Informação da revista
Vol. 34. Núm. 5.
Páginas 337-345 (maio 2015)
Visitas
12337
Vol. 34. Núm. 5.
Páginas 337-345 (maio 2015)
Artigo Original
Open Access
APOLO I: controlo da hipocoagulação na fibrilhação auricular
APOLLO I: Anticoagulation control in atrial fibrillation
Visitas
12337
Luís Pinho‐Costa
Autor para correspondência
luisdepinhocosta@gmail.com

Autor para correspondência.
, Sónia Moreira, Cristiana Azevedo, Pedro Azevedo, Elisabete Castro, Hélder Sousa, Miguel Melo
Unidade de Saúde Familiar de Fânzeres, Agrupamento de Centros de Saúde de Gondomar, Gondomar, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (6)
Mostrar maisMostrar menos
Tabelas (1)
Tabela 1. Descrição das características sociodemográficas
Resumo
Introdução e objetivos

Na fibrilhação auricular o controlo da hipocoagulação avaliado pelo tempo em alvo terapêutico correlaciona‐se positivamente com a segurança e eficácia tromboprofiláticas. Pretende‐se realizar essa avaliação na unidade dos autores e pesquisar determinantes de melhor controlo.

Métodos

Série de casos – utentes da Unidade de Saúde Familiar de Fânzeres com fibrilhação auricular sob varfarina ou acenocumarol. Colheram‐se dados sociodemográficos e clínicos; calculou‐se o tempo em alvo terapêutico pelo método de Rosendaal, usando os resultados de Razão Normalizada Internacional realizados em laboratórios externos à unidade nos seis meses precedentes. Os dados foram tratados em SPSS 21.0®, recorrendo‐se a estatística descritiva, correlação de Spearman, teste de Mann‐Whitney U e Kruskal‐Wallis.

Resultados

Participaram 70% dos 106 pacientes elegíveis. O tempo em alvo terapêutico mediano foi de 65,3% (P25=48,3%; P75=86,8%). Encontrou‐se relação positiva entre essa variável e duração da doença (ρ=0,477; p <0,001; R2=0,116) e duração da hipocoagulação (ρ=0,5; p <0,001; R2=0,087). Não se estabeleceu relação com idade, género, escolaridade e existência de cuidador (p >0,05).

Conclusões

O tempo em alvo terapêutico mediano na unidade é semelhante ao dos países sul europeus, ficando próximo do «bom controlo» definido pela Sociedade Europeia de Cardiologia (70%). A duração da fibrilhação auricular e da hipocoagulação explicam uma pequena parte da variabilidade dessa medida. Serão necessários estudos para identificação de outros determinantes do controlo da hipocoagulação e estudos comparativos com unidades que realizem os testes laboratoriais de monitorização da hipocoagulação nas suas instalações.

Palavras‐chave:
Fibrilhação auricular
Anticoagulantes
Tempo em alvo terapêutico
Abstract
Introduction and Aims

Anticoagulation control as assessed by time in therapeutic range (TTR) correlates positively with the safety and efficacy of thromboprophylaxis in atrial fibrillation. We set out to assess TTR in our unit and to investigate determinants of better control.

Methods

This was a case series study of atrial fibrillation patients anticoagulated with warfarin or acenocoumarol at the Family Health Unit of Fânzeres. Sociodemographic and clinical data were collected and TTR was calculated by the Rosendaal method, based on international normalized ratio tests performed in external laboratories in the preceding six months. SPSS® 21.0 was used for the statistical analysis, with descriptive statistics, Spearman's correlation, and the Mann‐Whitney U and Kruskal‐Wallis tests.

Results

Of the 106 eligible patients, 70% participated in the study. Median TTR was 65.3% (P25=48.3%, P75=86.8%). We found a positive association between this variable and duration of atrial fibrillation (ρ=0.477, p<0.001, r2=0.116) and with duration of anticoagulation (ρ=0.5, p<0.001, r2=0.087). No association was found with age, gender, educational level or existence of a caregiver (p>0.05).

