímetros, com agravamento da função ventricular. Do estudo etiológico efetuado, destaca-se serologias positivas para vírus Ebstein-Barr e Parvovírus B19. Manteve febre persistente sob antibioterapia tripla.

Ao 15.° dia de internamento foi transferido para o nosso centro para a colocação de assistência ventricular como ponte para transplante cardíaco por falência da terapêutica convencional.

Por ecocardiograma e sob terapêutica com inotrópicos confirmou-se a existência de VE muito dilatado (VEd=60mm; z-score=7,5), dilatação da veia cava inferior (8mm) e regurgitação mitral moderada. O diâmetro sistólico do VE (VEs) era de 49mm (z-score=9) e a fração de ejeção (FEVE) de 30%. A pressão e a função do ventrículo direito (VD) eram normais.

O doente foi colocado em AVE com Berlim Heart Excor®. Foi utilizada uma bomba de 50mL e foram introduzidas duas cânulas com diâmetro de 9/12mm na região apical do VE e na aorta ascendente, acima da origem das artérias coronárias. A cânula aórtica foi colocada a um ângulo de 85 graus em relação à aorta. A implantação foi feita sob circulação extracorporal (103 minutos), com o coração a bater, e a cirurgia durou cerca de 3 horas e decorreu sem intercorrências. A função ventricular direita estava preservada e nunca houve sinais de falência do ventrículo direito.

Foi extubado ao 5.° dia de AVE, sem intercorrências. Suspendeu suporte inotrópico ao 8.° dia de AVE.

Durante o período pós-operatório, foi feito um controlo rigoroso da anticoagulação, essencial ao funcionamento sem complicações da AVE. Iniciou terapêutica anticoagulante com heparina endovenosa em perfusão 6 horas após a implantação. A dose inicial de heparina foi de 20U/kg/hora, que foi posteriormente ajustada, de 6 em 6 horas durante a primeira semana, segundo o valor de tromboplastina parcialmente ativada (aPTT) e o nível de plaquetas. Foi feito diariamente tromboelastograma e determinados os níveis de antitrombina iii, fibrinogénio, D-dímeros, plaquetas, leucócitos e proteína C reativa. Iniciou anticoagulação oral com varfarina ao 5.° dia pós-operatório e suspendeu-se a heparina em perfusão após se ter atingido valores de INR entre 3 e 3,5. Não se verificaram intercorrências tromboembólicas ou hemorrágicas.

Do ponto de vista infeccioso, manteve febre alta e de difícil controlo até ao 5.° dia pós-operatório, com parâmetros inflamatórios positivos. Foi medicado com antibioterapia de largo espetro com boa resposta. Os exames microbiológicos foram sempre negativos. Ao 15.° dia pós-operatório reiniciou febre, com parâmetros inflamatórios positivos. Foi isolado Staphilococcus sanguis na hemocultura e nas secreções brônquicas e fez antibioterapia de acordo com o teste de sensibilidade aos antibióticos, com boa resposta.

A biopsia do miocárdio na altura da implantação mostrou fibroelastose subendocárdica moderada, não associada a infiltrado inflamatório nem a trombos, mas com foco de proliferação miofibroblástica e focos de miocitólise.

Foi feita a avaliação ecocardiográfica seriada e avaliados os seguintes parâmetros ecocardiográficos por ecocardiografia transtorácica: FEVE, FencVE, VEd, VEs, integral velocidade tempo na câmara de saída do VE (VTICSVE) e grau de insuficiência mitral. Progressivamente, verificou-se melhoria da contratilidade do VE (Figura 1), tendo sido possível reduzir os parâmetros de frequência do Berlin Heart Excor® até 30 ciclos por minuto e, ao 19.° dia de AVE, foi transferido para a enfermaria. Ao 27.° dia de AVE foi avaliada a função do VE com o Berlim Heart Excor® em modo off. Por se verificar um aumento do débito cardíaco à custa de um aumento significativo da frequência cardíaca, iniciou nesta altura carvedilol. A função do VE foi testada novamente com o dispositivo em modo off ao 34.° dia de assistência ventricular, com bons resultados. Ao 40.° dia de AVE, após novo ciclo de levosimendan, o Berlim Heart Excor® foi retirado eletivamente. O período pós-operatório decorreu sem complicações. Foi extubado e suspendeu suporte inotrópico nas primeiras 24h de pós-operatório. Foi transferido para a enfermaria ao 4.° dia pós-operatório.

Figura 1.

Melhoria gradual da função cardíaca e diminuição da dilatação do ventrículo esquerdo após início de assistência ventricular. As setas pretas indicam, da esquerda para a direita, implantação e retirada da assistência ventricular externa. AVE: assistência ventricular externa; FEVE: fração de ejeção; FencVE: fração de encurtamento; VEd: diâmetro do ventrículo esquerdo em diástole; VTI: integral velocidade tempo na câmara de saída do ventrículo esquerdo.

(0.1MB).

