Em doentes portadores de próteses valvulares mecânicas, a ocorrência de disfunção protésica constitui um evento clínico relevante. Ocasionalmente, a demonstração do seu mecanismo etiológico e gravidade podem revelar-se difíceis.
Apresenta-se o caso clínico de um doente de 50 anos, portador de duas próteses valvulares mecânicas nas posições aórtica e mitral, internado por descompensação de insuficiência cardíaca. Nos antecedentes apresentava uma história longa de doença plurivalvular reumática com três cirurgias cardíacas prévias.
No internamento a investigação conduziu ao diagnóstico de disfunção grave de ambas as próteses mecânicas, sendo a etiologia e o mecanismo diferente em cada caso: recidiva de pannus no caso da prótese aórtica e bloqueio intermitente do encerramento dos discos por interposição de uma corda rota do aparelho subvalvular, no caso da prótese mitral. O doente foi reoperado, tendo havido melhoria significativa da classe funcional.
Prosthetic valve dysfunction is a significant clinical event. Determining its etiological mechanism and severity can be difficult. The authors present the case of a 50-year-old man, with two mechanical valve prostheses in aortic and mitral positions, hospitalized for decompensated heart failure. He had a long history of rheumatic multivalvular disease and had undergone three heart surgeries. On admission, investigation led to a diagnosis of severe dysfunction of both mechanical prostheses with different etiologies and mechanisms: pannus formation in the prosthetic aortic valve and intermittent dysfunction of the mitral prosthesis due to interference of a ruptured chorda tendinea in closure of the disks. The patient was reoperated, leading to significant improvement in functional class.
O aperfeiçoamento progressivo do desenho e do perfil hemodinâmico das próteses valvulares tem vindo a traduzir-se numa redução da ocorrência de disfunção protésica1. No entanto, todas as próteses valvulares continuam sujeitas à ocorrência de complicações2 e disfunção de gravidade variável, devendo esta possibilidade ser considerada na avaliação clínica individualizada da relação risco/benefício em doentes candidatos a substituição valvular3.
A disfunção obstrutiva de próteses valvulares mecânicas pode dever-se a trombose da prótese, desenvolvimento de pannus ou a uma associação das duas entidades4.
A trombose ocorre habitualmente associada a níveis subterapêuticos de anticoagulação5 e manifesta-se de uma forma rápida e potencialmente fatal6. Existem, porém, casos descritos com evolução mais insidiosa, nos quais o diagnóstico diferencial com a presença de pannus tem de ser considerado. Esta distinção é da maior importância pois a única alternativa terapêutica em caso de pannus hemodinamicamente significativo é a cirurgia (substituição da prótese ou excisão do tecido anómalo, em casos selecionados)7, nos casos de trombose de prótese a terapêutica trombolítica pode ser equacionada8,9.
O pannus consiste no desenvolvimento de tecido fibrovascular e/ou de granulação intraprotésico, podendo condicionar obstrução protésica muito significativa2,10. O seu diagnóstico é difícil não só pela evolução habitualmente lenta e insidiosa, mas sobretudo porque os meios complementares de diagnóstico atualmente existentes, nomeadamente o ecocardiograma, apesar da documentação de gradientes transprotésicos elevados, não permitem a visualização adequada do tecido excessivo anómalo11.
As próteses valvulares estão também sujeitas à ocorrência de regurgitação patológica. No caso das próteses mecânicas, esta ocorre habitualmente no contexto de endocardite ou de problemas técnicos na ocasião da implantação.
Descreve-se em seguida o caso clínico de um doente com obstrução recidivante de prótese aórtica mecânica por pannus, associada a disfunção intermitente de prótese mitral mecânica por interposição de corda do tecido subvalvular nativo residual entre os discos protésicos, impedindo o seu encerramento.
Caso clínicoDoente do sexo masculino, 50 anos de idade, com antecedentes de febre reumática aos 22 anos de idade e três cirurgias cardíacas valvulares prévias. Foi internado em março de 2010 num serviço de cardiologia por descompensação de insuficiência cardíaca (IC).