Conclusions

Median TTR in our unit is similar to that in southern European countries and close to the good control threshold (70%) proposed by the European Society of Cardiology. The duration of atrial fibrillation and of anticoagulation explains only a small part of the measure's variability. Other determinants of anticoagulation control must be investigated in future studies and comparative studies should be carried out in family health units monitoring anticoagulation on the premises.

Keywords:
Atrial fibrillation
Anticoagulants
Time in therapeutic range
Quadro de símbolos e abreviaturas
Símbolo/Abreviatura Designação
AVC

Acidente vascular cerebral

ACO

Anticoagulantes orais

ρ

Coeficiente de correlação de Spearman

FA

Fibrilhação auricular

N

Frequência absoluta

P25

Percentil 25

P50

Percentil 50

P75

Percentil 75

RNI

Razão normalizada internacional

MIM@UF®

Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais

α

Nível de significância estatística

TAT

Tempo em alvo terapêutico

USFF

Unidade de Saúde Familiar de Fânzeres

P

Valor p

Texto Completo
Introdução

A fibrilhação auricular (FA) é a taquiarritmia supraventricular mantida mais frequente na prática clínica, estimando‐se a prevalência eletrocardiográfica de FA em 2,5% para a população portuguesa com 40 ou mais anos – 36% dos quais não diagnosticados1. A prevalência é crescente com o avançar da idade, atingindo valores de 10% a partir dos 80 anos1.

Quando não está indicada ou não é possível a reversão a ritmo sinusal, a FA torna‐se crónica e implica frequentemente adaptação do estilo de vida, tromboprofilaxia com fármacos hipocoagulantes e ajustes posológicos detalhados. A fraca adesão terapêutica coloca o paciente em risco elevado de morbilidade e mortalidade, nomeadamente pelo risco associado de acidente vascular cerebral (AVC)1–7. Entre as opções hipocoagulantes encontram‐se os fármacos clássicos: varfarina e acenocumarol. Para estes fármacos, o alvo terapêutico é o de uma razão normalizada internacional (RNI) na janela entre 2,0‐3,0, dada a eficácia demonstrada na profilaxia tromboembólica do AVC e embolia pulmonar aliados a um perfil de segurança aceitável nomeadamente no que respeita ao risco hemorrágico7,8.

O tempo que o paciente hipocoagulado despende dentro da janela de valores terapêuticos define o tempo em alvo terapêutico (TAT), o qual representa uma estimativa da percentagem de tempo em alvo e, portanto, do controlo da hipocoagulação. O «bom controlo» é definido pela Sociedade Europeia de Cardiologia como TAT70%7. Verificou‐se ainda que uma melhoria de 12% do TAT se acompanha de redução de um evento tromboembólico por 100 pessoas/ano, ou seja, maior eficácia; por outro lado, uma melhoria de 7% acompanha‐se de redução de um evento hemorrágico major por 100 pessoas/ano, ou seja, menos efeitos adversos8.

Os dados da literatura internacional demonstram assimetrias regionais e internacionais com TAT que oscilam entre os 50% em Israel, 64% na Europa do sul, 74,5% na Europa do norte e 76,5% na Suécia8–16. Em Portugal, o estudo RE‐LY é a única fonte de dados, apontando para um valor de 61% nos participantes hipocoagulados com varfarina17; trata‐se, no entanto, de um estudo de fase III que compara a eficácia e segurança da varfarina e de um novo anticoagulante oral (ACO) (dabigatrano) na prevenção de AVC em pacientes com FA – assim sendo, o valor reportado resulta das condições específicas do estudo, não necessariamente sobreponíveis à prática clínica habitual. Existem dois outros estudos com dados portugueses sobre o controlo da hipocoagulação, mas que reportam a proporção de RNI dentro da janela terapêutica em determinadas unidades de saúde18,19. Esta medida centra‐se nos controlos de diversos pacientes, fornecendo informação distinta do TAT, centrado em cada utente, não sendo comparáveis.

Adicionalmente, verificaram‐se discrepâncias relacionadas com o contexto e nível de cuidados em que é prestada a monitorização da hipocoagulação. Uma meta‐análise em pacientes norte‐americanos com FA hipocoagulada com varfarina revelou que os pacientes seguidos em serviços especializados apresentaram TAT superior aos seguidos na comunidade pelos cuidados de saúde primários (63% no primeiro grupo, 51% no segundo)20.

