O artigo atrás publicado1 aborda um assunto relevante, sobretudo após a introdução dos novos anticoagulantes (NOAC): a ocorrência de acidentes tromboembólicos (AT) em doentes com fibrilhação auricular (FA) sob terapêutica anticoagulante oral.
Já era reconhecida a persistência do risco tromboembólico nos doentes medicados com antivitaminas K (AVK), atribuível ao facto destes se encontrarem durante períodos mais ou menos prolongados fora dos níveis terapêuticos do INR (International Normalized Ratio)2. As causas poderão ser variadas, entre as quais: má aderência ao tratamento, deficiente controlo clínico da posologia ou ocorrência de interações medicamentosas ou alimentares. A adequação desta terapêutica tem sido sobretudo baseada na determinação do TTR (Time in Therapeutic Range), que mede a percentagem de tempo em que o INR está dentro dos limites preconizados.
Menos conhecida tem sido a incidência destas complicações em doentes medicados com NOAC, em parte devida à curta duração do seu efeito terapêutico, tornando crítica a omissão de uma ou mais tomas2.
Os fatores subjacentes à ocorrência de AT sob terapêutica anticoagulante, poderão estar relacionados com o doente, como a interrupção de uma ou mais tomas ou o abandono do tratamento – factos que podem escapar ao conhecimento do médico, que tem poucos meios para monitorizar a aderência do doente. Noutros casos, a falha pode ser clínica, como erros de posologia ou interrupção inadequada, por ignorância ou receio de complicações hemorrágicas; poderá ainda resultar da suspensão demasiado prolongada da medicação antes de uma cirurgia ou outra intervenção3.
As interações medicamentosas ou alimentares poderão estar na base da ocorrência de tromboembolismo se induzirem redução do efeito anticoagulante do medicamento; este problema, importante na utilização das AVK, foi minimizado nos NOAC, em que são pouco frequentes ou inexistentes as interferências com outros fármacos ou alimentos3.
Há muito que são reconhecidas as limitações das AVK, incluindo uma estreita janela terapêutica, frequentes interações farmacológicas ou alimentares e necessidade de controlo laboratorial frequente. Por estas razões, a manutenção de níveis terapêuticos adequados tem constituído um desafio difícil de ultrapassar, com consequências deletérias, nomeadamente a ocorrência de eventos tromboembólicos.
Na prevenção dos AT é importante informar o doente que quando inicia um anticoagulante deverá mantê‐lo de forma indefinida – no entanto, para os AVK constatou‐se que essa persistência era baixa – ao fim de um ano, 21 a 50% dos doentes tinha interrompido essa medicação4.
Os AT sob terapêutica com AVK são atribuídos na maioria à ocorrência de períodos em que o INR é inferior ao limite da janela terapêutica (< 2 U); daí terem‐se procurado índices para avaliação da qualidade da anticoagulação, tendo o TTR sido o mais utilizado. O controlo da anticoagulação tem de atender a múltiplos fatores, alguns dependentes do doente, outros relacionados com a qualidade dos serviços clínicos.
Com base nos doentes incluídos no estudo AFFIRM5, Apostolakis S, et al. procuraram definir um score baseado em dados clínicos e demográficos dos doentes com FA, que previsse a probabilidade de ocorrer deficiente controlo da anticoagulação com AVK. De entre os parâmetros clínicos avaliados, os autores, através de um modelo de regressão linear, identificaram os preditores independentes de TTR baixo: sexo feminino, idade < 60 anos, pertença a minorias étnicas, tabagismo, mais de duas comorbilidades, medicação com amiodarona. Com base nos coeficientes de regressão, os autores propuseram um score para predizer a qualidade da anticoagulação6.
Neste score, designado pelo acrónimo inglês SAMe‐TT2R2 (sex, age, medical history; treatment, tobacco, race), a pertença a uma minoria ética ou o tabagismo correspondem a dois pontos, enquanto a idade < 60 anos, mais de duas comorbilidades, sexo feminino ou estratégia de controlo do ritmo (uso de amiodarona) correspondiam a um ponto. O sistema foi validado em populações com FA, internas e externas (do «mundo‐real»), tendo os autores concluído, com base num cut‐off médio do TTR de 0,65, que uma pontuação de 0 ou 1 predizia bom comportamento no uso de AVK, enquanto scores ≥ 2 pressagiavam deficiente controlo. Este score poderá ser útil antes do início da terapêutica com AVK, identificando os doentes suscetíveis de mau controlo da anticoagulação, informação que poderá ser útil para identificar os doentes que requerem um seguimento mais regular e um aconselhamento apropriado.
A introdução dos NOAC pareceria minimizar o problema da aderência devido à comodidade da utilização de doses fixas, sem necessidade da monitorização dos níveis de coagulação, menor interferência com outros medicamentos e menor risco de hemorragias.