O último ecocardiograma antes da alta revelou FEVE de 60% e VEd de 37mm (z-score=−0,03)

Teve alta clinicamente assintomático, ao 55.° de internamento, 15 dias após ter retirado a AVE, medicado com furosemida, espironolactona, ácido acetilsalicílico, digoxina, carvedilol e captopril.

Três meses após a alta encontra-se em classe I do NYHA, com fração de ejeção do VE normal e em desmame de medicação.

Discussão

A miocardite é uma doença rara em idade pediátrica e, geralmente, tem uma evolução benigna. Raramente, pode evoluir para insuficiência cardíaca aguda grave ou tardiamente para miocardiopatia dilatada. Nestes casos, a AVE pode funcionar como medida de última linha e ponte para transplante ou recuperação. Enquanto que para adultos e adolescentes estão disponíveis vários dispositivos para AVE, para as crianças com menos de 1,2 m2 existem apenas 2 alternativas: o Berlin Heart Excor® (Berlin Heart AG, Berlin, Germany) e o Medos HIA device (Medos Medizintechnik AG, Stolberg, Germany)2. A técnica de suporte mecânico mais usada na idade pediátrica é a assistência ventricular pulsátil extracorporal Berlin-Heart Excor®2. Esta técnica pode ser usada de forma uni ou biventricular3. Na forma univentricular, o aparelho consiste numa bomba constituída por 2 câmaras (uma de ar e uma de sangue), separadas por uma membrana tripla de poliuretano. A câmara de ar está ligada ao aparelho principal por um tubo, através do qual se transmite a pressão que mobiliza a membrana3. A câmara de sangue está ligada através de 2 cânulas, respetivamente, à região apical do VE ou à aurícula esquerda e à aorta ascendente3. Nos últimos anos, vários melhoramentos têm sido feitos no sentido de adaptar os sistemas de AVE à idade pediátrica, nomeadamente no que diz respeito ao tamanho das cânulas, das câmaras e dos conectores, ao revestimento de heparina da superfície interna da bomba e ao tratamento anticoagulante4. Atualmente, esta técnica pode ser usada desde o recém-nascido até ao adulto3. Regulando os parâmetros de frequência do dispositivo, é possível variar o seu débito. Desde que foi usado pela primeira vez em 1990 e até maio de 2009, o Berlin Heart Excor® foi implantado em 500 crianças e adolescentes em todo o mundo5.

A implantação da AVE deve ser programada e devem fazer-se todos os esforços para iniciar a assistência de forma urgente e não emergente, antes da presença de disfunção dos órgãos alvo ou de choque cardiogénico6. Sendo a miocardite uma doença geralmente autolimitada, com posterior recuperação da função cardíaca, a AVE em crianças selecionadas com disfunção ventricular muito grave é uma solução eficaz, segura e muito útil, podendo ser usada por períodos mais ou menos prolongados e podendo mesmo evitar o recurso ao transplante. É necessário um controlo rigoroso da coagulação para evitar complicações tromboembólicas, e vigiar de perto sinais clínicos e laboratoriais de infeção. A decisão do timing apropriado para retirar a assistência é de grande importância e implica uma avaliação sistemática e periódica da função cardíaca com o dispositivo em modo on e off e otimização da terapêutica médica. Uma retirada precoce do dispositivo está associada a risco de falência do VE, com eventual necessidade de recolocar o doente em assistência ventricular. Prolongar a AVE além do estritamente necessário está associado a um risco elevado de infeção e acidentes tromboembólicos.

Neste caso, apesar de a biopsia ter mostrado fibrose subendocárdica, verificou-se recuperação da função cardíaca, não devendo a presença de fibrose na biopsia ser indicação formal para transplante ou uma contraindicação para a colocação de assistência ventricular como ponte para recuperação.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Agradecimentos

Técnico Nuno Raposo do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Cruz.

Bibliografia
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A. Dancea.
Myocarditis in infants and children: A review for the paediatrician.
Paediatr Child Health, 6 (2001), pp. 543-545
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R. Hetzer, B. Stiller.
Technology Insight: use of ventricular assist devices in children.
Nat Clin Pract Cardiovasc Med, 3 (2006), pp. 377-386
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Berlin Heart GmbH, Excor Pediatric – Medical Professionals. [consultado 21 Out 2010]. Disponível em: www.berlinheart.com/englisch/medpro/excor-pediatric/.
[4]
R. Hetzer, E.V. Potapov, B. Stiller, et al.
Improvement in survival after mechanical circulatory support with pneumatic pulsatile ventricular assist devices in pediatric patients.
Ann Thorac Surg, 82 (2006), pp. 917-924
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Berlin Heart GmbH. 500th Patient Receives Berlin Heart EXCOR Pediatric Ventricular Assist Device. PRNewswire. 2009.
[6]
Cardiac extracorporeal life support: state of the art in 2007. Cardiol Young. 2007;17 (Suppl. 2):104–15.
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