Dado não dispormos atualmente de dados sobre o TAT no contexto da prática clínica habitual em unidades de cuidados de saúde primários em Portugal, nomeadamente quando a avaliação dos níveis de hipocoagulação é realizada em laboratórios externos à unidade de saúde, julgamos pertinente avaliar o TAT dos pacientes com FA hipocoagulada com fármacos clássicos na Unidade de Saúde Familiar de Fânzeres (USFF).

Objetivos

  • 1)

    Caracterizar o TAT nos pacientes da USFF com FA hipocoagulada com fármacos clássicos (varfarina ou acenocumarol).

  • 2)

    Analisar a relação entre TAT e variáveis sociodemográficas (idade, género, escolaridade, existência de cuidador) e variáveis clínicas (duração de FA, duração de hipocoagulação).

Métodos

Realizou‐se um estudo de série de casos, o qual foi implementado entre maio e agosto de 2013 na USFF.

A população em estudo foi a dos utentes da USFF com diagnóstico de FA (paroxística, persistente ou permanente) e sob hipocoagulantes clássicos (varfarina ou acenocumarol).

A estratégia de identificação dos utentes com diagnóstico de FA (vide Figura 1) teve por base a triagem das listas de utentes inscritos nas listas dos médicos de família da USFF com o diagnóstico de FA, estando este problema de saúde codificado com o código K78da 2.a edição da Classificação Internacional de Cuidados Primários (fibrilhação/flutter auricular) à data de 31 de maio de 2013. A listagem destes utentes foi obtida através da base de dados do programa informático Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF). Complementamos esta estratégia com a triagem das listas de utentes com codificação K79 (taquicardia paroxística), K80 (arritmia cardíaca NE) e K99 (outras doenças do aparelho circulatório), até 31 de maio de 2013. A triagem consistiu na consulta dos processos individuais (registos clínicos e exames complementares de diagnóstico) dos utentes listados, procurando‐se informação clínica de diagnóstico de FA (avaliação médica de FA ou traçado eletrocardiográfico descrito como FA). Identificaram‐se desta forma 153 indivíduos com FA.

Figura 1.

Fluxograma referente à identificação dos casos e critérios de inclusão/exclusão para análise. K78, K79, K80 e K99 dizem respeito às listagens de utentes com «fibrilhação/flutter auricular», «taquicardia paroxística», «arritmia cardíaca» e «outras doenças circulatórias», de acordo com a codificação de Problemas de Saúde da 2.ª edição da Classificação Internacional de Cuidados Primários; estas listagens foram obtidas através do Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF). Legenda: ACO: anticoagulantes orais; FA: fibrilhação auricular; TAT: tempo em alvo terapêutico; N: frequência absoluta.

(0.15MB).

De forma a identificar o subgrupo sob hipocoagulação com varfarina ou acenocumarol nos meses precedentes, pesquisaram‐se as prescrições no período e contactaram‐se telefonicamente os utentes (até cinco tentativas, em horário e dia útil diferentes). Foi privilegiado o contato com o utente, tendo‐se admitindo como alternativa o contacto com o seu cuidador/representante legal quando aplicável – para este efeito definiu‐se o «cuidador» como a pessoa responsável pela administração da medicação ao utente. Excluíram‐se 47 indivíduos por não estarem hipocoagulados com varfarina ou acenocumarol; seis foram excluídos por terem falecido durante o ano de 2013 e um outro por ter sido transferido para outra unidade funcional. Em nove casos não se conseguiu entrar em contacto com o utente ao final das tentativas previstas em protocolo.

Foram considerados elegíveis 106 utentes que haviam cumprido hipocoagulação com fármacos clássicos, tendo sido convidados a participar no estudo. Apenas dois utentes recusaram participar. A aceitação do convite foi sucedida de agendamento de entrevista presencial na USFF.