No entanto, a prática «no mundo real», mostrou que isso nem sempre acontecia – o elevado preço e o receio das complicações, sobretudo hemorrágicas, levou a que alguns doentes ou os seus médicos, descontinuassem estes medicamentos ou os substituíssem por outros menos eficazes mesmo em situações de elevado risco.
Por outro lado, o facto de estes doentes não precisarem de ser vistos a intervalos regulares para monitorização dos níveis de coagulação, condiciona menor vigilância clínica e, portanto, menor capacidade do médico avaliar se estão ou não a cumprir a terapêutica7.
Os testes específicos para avaliação dos níveis séricos dos NOAC são realizados apenas num pequeno número de centros especializados e, dada a curta semivida destes fármacos, dão informação sobre a aderência limitada a um curto período antes do teste8.
Os ensaios clínicos com NOAC em doentes com FA sugerem que anualmente em 1,0 a 2,0% poderá ocorrer um AVC, levantando sérias dificuldades pelo facto de estarem anticoagulados, o que é contraindicação para a terapêutica trombolítica, em geral utilizada nestas situações9.
A avaliação da aderência dos doentes à terapêutica com NOAC mostrou resultados variáveis10,11 – os estudos prospetivos são escassos, tendo os níveis de aderência encontrados sido, em geral, elevados (de 70 a 98%). Como fatores de risco para a não aderência foram encontrados fatores como o nível educacional, a situação de emprego, o isolamento social ou alterações cognitivas. Os resultados dos estudos podem, porém, ter sido influenciados pela seleção de doentes e pela apertada vigilância clínica a que estes são sujeitos, podendo não traduzir a prática clínica.
Estudos observacionais ou pequenas séries, mais próximos do mundo real, mostraram resultados mais variáveis (entre 57 e 96%)7, o que deve resultar, em parte, de diferenças na definição de aderência e nos métodos utilizados para a determinar. Muitos destes estudos não foram capazes de identificar os determinantes da aderência ou mostraram resultados díspares.
Considera‐se hoje que na avaliação destes doentes deve ser levada em conta não só a «aderência» (percentagem de doses de um medicamento tomadas como prescrito) mas também a «persistência» (número de dias durante os quais foi tomada a medicação)12. Faltam, no entanto, dados para a sua avaliação rigorosa, tendo sido raros os estudos em que se utilizaram meios objetivos de avaliação (por exemplo, sistemas eletrónicos para determinar a ingestão dos comprimidos).
Relativamente aos estudos comparativos sobre a aderência (NOAC versus AVK), os dados são igualmente limitados e os resultados não uniformes – diversos não mostraram diferenças significativas entre as duas modalidades terapêuticas7,10,11,13.
Alguns dados disponíveis sugerem haver menores taxas de descontinuação da terapêutica nos doentes que tomavam NOAC relativamente aos medicados com VKA; faltam, no entanto, elementos para se saber se a esta aderência corresponde uma tomada correta da medicação.
Um estudo de Beyer‐Westendorf14 verificou, em mais de 7265 doentes com FA, que o rivaroxabano e o dabigatrano mostraram melhor persistência do que uma VKA (avaliação entre 180 e 360 dias), mostrando, por sua vez, o rivaroxabano melhor persistência do que o dabigatrano.
O estudo atrás publicado chega essencialmente a três conclusões, nem todas concordantes com o encontrado na literatura:
- 1)
Nos doentes com AVC isquémico, apesar da anticoagulação oral, a má aderência à terapêutica verificou‐se mais frequentemente nos doentes sob NOAC do que nos doentes sob AVK;
- 2)
A grande maioria dos doentes sob AVK apresentava‐se com INR subterapêutico na admissão;
- 3)
Na maioria dos doentes com AVC cardioembólico, apesar do tratamento com um NOAC, esta ocorrência estava associada a uma dosagem subterapêutica ou a uma má aderência à terapêutica.
O estudo é observacional, baseando‐se em doentes internados num Serviço de Neurologia com o diagnóstico de AVC isquémico, no contexto de FA não valvular. Como os autores indicam, apresenta algumas limitações como a pequena dimensão da amostra, para além de ser um estudo observacional, sujeito à subjetividade inerente aos questionários utilizados e, neste caso, às dificuldades colocadas pela gravidade da situação clínica, que, muitas vezes, impede a colaboração do doente.
O resultado mais inesperado foi o nível encontrado para a não aderência à terapêutica dos doentes com NOAC (quase 40%), significativamente maior do que nos medicados com AVK, sugerindo graves falhas relativamente ao aconselhamento por parte dos clínicos no uso dos novos fármacos.
Conflito de interessesO autor declara não existirem conflitos de interesses.