Em 1991, na sequência de episódio inaugural de fibrilhação auricular (FA), foi-lhe diagnosticada doença valvular reumática com envolvimento das válvulas aórtica e mitral (ambas com predomínio de regurgitação), dilatação e disfunção ventricular esquerda (VE) moderadas. Nessa ocasião foi submetido à primeira cirurgia cardíaca, tendo sido substituída a válvula aórtica por prótese mecânica Duromedics 23 e realizada reparação valvular mitral com anel de Carpentier-Edwards (CE). O ecocardiograma efetuado ao 7.° dia pós-operatório revelava prótese aórtica com gradiente máximo de 23mmHg, sem regurgitação aparente. A válvula mitral apresentava regurgitação trivial e área por planimetria normal. Persistiam a dilatação VE (diâmetro diastólico [DD] VE de 69mm) e a disfunção sistólica moderada do VE. Após um período de dois anos em que se manteve assintomático e com níveis de anticoagulação predominantemente em valores terapêuticos, inicia queixas de IC com agravamento rapidamente progressivo, ficando em classe funcional NYHA III. Um ecocardiograma revelou aumento significativo dos gradientes transprotésicos aórticos (máximo e médio de respetivamente 90 e 57mmHg). A válvula mitral mantinha bom resultado da plastia prévia, com regurgitação minor. O VE continuava dilatado (DD e DS de respetivamente 67 e 53mm), mantendo disfunção sistólica moderada. A avaliação fluoroscópica confirmou a disfunção da prótese evidenciando restrição da mobilidade dos oclusores protésicos.
Foi então reoperado para substituição protésica, tendo o diagnóstico de obstrução por pannus sido confirmado através de inspeção direta intraoperatória. Após remoção da prótese e excisão do pannus, implantou-se nova prótese aórtica St. Jude 23. O ecocardiograma ao 5.° dia pós-operatório revelou gradiente máximo da prótese aórtica de 29mmHg.
Após a 2.a cirurgia cardíaca houve recuperação funcional significativa, tendo-se mantido assintomático durante dez anos. A partir de 2003 assiste-se ao reaparecimento das queixas de IC com agravamento progressivo até 2007. Nesta altura o ecocardiograma revelou agravamento da doença valvular mitral (estenose com área do orifício valvular por planimetria de 1,1cm2 associada a regurgitação grave, excêntrica, por acentuada hipomobilidade do folheto posterior) e regurgitação tricúspide (RT) grave com pressão sistólica na artéria pulmonar (PSAP) estimada de 45mmHg. A prótese aórtica apresentava gradientes máximo e médio de 41 e 27mmHg, respetivamente. Registava-se também agravamento da disfunção VE, com fração de ejeção de 35%.
Em maio de 2007 foi realizada a 3.a cirurgia cardíaca, onde se confirmaram os achados ecocardiográficos da válvula mitral. Foi efetuada também inspeção intraoperatória da prótese aórtica que não revelou alterações macroscópicas significativas. Removeu-se o folheto anterior da válvula mitral e suturou-se o folheto posterior, juntamente com as cordas tendinosas, após ter sido enrolado, à região posterior do anel preservando assim o aparelho subvalvular mitral. Implantou-se uma prótese mecânica St. Jude em posição mitral e realizada anuloplastia tricúspide com anel de CE n.°34.