A monitorização da terapêutica ACO dos utentes da USFF é realizada em laboratórios inseridos na comunidade ou laboratórios hospitalares no caso dos utentes que têm seguimento nesse nível de cuidados. Por esse motivo, foi pedido ao utente/cuidador que, na data agendada para a entrevista, tivesse em sua posse os registos laboratoriais de RNI. Tendo em conta que se pretendia calcular o TAT dos seis meses precedentes à última RNI realizada (período em análise), eram necessárias:

  • a)

    a RNI realizada imediatamente antes da entrada no estudo;

  • b)

    todas as RNI datadas de até seis meses antes da última;

  • c)

    a RNI realizada imediatamente antes do período de seis meses considerado na alínea anterior.

Excluíram‐se 11 utentes para os quais não foi possível obter os dados necessários para cálculo do TAT (utentes que haviam mudado de laboratório ou que tiveram dificuldade em obter todos os resultados referentes ao período em análise). Um caso de FA recente com menos de duas determinações de RNI foi excluído por não ser possível o cálculo de TAT. Da mesma forma excluíram‐se dois utentes que haviam interrompido a medicação por tempo superior a sete dias (para realização de procedimentos invasivos).

Assim, incluímos para análise 74 dos 106 utentes com FA hipocoagulada com fármacos clássicos (70%). Colheram‐se pelo processo clínico informático e entrevista presencial os dados relativos à RNI, variáveis sociodemográficas (idade, género, escolaridade e cuidador) e clínicas (duração da FA e anticoagulação oral) – vide ANEXO I. Estes registos foram posteriormente introduzidos em base de dados construída para o efeito pelos investigadores, com recurso ao programa Microsoft Office Excel 2010®. O TAT foi calculado pelo método de Rosendaal, o qual consiste na estimativa da percentagem de dias em alvo terapêutico. Para o efeito foram usados os registos laboratoriais disponibilizados pelo utente; os cálculos foram feitos com recurso a folha de Excel disponibilizada pela INRPRO Healthcare System Solutions (http://www.inrpro.com/article.asp?id27).

O tratamento estatístico dos dados recolhidos foi efetuado com SPSS versão 21.0® para Microsoft Windows®. Para descrição das características da população foram calculadas para as variáveis contínuas as medidas apropriadas de tendência central e dispersão (média e desvio padrão ou mediana e percentis 25 e 75); para variáveis categóricas calcularam‐se as frequências absolutas e relativas. A exploração da relação entre TAT e as variáveis clínicas e sociodemográficas fez‐se com recurso aos seguintes testes estatísticos: correlação de Spearman, Mann‐Whitney U Test e Kruskal‐Wallis Test. Foi adotado nível de significância de 0,05.

No respeito pela lei e pelos princípios da confidencialidade e privacidade a utilização dos dados de saúde para os fins da presente investigação foi tornada possível pelo consentimento informado expresso por escrito pelos seus titulares ou, quando aplicável, pelos seus representantes legais. O anonimato dos participantes foi preservado, tendo‐se construído a base de dados sem elementos de identificação pessoal dos utentes. Tratando‐se de uma revisão casuística no âmbito da USFF, obteve‐se o parecer positivo do Conselho Técnico da USFF, a quem coube a supervisão do estudo e da sua integridade ética.

Resultados

A descrição das características sociodemográficas e clínicas consta da Tabela 1. A distribuição da duração da hipocoagulação foi bastante assimétrica: 16 utentes (21,6%) estavam hipocoagulados há menos de um ano, mas detetaram‐se valores extremos (máximo: 30 anos).

Tabela 1.

Descrição das características sociodemográficas

Características  Média±Desvio padrão 
Idade  74,7±9,1 anos 
   
  Frequência absoluta (Frequência relativa) 
Género feminino  43 (58,1%) 
EscolaridadeAnalfabetos1‐4 anos>4 anos  11 (14,9%)59 (79,7%)4 (5,4%) 
Existência de cuidador  23 (31,0%) 
  Mediana (P25; P75
Duração da FA*  3,2 anos (1,1; 6,95) 
Duração da hipocoagulação  2,7 anos (1,0; 6,0) 

FA: fibrilhação auricular; P25: percentil 25; P75: percentil 75.

*

Em um caso não foi possível determinar a duração da fibrilhação auricular.

Os resultados revelam um TAT mediano na ordem dos 65,3% (vide Figura 2).

