A válvula aórtica quadricúspide é uma malformação rara, com uma incidência estimada de 0,003 a 0,043% de todas as cardiopatias congénitas. Surge habitualmente como uma anomalia congénita isolada, podendo igualmente estar associada a outras malformações, sendo as mais frequentes as anomalias das artérias coronárias. A tecnologia actual permite o diagnóstico não invasivo na grande maioria das situações. A sua história natural é a evolução para a insuficiência, rara antes da idade adulta.
ObjectivosRevisão dos casos de válvula aórtica quadricúspide diagnosticados nos últimos 10 anos num centro terciário de Cardiologia Pediátrica.
Material e MétodosRevisão retrospectiva do processo clínico dos doentes aos quais foi detectada uma válvula aórtica quadricúspide, entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2009.
ResultadosNos últimos 10 anos, foram diagnosticados quatro casos de válvula aórtica quadricúspide, em crianças com idades compreendidas entre os 6 meses e os 8 anos, duas do sexo masculino. Em três casos, os quatro folhetos eram de dimensões semelhantes, que é o achado mais frequente. Duas das válvulas eram normofuncionantes e duas apresentavam insuficiência mínima. Todos os doentes apresentavam outras malformações cardíacas associadas (uma comunicação interauricular, duas comunicações interventriculares, uma estenose supra-valvular aórtica e uma válvula pulmonar quadricúspide). Um doente tinha também o diagnóstico de Síndrome de Williams. Com um tempo de seguimento mediano de 2 anos [0 – 9], todos os doentes se mantiveram assintomáticos e não requereram tratamento médico ou cirúrgico para a válvula aórtica.
ConclusãoO diagnóstico de válvula aórtica quadricúspide é raro, sobretudo em idade pediátrica, quando a maioria dos doentes são assintomáticos e apresentam válvulas normofuncionantes. Nesta casuística, metade apresentava insuficiência aórtica mínima. Ao contrário do que está descrito na literatura, todos os doentes apresentavam malformações cardíacas concomitantes. Descrevemos pela primeira vez a associação com a Síndrome de Williams. Estes doentes deverão manter seguimento em ambulatório, de forma a detectar atempadamente o aparecimento ou agravamento de alterações funcionais e permitir uma intervenção terapêutica oportuna.
Quadricuspid aortic valve is a rare malformation, with an estimated incidence of 0.003 to 0.043% of all congenital heart disease. It usually appears as an isolated congenital anomaly, but may also be associated with other malformations, the most common being coronary artery anomalies. Current technology enables noninvasive diagnosis in most cases. This entity's natural history is progression to valve regurgitation, which is rare before adulthood.
ObjectiveCase review of quadricuspid aortic valve patients diagnosed in the last 10 years in a tertiary pediatric cardiology center.
MethodsRetrospective chart review of patients diagnosed with quadricuspid aortic valve between January 2000 and December 2009.
ResultsOver the past 10 years, four cases of quadricuspid aortic valve were diagnosed in children aged between 6 months and 8 years, two male. In three cases, the four leaflets were of similar size, which is the most common finding. Two of the valves functioned normally and two had minimal regurgitation. All patients had associated cardiac malformations (one atrial and two ventricular septal defects, one supravalvular aortic stenosis and one quadricuspid pulmonary valve). One patient was also diagnosed with Williams syndrome. During a median follow-up of 2 years (0-9), all patients remained asymptomatic and none required medical or surgical treatment of the aortic valve.
ConclusionDiagnosis of quadricuspid aortic valve is rare, especially in children, since most patients are asymptomatic and have normally functioning valves. In this study, half the patients had minimal aortic regurgitation. Contrary to what is described in the literature, all patients had concomitant cardiac malformations. We provide the first description of this entity's association with Williams syndrome. Clinical follow-up should be maintained in these patients in order to promptly detect the onset or worsening of functional alterations and to enable appropriate therapeutic intervention.
A válvula aórtica quadricúspide é uma malformação cardíaca rara, estimando-se uma incidência de 0,0031 a 0,043%2 de todas as cardiopatias congénitas.
Surge habitualmente como uma anomalia congénita isolada1–3, podendo igualmente estar associada a outras malformações. Destas, as mais frequentes são as anomalias das artérias coronárias4,5.
Graças aos avanços tecnológicos, actualmente é quase sempre possível fazer-se o diagnóstico de forma não invasiva.
Existem cerca de 200 casos descritos na literatura, a maioria dos quais em adultos. A maior compilação de casos publicada até à data incluía 184 doentes, com idades que variavam entre os 2 e os 84 anos, e ligeiro predomínio do sexo masculino5. As séries de casos compostas por doentes exclusivamente em idade pediátrica são escassas e de pequeno tamanho6.
A importância da detecção atempada desta malformação justifica-se pela sua frequente evolução para a insuficiência aórtica6,7 que apesar de rara durante a infância e adolescência, acaba por se manifestar durante a idade adulta, podendo obrigar a tratamento cirúrgico1,8.
