Como cardiologista e responsável de um Laboratório de Ecocardiografia foi com grande interesse e satisfação que verifiquei a publicação do primeiro artigo acerca de uma temática tão importante – o uso apropriado da ecocardiografia na realidade portuguesa. Congratulo o Dr. Paulo Fonseca e colaboradores pelo seu artigo1 de dezembro de 2015.
O Laboratório de Ecocardiografia do Hospital Central do Funchal dá cobertura à população da região Autónoma da Madeira (RAM) – cerca de 260 mil habitantes. O aumento exponencial das solicitações para os ecocardiogramas transtorácicos (ETT)2 e consequente aumento das listas de espera e dificuldade na triagem dos ETT levou a minha equipa a analisar a taxa de indicações para ETT de ambulatório na RAM, que inclui todas as referenciações hospitalares em âmbito de consulta externa e de todos os centros de saúde da RAM.
Realizou‐se um estudo observacional, retrospetivo, com uma amostra de 468 doentes consecutivos que realizaram ETT em regime de ambulatório, de janeiro a abril de 2014, de acordo com os Critérios de adequação do American College of Cardiology (AUC, 2011)3.
A taxa de ETT adequados do nosso centro foi de 76,1% (semelhante ao estudo de Fonseca, et al.), 12,8% inadequados e 11,1% de adequação incerta4.
No nosso centro, com um volume de ambulatório cerca de 3000 ETT/ano, esta taxa de referenciações implicaria a realização de cerca de 400 exames inadequados/ano.
Contrariamente à literatura mundial5,6, mas curiosamente igual ao estudo de Fonseca, et al., no nosso centro também se verificou uma taxa maior de ETT inadequados solicitados pelos Cardiologistas em relação às outras especialidades (10,5% versus 2,4%, p < 0,0001). Esses exames também eram na sua maioria ETT de reavaliação em doentes sem modificação clínica (em 78% das referenciações inadequadas).
Uma possível explicação para este achado, para além dos factos já apresentados por Fonseca, et al. e pela Dra. Ana Galrinho no comentário editorial7, seria a informação clínica contida na referenciação. O processo de determinação dos critérios de adequação no nosso centro também foi independente do médico referenciador, sendo a informação clínica contida na referenciação de primordial importância. Do total das referenciações inadequadas, a informação clínica proveniente da cardiologia estava incompleta em 88,2% versus 11,8% das referenciações de outras especialidades (p = 0,0002), podendo ter levado a bias na aplicação dos AUC. Considerámos informação incompleta quando não se conseguisse aplicar os critérios AUC apenas pela requisição do ETT e fosse necessário a pesquisa exaustiva do processo clínico eletrónico para a classificação.
Pessoalmente, também acho que existe um desconhecimento, mesmo entre cardiologistas com experiência em ecocardiografia, destas recomendações, aliado ao facto de estas serem exaustivas e de difícil leitura. Espero que as recomendações adaptadas à realidade europeia da European Association of Cardiovascular Imaging (EACVI) venham colmatar esta lacuna8.
Os resultados do nosso estudo levaram‐nos a criar uma requisição estruturada para o ETT e uma lista de fácil acesso e consulta divulgada na RAM com critérios de adequação e priorização de agendamento. Aguardamos que a sua implementação tenha impacto positivo na taxa de indicações para ETT no nosso centro.
Penso que deve haver um esforço das sociedades científicas e de ecocardiografia, e mesmo das entidades que regulamentam os planos de formação dos internatos médicos de várias especialidades para a divulgação de critérios de adequação para o ETT.
A utilização inadequada do ecocardiograma tem custos inerentes, podendo conduzir a um declínio na qualidade global dos cuidados de saúde, submetendo os pacientes a exames inaugurais e testes de repetição desnecessários que poderão vir a limitar os recursos para quem deles realmente necessite.
A chave estará sempre em“Referring the right patient for the right test at the right time”.
Conflitos de interesseNada a declarar