Teve alta em classe NYHA II. Progressivamente, até março de 2010, agravou-se a classe funcional da IC. Em ecocardiogramas seriados observou-se um aumento progressivo dos gradientes da prótese aórtica implantada em 1993. Foi internado no nosso serviço por descompensação de IC com classe funcional NYHA IV. À entrada apresentava-se apirético e à auscultação apresentava ruídos metálicos protésicos e um sopro sistólico de intensidade variável em todo o precórdio. Analiticamente não tinha parâmetros inflamatórios aumentados e o INR era de 2,8. O eletrocardiograma mostrou FA (conhecida desde 1991), hipertrofia do VE e alterações difusas e inespecíficas da repolarização ventricular. No ecocardiograma transtorácico (ETT), em que era difícil a visualização dos discos protésicos aórticos, obtiveram-se parâmetros Doppler compatíveis com obstrução da prótese aórtica. Apesar da variação com a duração do ciclo cardíaco, os gradientes eram superiores aos de exames anteriores, (máximo e médio de respetivamente 70 e 40mmHg), com o quociente VTI do trato de saída do VE/VTI aórtico de 0,14. Aparentemente apensa à face ventricular do anel protésico mitral, era visível uma estrutura filamentosa muito móvel que não parecia interferir com o funcionamento da prótese. Os gradientes transprotésicos mitrais não estavam significativamente aumentados (máximo e médio de respetivamente 12 e 4mmHg). Por ETT não foi possível visualizar regurgitação protésica mitral devido às reverberações protésicas na aurícula esquerda.
Para melhor esclarecimento efetuou ecocardiograma transesofágico (ETE), que revelou disfunção da prótese mitral (regurgitação patológica intraprotésica moderada a grave presente, de forma intermitente, apenas em alguns ciclos cardíacos) causada pela interposição, também intermitente, da estrutura filamentosa descrita através dos discos da prótese, impedindo o seu normal funcionamento (Figura 1). A fluoroscopia confirmou o encerramento deficiente, intermitente, de um dos discos da prótese mitral (Figura 2).
Foi reoperado (4.a vez) no dia 22 de abril de 2010. Intraoperatoriamente foi confirmada a presença de pannus na prótese aórtica, ao longo do rebordo da face ventricular do anel protésico, (Figura 3 seta), assim como visualizada uma corda solta do aparelho subvalvular mitral nativo que, por interposição, impedia de forma intermitente a oclusão eficaz dos discos da prótese mitral (Figura 4 seta). Procedeu-se então à remoção do pannus, substituição da prótese aórtica e à excisão da referida corda do aparelho subvalvular mitral nativo.
O pós-operatório decorreu sem intercorrências, tendo o doente tido alta ao 8.°dia pós-operatório. À data da alta o ecocardiograma revelou normal funcionamento das duas próteses mecânicas, sem variação significativa, relativamente ao pré-operatório, dos volumes e da função ventricular.
Passados dois anos da última intervenção cirúrgica o doente encontra-se em classe funcional NYHA II. No último ecocardiograma realizado em março de 2012 as próteses aórtica e mitral estavam normofuncionantes e a fração de ejeção biplanar do VE era de 43%. Observava-se ainda RT ligeira com PSAP de 39mmHg.
DiscussãoQuer a trombose quer o desenvolvimento de pannus podem causar disfunção protésica de carácter obstrutivo. A distinção entre estas duas entidades baseia-se habitualmente em parâmetros de ordem clínica e nos achados da ecocardiografia. Embora possa ocorrer em qualquer altura depois da cirurgia, a trombose é mais frequente quando os sintomas se desenvolvem precocemente após a implantação protésica, cursando habitualmente com uma evolução rápida dos sintomas até à necessidade de reoperação (inferior a um mês)6. Níveis inadequados de anticoagulação são igualmente mais habituais nos casos de trombose. Pelo contrário, o aparecimento tardio, muitos anos depois da cirurgia, assim como uma evolução mais lenta e insidiosa dos sintomas, favorecem a hipótese de pannus. Em relação à ecocardiografia, os trombos são habitualmente visíveis como massas mais ou menos volumosas, móveis e pouco densas, relacionadas com o(s) disco(s), enquanto o pannus consiste num espessamento fixo e denso mais difícil de visualizar pela sua localização circunferencial perianular. A etiologia do pannus não está ainda totalmente esclarecida2, sendo provavelmente multifatorial. O pannus parece consistir numa bioreação às próteses mecânicas, valvulares, associado a vários fatores como o design protésico, biocompatibilidade, técnica cirúrgica, mismatch prótese-doente, infeção, turbulência do fluxo sanguíneo e tensão de cisalhamento da parede2,12,13. Curiosamente, a anticoagulação subterapêutica é considerada como um fator de risco não só para trombose de prótese como para a formação de pannus2. A trombose e o pannus podem coexistir14.