ObjectivosRevisão dos casos de válvula aórtica quadricúspide diagnosticados nos últimos 10 anos num centro terciário de Cardiologia Pediátrica.
Material e MétodosRevisão retrospectiva do processo clínico dos doentes aos quais foi detectada uma válvula aórtica quadricúspide, entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2009.
Casos ClínicosCaso 1Doente do sexo feminino, com o diagnóstico de comunicação interauricular (CIA) tipo ostium secundum por ecocardiograma transtorácico (ETT), não se detectando outras anomalias estruturais. Aos 8 anos de idade, foi submetida a cateterismo cardíaco para encerramento percutâneo da CIA. Este exame revelou uma válvula aórtica quadricúspide tipo A, com regurgitação central mínima.
A doente encontra-se actualmente assintomática, mantendo insuficiência aórtica ligeira. (Figura 1)
Caso 2Doente do sexo feminino, seguida em consulta de Cardiologia Pediátrica desde o primeiro mês de vida por comunicação interventricular (CIV) perimembranosa subaórtica.
Aos 6 meses de idade, em avaliação de rotina, foi efectuado ETT, que demonstrou CIV perimembranosa restritiva, parcialmente encerrada por tecido tricúspide e foi feito o diagnóstico de válvula aórtica quadricúspide tipo A, normofuncionante.
A doente mantém-se assintomática, com seguimento em ambulatório.
Caso 3Doente do sexo masculino, com o diagnóstico de Síndrome de Williams, seguido em consulta de Cardiologia Pediátrica desde os 4 meses de idade, por CIV perimembranosa sub-aórtica, com encerramento espontâneo durante o terceiro ano de vida e estenose infundibular pulmonar ligeira (gradiente máximo 15mmHg).
Aos 7 anos de idade, por agravamento progressivo de cansaço, efectuou ETT, sob sedação, que revelou estenose supravalvular aórtica grave (gradiente máximo 87mmHg e médio 43mmHg) e válvula aórtica quadricúspide tipo A, com insuficiência mínima.
Estes achados foram confirmados por ecocardiograma transesofágico (ETE).
Posteriormente, foi submetido a tratamento cirúrgico, sendo realizada aortoplastia supravalvular com remendo de pericárdio autólogo. (Figura 2)
O doente mantém seguimento em consulta de Cardiologia Pediátrica, encontrando-se assintomático. O último ETT mostrou ausência de lesões residuais ou sequelares significativas e válvula aórtica quadricúspide com insuficiência mínima. (Figura 3)
Caso 4Doente do sexo masculino, referenciado à consulta de Cardiologia Pediátrica aos 6 anos de idade, por sopro cardíaco. O ETT revelou uma válvula aórtica quadricúspide assimétrica, tipo F, normofuncionante e válvula pulmonar quadricúspide com estenose mínima (gradiente de 15mmHg).
O doente mantém o seguimento em ambulatório, encontrando-se assintomático. (Figura 4)
DiscussãoA válvula aórtica quadricúspide foi identificada em necrópsia por Ballington em 1862, datando a primeira descrição desta entidade in vivo de 1968, por Robicsek e colaboradores9.
Estudos de autópsias sistemáticas estimaram uma incidência de 0,003%1 a 0,008%10. Numa revisão ecocardiográfica mais recente foi encontrada uma incidência de 0,043%2.
A origem embriológica da válvula aórtica quadricúspide permanece desconhecida11. Sabe-se que ambas as válvulas semilunares derivam de pregas do mesênquima que se formam nas raízes dos troncos aórtico e pulmonar, após a cisão do tronco comum, surgindo habitualmente três protusões que se desenvolvem para o interior do lúmen vascular, entre a quinta e a nona semanas de gestação4. Foram sugeridos vários mecanismos fisiopatológicos que podem levar à alteração do número de folhetos valvulares, nomeadamente septação anómala da junção conotruncal, com assimetrias na distribuição do número de protusões em cada um dos grandes vasos, proliferação anormal de uma ou mais pregas mesenquimais, ou divisão de um dos proto-folhetos valvulares durante a sua formação4,10.
Hurwitz e Roberts desenvolveram um sistema de classificação alfabético1, de acordo com o tamanho dos folhetos valvulares (Quadro 1). Segundo a sua investigação, cerca de 85% dos casos pertenceriam aos tipos A, B ou C.
Classificação anatómica de Hurwitz e Roberts.
Tipo | Descrição |
A | Quatro cúspides equivalentes |
B | Três cúspides equivalentes e uma cúspide mais pequena |
C | Duas cúspides maiores equivalentes e duas cúspides mais pequenas equivalentes |
D | Uma cúspide maior, duas cúspides de tamanho intermédio, equivalentes e uma cúspide mais pequena |
E | Uma cúspide maior e três cúspides mais pequenas equivalentes |
F | Duas cúspides maiores equivalentes e duas cúspides mais pequenas desiguais |
G | Quatro cúspides desiguais |
Nos últimos dez anos, foram diagnosticados no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta quatro casos de válvula aórtica quadricúspide, em crianças com idades compreendidas entre os 6 meses e os 8 anos. Duas eram do sexo masculino e duas do sexo feminino. Em nenhum dos casos relatados nesta revisão, o motivo de observação estava relacionado com as alterações valvulares encontradas.