Na pesquisa de associação entre TAT e as variáveis em estudo detetou‐se associação positiva e estatisticamente significativa somente com a duração da FA (ρ Spearman=0,477; p <0,001, R2=0,116) e da hipocoagulação (ρ Spearman=0,5; p <0,001, R2=0,087). Não se estabeleceu relação estatisticamente significativa com idade (ρ Spearman=0,094; p=0,425), género (p=0,08), escolaridade (p=0,763) e existência de cuidador (p=0,636).

Detetou‐se elevada colinearidade entre duração da FA e duração da hipocoagulação (ρ Spearman=0,851; p <0,001, R2=0,647).

Por último, a análise entre o subgrupo hipocoagulado há menos de um ano e o grupo hipocoagulado há um ou mais anos revelou diferenças estatisticamente significativas em termos de TAT: o TAT mediano foi significativamente inferior nos utentes hipocoagulados há menos de um ano (vide Figura 3).

Discussão

Os utentes da USFF medicados com hipocoagulantes clássicos apresentam TAT mediano de 65,3% (P25: 48,3%; P75: 86,8%), sobreponível aos valores médios da literatura para a região sul europeia (64%), mas aquém dos países do norte europeu (75%), o que poderá estar relacionado com diferentes modelos de monitorização da anticoagulação oral implementados nesses países8–17. O valor encontrado é ligeiramente inferior aos 70% definidos como «bom controlo» pela Sociedade Europeia de Cardiologia7. Estes resultados têm implicações clínicas prementes, apontando para a necessidade de realizar esforços adicionais, nomeadamente de melhoria na adesão terapêutica, envolvendo recursos comunitários e familiares, bem como na revisão de potenciais interações medicamentosas e alimentares. Em utentes com boa adesão, mas que se mantenham com fraco controlo, dever‐se‐á ponderar a substituição da varfarina ou acenocumarol por um dos novos ACO.

O ponto forte do estudo consiste em ser pioneiro na caracterização do TAT no contexto da prática clínica habitual de uma unidade de saúde portuguesa, no caso, uma unidade de saúde familiar em que a monitorização da anticoagulação oral é realizada por laboratórios hospitalares ou inseridos na comunidade. No entanto e tratando‐se de um estudo observacional, existem considerações importantes a tecer no que respeita a limitações e aos procedimentos que as visaram minorar. Abordar‐se‐ão em seguida os aspetos relacionados com a validade interna.

Começando pela possibilidade de confundimento ao qual estudos observacionais como o nosso são particularmente vulneráveis, julgamos existirem mecanismos biologicamente plausíveis que permitem explicar a associação encontrada entre TAT e duração da hipocoagulação. De facto, a correlação moderadamente positiva entre TAT e duração da hipocoagulação pode ser entendida com base no facto da terapêutica se iniciar em doses empíricas com necessidade de sucessivos ajustes posológicos e, portanto, de um período variável de tempo, até se atingir alguma estabilização e um melhor controlo da hipocoagulação. Dada a elevada colinearidade duração da FA e da anticoagulação oral, a associação detetada com a duração da FA será provavelmente um reflexo da sua relação com a duração da anticoagulação, no entanto, poderão existir fatores adicionais a contribuir para essa associação.

A duração da FA e da hipocoagulação explicam apenas 11,6 e 8,7% da variação do TAT. A variabilidade restante poderá ser atribuída à existência de outros factos explicativos, até porque há literatura que demonstra a influência de outros fatores no TAT, nomeadamente a acessibilidade aos locais de colheita e a comedicação com fármacos que interagem com os hipocoagulantes orais.

No entanto, não se pode excluir a existência de erro aleatório tipo II. Dado o reduzido número de participantes podemos ter tido poder insuficiente para detetar diferenças entre subgrupos das variáveis detetadas (por exemplo quanto à escolaridade).

No que respeita a eventual viés de seleção há a considerar que excluímos da análise cerca de 30% da população, no entanto: a) nos excluídos por terem falecido, nenhum teve como causa de óbito eventos tromboembólicos ou hemorrágicos; b) numa análise post‐hoc constatamos que os 11 indivíduos excluídos (por não terem disponibilizado todas as RNI para cálculo de TAT) não diferiam dos indivíduos incluídos no que respeita às suas características sociodemográficas e clínicas.