O efeito hemodinâmico do pannus depende da sua localização e extensão4. No caso das próteses aórticas mecânicas, ocorre habitualmente do lado ventricular4. Para além de condicionar obstrução de grau variável, pode ocasionalmente originar regurgitação protésica patológica por interferência com o encerramento dos discos15.
No caso acima descrito há que salientar não só a precocidade do aparecimento de pannus na prótese aórtica, apenas dois anos após a primeira cirurgia, como também a recorrência de pannus, nove anos depois da substituição. Na literatura, em três series de 23, 615 e 390 doentes com próteses mecânicas maioritariamente aórticas (somente 14 próteses mitrais mecânicas), o tempo médio até reoperação por pannus foi de 178±52 meses, 83±52 meses e 10±7,9 anos, respetivamente2,6,16, apesar de estarem descritos casos isolados com aparecimento rapidamente progressivo de pannus10. A recorrência de pannus no mesmo doente tem sido descrita raramente.
Este caso salienta a importância do ecocardiograma transtorácico pós-operatório de referência, que nos fornece um registo dos parâmetros hemodinâmicos basais da prótese que servirão de controlo para comparação com exames no seguimento do doente, sobretudo em caso de deterioração clínica.
O método cirúrgico atualmente utilizado na implantação de próteses mecânicas em posição mitral contempla a preservação do aparelho subvalvular nativo, para conservar a geometria do VE e prevenir a deterioração da fração de ejeção11,17. Várias técnicas de preservação do aparelho subvalvular mitral estão disponíveis e a sua escolha deve ser individualizada baseada na anatomia, patologia, função ventricular esquerda e tipo de prótese18. Existem casos raros de interferência do aparelho subvalvular mitral ou de material da sutura com o funcionamento da prótese que podem ser potencialmente fatais19. Na maior parte dos casos, esta situação é detetada e corrigida intraoperatoriamente. Este mecanismo de disfunção protésica é mais frequente na patologia valvular reumática. No caso do nosso doente a disfunção da prótese mitral ocorria de forma intermitente, por interposição de uma corda solta entre os discos da prótese, apenas nalguns ciclos cardíacos, o que pode ter dificultado o diagnóstico. Nestes ciclos o encerramento dos discos era incompleto, provocando regurgitação patológica.
Este caso ilustra-nos como um diagnóstico de disfunção protésica intermitente pode ser esquivo, reforçando a importância de uma avaliação cuidadosa e demorada tanto na auscultação como durante o exame ecocardiográfico. O registo Doppler dos gradientes transprotésicos por um período prolongado correspondente a um número alargado de ciclos cardíacos a velocidades de varrimento baixas é essencial para maximizar a oportunidade de diagnosticar as disfunções valvulares intermitentes.
A fluoroscopia (técnica muita vez esquecida) pode ser, nesse contexto, uma técnica útil3.
Também é importante referir, presente neste caso, o risco acrescido de uma 4.a cirurgia cardíaca (principalmente em substituição de prótese mecânica20,21).
Finalmente, há neste caso a particularidade de o mesmo doente apresentar em simultâneo disfunção protésica mecânica aórtica e mitral, por dois mecanismos diferentes, ambos relativamente raros.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Os autores reconhecem o contributo essencial da Dr.a Raquel Gouveia e do Dr. Manuel Canada do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Cruz (Centro Hospitalar Lisboa Ocidental) na investigação ecocardiográfica descrita no caso clínico.