Em três casos, os quatro folhetos valvulares eram de dimensões equivalentes (tipo A de Hurwitz e Roberts), sendo este o achado mais frequentemente descrito na literatura.
A válvula aórtica quadricúspide surge habitualmente como uma anomalia congénita isolada1,3,10, mas pode também estar associada a outras malformações, nomeadamente persistência do canal arterial, defeitos do septo interventricular, estenose da válvula pulmonar, malformações da válvula mitral, obstáculos do tracto de saída do ventrículo esquerdo (estenose sub ou supra-valvular), anomalias da artérias coronárias, miocardiopatia hipertrófica ou bloqueio aurículo-ventricular congénito12,13. Foi também descrita em associação com a Síndrome de Ehlers-Danlos14.
As malformações mais frequentemente associadas à válvula aórtica quadricúspide são as anomalias das artérias coronárias, que surgem em cerca de 10% dos casos4,5. Foram descritas diferentes formas de apresentação destas anomalias, incluindo posicionamento anómalo do ostium de uma das artérias coronárias15,16, ostium coronário único17, existência de fístulas arteriais coronário-pulmonares18 e casos de obstrução do orifício de entrada de uma das artérias coronárias por tecido valvular19, por vezes fatais 20.
Curiosamente, todos os doentes observados nesta série apresentavam outras malformações cardíacas associadas, contudo em nenhum dos casos se verificaram alterações das artérias coronárias. Um doente tinha também o diagnóstico de Síndrome de Williams. Esta é uma associação que nunca foi descrita na literatura.
Apesar de se tratar de uma malformação congénita, o diagnóstico é geralmente tardio. A característica ecocardiográfica patognonómica é a visualização, em eixo curto, de uma conformação em «X» das comissuras valvulares em diástole e aspecto rectangular em sístole21. A utilização mais frequente da ecocardiografia transesofágica tornou a detecção das válvulas aórticas quadricúspides mais facilitada e consequentemente mais comum11.
Ao contrário da válvula pulmonar quadricúspide, que é cerca de nove vezes mais frequente, a válvula aórtica quadricúspide tende a evoluir para a insuficiência6. Esta alteração funcional, causada por assimetrias na distribuição do fluxo transvalvular e desigualdade na coaptação dos folhetos, desenvolve-se de forma insidiosa ao longo de décadas, sendo rara antes da idade adulta. Foram descritos alguns casos de disfunção mista da válvula, mas nunca de estenose pura. Não foi encontrada relação entre a morfologia da válvula e o grau de alteração funcional11.
Numa revisão recente de todos os casos publicados, 66% apresentavam insuficiência valvular aórtica grave, 8% moderada, 8% ligeira e 13% insuficiência e estenose valvular aórtica. Em 10% dos casos, a válvula aórtica era normofuncionante7.
Na presente casuística, observaram-se com igual frequência válvulas normofuncionantes e válvulas que já apresentavam insuficiência mínima.
A cirurgia correctiva é habitualmente realizada entre a quinta e a sexta décadas de vida1 e apenas excepcionalmente em idade pediátrica8.
Existem alguns casos relatados de endocardite infecciosa em válvulas aórticas quadricúspides22–24, contudo, a necessidade de profilaxia de endocardite bacteriana permanece controversa, sobretudo quando as quatro cúspides são equivalentes e a válvula normofuncionante2,6,11.
Uma válvula aórtica quadricúspide normofuncionante requer seguimento médico regular, de forma a detectar atempadamente o desenvolvimento de alterações funcionais e permitir uma intervenção terapêutica oportuna.
Na nossa série, com um tempo de seguimento mediano de 2 anos [0 – 9], não houve necessidade de instituir qualquer tratamento médico ou cirúrgico versando a malformação valvular aórtica.
ConclusõesO diagnóstico de válvula aórtica quadricúspide é um achado raro, sobretudo em idade pediátrica, quando a maioria dos doentes são assintomáticos e apresentam válvulas sem quaisquer alterações funcionais.
Nesta casuística, os doentes apresentavam válvulas aórticas normofuncionantes ou com insuficiência mínima com igual frequência.
Ao contrário do que está descrito na literatura, todos os doentes apresentavam malformações cardíacas concomitantes, diferentes daquelas tradicionalmente associadas a esta patologia. Descrevemos também, pela primeira vez, a associação com a Síndrome de Williams.
Estes doentes deverão manter seguimento em ambulatório, de forma a detectar atempadamente o aparecimento ou agravamento de alterações funcionais e permitir uma intervenção terapêutica oportuna.
Conflito de InteressesOs autores declaram não haver conflito de interesses.