A carga global de doença é uma medição complementar das estatísticas tradicionais de saúde (mortalidade e caracterização da produção hospitalar) que não traduzem o impacto de desfechos não fatais da doença ou lesão ao longo da vida. O interesse pela medição da qualidade de vida relacionada com a saúde manifestou‐se em 1970, no desenvolvimento do «índice do estado de saúde», mas o termo «ano de vida ajustado pela qualidade» (QALY) foi usado primeiro em 1976, para indicar uma unidade de medição de saúde que combina duração e qualidade de vida1. Para superar limitações dos QALY, foram desenvolvidos os «anos de vida ajustados por incapacidade» (DALY), que no léxico de saúde é a medida do impacto da doença, em tempo, e que combina a quantidade de saúde perdida devido à doença (YLD) ou à morte prematura (YLL). O índice YLL é uma medida de mortalidade prematura, calculada em relação à longevidade potencial, definida numa tabela padrão de esperança média de vida que tem sido ajustada à evolução da expetativa de vida, e não em relação ao cut‐off de 70 anos, os anos potenciais de vida perdidos, ou 75 anos, em alguns países. O índice YLD corresponde aos anos vividos com incapacidade, ponderada, em que o ponderador (peso de invalidez) depende da gravidade da doença numa escala de zero (saúde) a um (morte). Esta métrica (DALY), preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Banco Mundial, foi aplicada no primeiro estudo Global Burden Disease (GBD) 1990, ou «carga global da doença», e no Relatório de Desenvolvimento Mundial de 1993, que teve grande impacto na política de saúde, na medida em que evidenciou a carga oculta e negligenciada de algumas áreas da saúde2.
O objetivo do projeto GBD é obter medidas comparáveis e abrangentes de saúde da população entre os países (diagnóstico e monitorização de tendências) e contribuir para decisões estratégicas a nível mundial (OMS, ONU), regional e nacional. Um dos objetivos específicos foi usar uma métrica que pudesse ser utilizada para avaliar o custo‐efetividade das intervenções, em termos do custo por unidade da carga de doença evitada3. No entanto, o constructo do estudo GBD é a perda de saúde, não o rendimento, nem a perda de produtividade. Os aspetos financeiros, da despesa com a saúde e a relação com os resultados (ganhos em saúde) não têm sido objeto do estudo GBD mas, como os sistemas de saúde são avaliados em termos de acesso, qualidade e proteção financeira4, é provável que no futuro venham a integrar as medidas de carga da doença.
Com a mesma abordagem do GBD 1990, maior âmbito, um consórcio de muitos colaboradores, refinamentos metodológicos e atualização de dados (doenças, fatores de risco, regiões, países), foi implementado o GBD 2010 study5. O projeto, descrito como um esforço «sobre‐humano, um modo de vida mais propriamente do que mais um grande projeto, uma prova de fogo, uma tarefa hercúlea ou missão impossível» e em que poucos acreditaram no início que poderia ser feito, foi realizado sob a coordenação do Instituto de Métrica e Avaliação em Saúde (IHME) (Seattle, Universidade de Washington, EUA) e envolveu quase 500 investigadores, mais de 300 instituições em 50 países6. Este desafio técnico e organizacional, posto em prática com uma métrica que abarca uma noção amplamente partilhada de saúde, de epidemiologia descritiva, mas que permite deduzir causas para as diferenças e tendências, concretizou a ideia de se conseguir uma comparabilidade internacional. Os dados do GBD 2010 foram úteis para aumentar o conhecimento do perfil de saúde a nível global, regional e nacional e, nessa medida, uma ferramenta importante para pensar de um modo abrangente, inovador no domínio da saúde global da população. Com avanços na metodologia que permitem medições mais robustas e a continuação da parceria entre The Lancet e o IHME para publicações do GBD 2013 e do GBD 2015, as atualizações das estimativas da carga das doenças no mundo (mortalidade global7, DALY8, YLD9 e fatores de risco10) constituem um recurso importante dos sistemas de informação. Neste sentido, são uma base essencial para quantificar o progresso na saúde global. Ao nível de cada país, permite medir sucessos, identificar lacunas, definir novas prioridades e ajudar decisores políticos, ONG, profissionais e outros parceiros a melhorar a saúde da população.