Ainda a propósito do potencial viés de seleção, é certo que a identificação do caso teve como ponto de partida a listagem de utentes codificados com o problema de saúde fibrilhação/flutter auricular (K78), mas tentamos minimizar este problema alargando a triagem aos utentes listados com outros códigos da Classificação Internacional de Cuidados Primários, os quais nos apercebemos que poderiam ter sido erradamente utilizados para codificar esse problema de saúde; tal foi o caso da triagem das listas de utentes com codificação de taquicardia paroxística (K79), arritmia cardíaca (K80) e outras doenças circulatórias (K99).

Por último, a prevalência de FA na USFF foi calculada em 1,73%, na população de utentes com 40 ou mais anos – distante dos 2,5% estimados para a população portuguesa com 40 ou mais anos no estudo de referência a nível nacional, o estudo FAMA1. O subdiagnóstico pode constituir viés de seleção se tiver afetado preferencialmente os utentes com características que se venham a relacionar com pior (ou melhor) TAT. Não dispomos de dados que nos permitam confirmar ou refutar esta hipótese.

A RNI é uma medida estandardizada entre laboratórios, pelo que o TAT determinado no estudo não sofre de viés de medição. Não podemos, no entanto, refutar eventual viés de memória em variáveis colhidas a partir das informações prestadas pelo utente ou seu cuidador, nomeadamente quanto à data de diagnóstico e de início da hipocoagulação; tentamos minimizar este problema através do cruzamento das informações prestadas pelo utente com as dos registos clínicos, tendo‐se usado as primeiras apenas quando a data de diagnóstico e de hipocoagulação não estavam objetivamente registadas no processo clínico – poderá, no entanto, persistir viés de informação por falibilidade desse registo, até porque ele próprio poderá ter advindo de informação prestada pelo utente.

A uniformização de procedimentos relativos à entrevista presencial e a elaboração de folha estandardizada de recolha de dados foi adotada para reduzir o viés de entrevistador.

Conclusões

Em conclusão, o estudo revela que o TAT na unidade funcional dos autores ronda os 65%, encontrando‐se abaixo do desejável. A duração da FA e da hipocoagulação explicam uma pequena parte da variação do TAT.

Estes resultados têm implicações clínicas evidentes: desenvolvimento de esforços adicionais para a adesão terapêutica, a revisão de interações medicamentosas, a educação quanto a interações alimentares e a ponderação de mudança para novos ACO em que haja fraco controlo apesar de boa adesão.

Nos cuidados de saúde primários a comparação do TAT em unidades funcionais com e sem capacidade própria de monitorização laboratorial do controlo da hipocoagulação será também importante em termos de políticas de saúde, numa altura em que se discute a possibilidade de integração desse serviço nas carteiras de serviços das unidades de saúde familiar.

