Com o Registo Nacional de Síndromes Coronárias Agudas (SCA) agora publicado, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia coloca‐se entre um número restrito de países europeus que podem avaliar a evolução do tratamento e de resultados de uma situação clínica ao longo de vários anos. O presente artigo apresenta os resultados de 15 anos do registo prospetivo contínuo de SCA com 45 141 registos1. Trata‐se de um conhecimento único da prática clínica em Portugal ao longo dos anos com excelente representatividade dos vários hospitais e regiões do país.
Tal como pretendido quando se implanta um registo contínuo, os resultados permitem avaliar a evolução das diversas formas de tratamento e a sua influência na mortalidade. Permite, igualmente, a avaliação da informação sobre a implantação das recomendações das guidelines na prática clínica. O cumprimento dessas recomendações sobre o tratamento médico na fase intra‐hospitalar das SCA aumentou de 10,7% em 2002 para 56,3% em 2016.
Durante 2002, com 7348 episódios registados, o diagnóstico na admissão hospitalar de enfarte com elevação do segmento ST (EMCST) foi de 45,4%, 38,9% sem supra de ST (NSTEMI) e 15,7% de angina instável2. Até dezembro de 2008, foram incluídos 22 482 doentes. Curiosamente, a percentagem de doentes com EMCST era semelhante (45,4%), a percentagem com NSTEMI (41,4%) ligeiramente superior e de angina instável ligeiramente inferior (13,1%)3).
A terapêutica de reperfusão no EMCST foi de 60,5% em 2002 sobretudo com fibrinolíticos, aumentou para 75% em 2008 com aumento da angioplastia primária e é atualmente de 84% (somente 5,2% de casos com fibrinólise). A taxa de angioplastia primária nos enfartes com supra de ST é atualmente excelente (94,8%). Nos SCA sem elevação de ST (NSTEMI) a estratégia invasiva aumentou progressivamente (atualmente 85%), bem como as taxas de angioplastia (53%).
A terapêutica antitrombótica foi feita inicialmente com heparina e aspirina. Verificou‐se posteriormente aumento progressivo de dupla antiagregação (de 23,1% para 91,7%) e de inibidores P2Y12 (de 23,9% para 92,6%) com redução cada vez maior do uso dos inibidores da glicoproteína IIb/IIIa. Ao longo dos anos a heparina não fracionada (34,4% para 18,9%) foi progressivamente substituída pela heparina de baixo peso molecular (atualmente 55,9% de enoxaparina e 16,3% de fondaparinux).
A taxa de uso de outros fármacos com impacto positivo no prognóstico (bloqueadores beta, inibidores da enzima de conversão, estatinas e bloqueadores do sistema renina‐angiotensina) tem vindo progressivamente a aumentar, seguiu as recomendações/guidelines internacionais.
A taxa de reperfusão melhorou significativamente entre 2002 (61,7%) e 2016 (84%), com redução significativa de fibrinólise (75,7% para 5,2%) e aumento marcado de angioplastia primária (24,3% para 94,8%).
O melhor tratamento ao longo dos anos deveria conduzir à redução da mortalidade e foi o que se verificou. Em 20022, a mortalidade hospitalar foi de 9,8% no EMCST com 48,1% de enfartes anteriores, 24% no NSTEMI e 29% na angina instável. No fim de 20083, a mortalidade passou a ser 5,9% no EMCST com 49,4% de enfartes anteriores e nas últimas estatísticas no fim de 20161 a mortalidade intra‐hospitalar nos enfartes anteriores (46,9%) foi de 3,4%.
São exemplos mais significativos neste trabalho a evolução da angioplastia primária na fase aguda de enfarte com supra de ST e a redução significativa de mortalidade hospitalar ao longo dos anos. Mas outros aspetos como o uso e o tipo de antitrombóticos, o timing da coronariografia nos enfartes não Q, o uso de medicamentos com influência prognóstica, etc. podem ser avaliados. Nunca esse tipo de informação em tão larga escala tinha sido disponibilizado em Portugal.
É fundamental fazer o que esta publicação pretendeu ao ser agora publicada1: a análise crítica dos resultados. Pretendeu‐se, sobretudo, avaliar se é possível melhorar os resultados: o acesso mais rápido dos doentes aos cuidados médicos (fase pré‐hospitalar ‐ Via Verde que em 2002 era apenas de 2,7% e atualmente em percentagem ainda baixa de 38,6%) mais adequados; a responsabilização contínua dos médicos (entre os mais novos) pela implantação das guidelines atualizadas (ainda com espaço para melhoria); o aumento da disponibilidade para angioplastia primária nas várias regiões do país; o aumento da referenciação para reabilitação cardíaca (atualmente de apenas 46,2%) sobretudo após a alta, etc.
Os registos são também uma fonte potencial de investigação clínica e já foram publicados inúmeros estudos na sequência do registo nacional de SCA como os autores referem1–3. Muitos outros estudos epidemiológicos poderiam ser efetuados, possibilidade ao acesso de todos os investigadores do registo que são os médicos dos vários hospitais como mencionado no artigo.
Tal como referido pelos autores1, esses registos deviam ser obrigatórios em todos os hospitais com inclusão consecutiva de todos os doentes admitidos. Eventualmente poderia haver um incentivo financeiro para o seguimento extra‐hospitalar. Talvez no futuro, com a implantação obrigatória de registos clínicos computadorizados nos hospitais públicos, esse desiderato venha a ser conseguido.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.