A investigação da carga da doença tem sido pouco desenvolvida em Portugal, mas alguns estudos têm contribuído para enriquecer a base de evidências e os debates sobre o modo de aumentar a saúde. Em destaque, a carga da doença atribuível à hipercolesterolemia11 e à fibrilhação auricular12, a carga global da doença na região Norte13 e a carga global de doença atribuível a fatores de risco14 que, revelando novas necessidades e problemas de saúde, influenciaram a definição dos planos regional (ARSNorte) e locais (agrupamentos de centros de saúde) de saúde. O artigo de Henriques et al., publicado nesta revista15, confirmou que os YLL contribuem muito mais do que os YLD devidos a doença isquémica do coração (DIC) não fatal – enfarte do miocárdio, angina de peito, insuficiência cardíaca – para a carga global da DIC (DALY). A proporção YLD/DALY (11,7%), para ambos os sexos, foi idêntica à estimativa para a Europa Ocidental (11,0%) em 2010 que quase duplicou a estimativa de 1990 (6,6%), enquanto globalmente (21 regiões no mundo) o indicador da DIC não fatal (YLD) foi 6% nos homens e 8% nas mulheres, evidenciando as desigualdades entre países e regiões do mundo16. Os autores aplicaram metodologias definidas em trabalhos internacionais relevantes nesta área, com dados de cinco das sete regiões da NUTS II. Algumas limitações são alertas para a necessidade de reforçar os sistemas de informação em saúde. As limitações relativas à mortalidade e cálculo dos YLL residem no facto das causas de morte, numa percentagem significativa, serem devido a «sintomas, sinais, exames anormais, causas mal definidas» (8,7% em 2013), o que limita, em parte, algumas comparações quando são excluídas da análise e, quando reclassificadas, dependem da validade da abordagem para redistribuir os «códigos‐lixo» (garbage codes). O indicador YLD pode subestimar os episódios de internamento por SCA, porque integram as estatísticas da morbilidade hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, mas não as de todos os hospitais do país. A utilização de estudos realizados noutro país (Espanha) para estimar a prevalência da angina estável e da insuficiência cardíaca é indicativa da falta de dados nacionais recentes. No futuro, perante os avanços computacionais, será desejável uma solução de Big Data, o uso de tecnologias e processos que permitam lidar os dados numa combinação de volume (grandes quantidades)+velocidade+variedade (diversidade de informações) se essa informação trouxer benefícios significativos – valor.
No mundo, de 1990‐2013, a esperança de vida à nascença aumentou 6,2 anos (IC95% 5,6‐6,6) e a esperança de vida saudável à nascença aumentou em média 5,4 anos (IC95% 4,9‐5,8). O padrão foi consistente em 21 regiões do mundo em 2013, mas cerca de um oitavo da esperança de vida estava associada a incapacidade. Em Portugal, o tempo de vida com incapacidade, em 1990, correspondeu a 12,5 e 14,0% da esperança média de vida, respetivamente para os homens e mulheres, enquanto em 2013 correspondeu a 12,9 e 14,7%, isto é, aproximadamente a um oitavo e a um sétimo da esperança de vida17. A saúde global está a melhorar em todos os países, mas a percentagem da deficiência na carga total da doença está a aumentar devido a um declínio mais lento das taxas de incapacidade em comparação com a diminuição da mortalidade. Especificamente, em 2015, as doenças cardiovasculares (DCV) lideraram os DALY globais das doenças não transmissíveis (DNT) (23,5%) e no período 2005‐2015 a variação percentual para todas as idades foi, respetivamente, 0,1, 11,0, 17,7 e 28,0 para a doença cerebrovascular, DIC, cardiopatia hipertensiva e fibrilhação auricular8. Na componente YLD, o grupo das DCV justificou apenas 7% dos YLD das DNT, e no período 2005‐2015 a variação percentual foi 20,7, 28,0 e 30,2, respetivamente para a doença cerebrovascular, fibrilhação auricular e DIC. Estes dados justificam‐se pelo envelhecimento da população, a transição epidemiológica com o predomínio das DNT e a melhoria socioeconómica da população, capaz de viver mais anos com incapacidades9. Apesar dos avanços, os sistemas de saúde enfrentam novos desafios na resposta às necessidades, aplicação dos recursos e adaptação das infraestruturas para lidar com vidas mais longas mas vividas com incapacidade.
Uma observação final sobre a importância do IHME que quantifica a perda de saúde no mundo. O GBD study é um consórcio com mais de 1900 colaboradores em 125 países, que identifica os maiores problemas de saúde em 195 países e territórios, 300+ doenças, lesões e fatores de risco. O projeto GBD produziu as estatísticas mais válidas da saúde global até à data, quer a um nível nacional quer ao nível global, evidenciando desigualdades e antevendo desafios para transformar a saúde e o bem‐estar. O primeiro é aumentar o acesso a dados de qualidade para o cálculo dos DALY, quer da mortalidade (certificação das causas de morte), quer da morbilidade, a componente da carga invisível da doença (difícil de estimar para muitas doenças e suscetível de vieses e incertezas)18 e na avaliação de risco comparativo (constructo e modelação para a estimativa da carga da doença atribuível aos fatores de risco)10,19. Outro desafio é reforçar a investigação das ligações (links) entre os diferentes objetivos para o desenvolvimento e medir o efeito dos fatores com mais impacto na saúde, e atuar de acordo com o conhecimento. O GBD study reforça as evidências e, quando atualiza a informação, pode funcionar como «auditoria» dos dados da saúde global e, no futuro, da consecução dos objetivos, desdobrados em metas, mais diretamente relacionados com a saúde, aprovados pelos líderes mundiais na sede da ONU em 2015 – «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável»20. «Os dados por si só não previnem doenças ou salvam vidas, mas mostram onde os governos precisam de agir para fortalecer os seus sistemas de saúde e proteger as pessoas dos efeitos potencialmente devastadores dos custos dos cuidados de saúde» disse Margaret Chan, a diretora‐geral da OMS.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.