Seria importante a realização de futuros estudos com mais participantes e que estudem outros fatores explicativos da variabilidade restante do TAT, nomeadamente quanto à acessibilidade aos locais de colheita e quanto aos diferentes modelos de monitorização da anticoagulação oral (nas unidades dos cuidados de saúde primários, laboratórios na comunidade, laboratórios hospitalares ou pelo utente usando aparelhos apropriados); outros fatores a considerar serão as características individuais de adesão à terapêutica, as comorbilidades e potenciais interações medicamentosas.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Bibliografia
[1]
D. Bonhorst, M. Mendes, P. Adragão, et al.
Prevalência de fibrilhação auricular na população portuguesa com 40 ou mais anos. Estudo FAMA.
Rev Port Cardiol, 29 (2010), pp. 331-350
[2]
J.E. O’Connell, C.S. Gray, J.M. French, et al.
Atrial fibrillation and cognitive function: case‐control study.
J Neurol Neurosurg Psychiatry., 65 (1998), pp. 386-389
[3]
K. Carroll, A. Majeed.
Comorbidity associated with atrial fibrillation: a general practice‐based study.
Br J Gen Pract., 51 (2001),
[4]
M. Sudlow, R. Thomson, R.A. Kenny, et al.
A community survey of patients with atrial fibrillation: associated disabilities and treatment preferences.
Br J Gen Pract., 48 (1998), pp. 1775-1778
[5]
M.C. Sá, M.J. Balsa.
Anticoagulação oral nos muito idosos e seus determinantes clínicos.
Rev Port Med Geral Fam., 28 (2012), pp. 168-176
[6]
P. Ascensão.
Fibrilhação auricular e prevenção do tromboembolismo. Estudo numa população de utentes de centros de saúde.
Rev Port Clin Geral., 22 (2006), pp. 13-24
[7]
J.A. Camm, G.Y. Lip, R. de Caterina, et al.
2012 focused update of the ESC Guidelines for the management of atrial fibrillation. An update of the 2010 ESC Guidelines for the management of atrial fibrillation. Developed with the special contribution of the European Heart Rhythm Association.
Eur Heart J., 33 (2012), pp. 2719-2747
[8]
Y. Wan, C. Heneghan, R. Perera, et al.
Anticoagulation control and prediction of adverse events in patients with atrial fibrillation: a systematic review.
Circ Cardiovasc Qual Outcomes., 1 (2008), pp. 84-91
[9]
K. Okumura, T. Komatsu, T. Yamashita, et al.
Time in the therapeutic range during warfarin therapy in Japanese patients with non‐valvular atrial fibrillation. A multicenter study of its status and infuential factors.
Circ J., 75 (2011), pp. 2087-2094
[10]
M. Wieloch, A. Själander, V. Frykman, et al.
Anticoagulation control in Sweden: reports of time in therapeutic range, major bleeding, and thrombo‐embolic complications from the national quality registry AuriculA.
Eur Heart J., 32 (2011), pp. 2282-2289
[11]
H.G. Van Spall, L. Wallentin, S. Yusuf, et al.
Variation in warfarin dose adjustment practice is responsible for differences in the quality of anticoagulation control between centers and countries: an analysis of patients receiving warfarin in the randomized evaluation of long‐term anticoagulation therapy (RE‐LY) trial.
Circ J., 126 (2012), pp. 2309-2316
[12]
O.C. Melamed, G. Horowitz, A. Elhayany, et al.
Quality of anticoagulation control among patients with atrial fibrillation.
Am J Manag Care, 17 (2011), pp. 232-237
[13]
A.J. Rose, E.M. Hylek, A. Ozonoff, et al.
Patient characteristics associated with oral anticoagulation control: results of the Veterans AffaiRs Study to Improve Anticoagulation (VARIA).
J Thromb Haemost, 8 (2010), pp. 2182-2191
[14]
A.J. Rose, A. Ozonoff, L.E. Henault, et al.
Warfarin for atrial fibrillation in community‐based practice.
J Thromb Haemost, 6 (2008), pp. 1647-1654
[15]
G. Dolan, L.A. Smith, S. Collins, et al.
Effect of setting, monitoring intensity and patient experience on anticoagulation control: a systematic review and meta‐analysis of the literature.
Curr Med Res Opin., 24 (2008), pp. 1459-1472
[16]
J. Ansell, J.J. Caro, M. Salas, et al.
Quality of clinical documentation and anticoagulation control in patients with chronic nonvalvular atrial fibrillation in routine medical care.
Am J Med Qual, 22 (2007), pp. 327-333
[17]
S.J. Connolly, M.D. Ezekowitz, S. Yusuf, et al.
Dabigatran versus warfarin in patients with atrial fibrillation.
N Engl J Med., 361 (2009), pp. 1139-1151
[18]
E. Cruz, M. Campos.
Clínicas de anticoagulação, situação atual e perspetivas futuras.
Rev Port Cardiol., 31 (2012), pp. 51-57
[19]
F. Ferreira, E. Antunes, R.C. Neves, et al.
Telemonitorização de INR: eficácia e segurança de um sistema de avaliação em 453 doentes.
Acta Med Port., 25 (2012), pp. 297-300
[20]
W.L. Baker, D.A. Cios, S.D. Sander, et al.
Meta‐analysis to assess the quality of warfarin control in atrial fibrillation patients in the United States.
J Manag Care Pharm, 15 (2009), pp. 244-252
Copyright © 2014. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Baixar PDF
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.