O reconhecimento cada vez mais claro da heterogeneidade de condições clínicas associadas ao enfarte do miocárdio sem elevação de ST (NSTEMI) tem posto o foco da investigação nesta entidade, procurando definir a melhor intervenção terapêutica.
É reconhecido que o NSTEMI se associa a taxas de morbilidade e mortalidade mais altas do que as outras síndromas coronárias agudas (SCA)1 e, por esse facto apenas, justifica já reflexão criteriosa.
O artigo publicado nesta revista da autoria de Gonzales‐Cambeiro et al.2 sobre o benefício na mortalidade, associado à utilização prolongada dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) ou de antagonistas do recetor da angiotensina (ARA), em doentes com NSTEMI submetidos a intervenção coronária percutânea (ICP) com sucesso, dá o pontapé de saída a esta reflexão.
Os autores identificam neste estudo observacional que os doentes admitidos por NSTEMI, tratados com sucesso por ICP e submetidos a terapêutica com IECA/ARA, apresentaram ao fim de quatro anos uma menor taxa de mortalidade. Neste estudo, a elevada taxa de doença multivaso, o desconhecimento da percentagem de doentes sujeitos a revascularização completa, a falta de informação sobre a precocidade com que foi realizada a ICP e a não identificação da distribuição da população, de acordo com critérios de gravidade clínica (GRACE score), alertam para variáveis que merecem consideração especial na avaliação e orientação terapêutica neste heterogéneo grupo de doentes.
É há muito tempo reconhecido o benefício da intervenção terapêutica com IECA/ARA no tratamento adjuvante da SCA com elevação de ST (STEMI)3–6, embora falte evidência indiscutível sobre a sua utilização nos NSTEMI. A informação do artigo de Gonzales‐Cambeiro et al.2 parece associar a sua utilização a um benefício, relativamente à mortalidade de qualquer causa, neste subgrupo das SCA. Mas será apenas esta intervenção farmacológica a responsável pelos resultados obtidos? Na nossa opinião, surgem aqui três tipos de condições e questões que se enxertam para poderem enviesar os resultados obtidos. São elas: 1) a precocidade da revascularização por ICP, 2) a revascularização completa e 3) a manutenção da terapêutica antiagregante plaquetária (TAA) durante um período de tempo adequado.
Avaliemos com algum detalhe cada uma destas condições.
O debate sobre o melhor momento para a realização da avaliação invasiva nos doentes com SCA sem elevação de ST aponta como melhor estratégia a sua realização o mais precocemente possível7,8, identificando‐se, no entanto, subgrupos de doentes em que essa precocidade é ainda mais importante e responsável pelo condicionamento do prognóstico a médio e longo prazo9. A intervenção mais precoce está associada a menor taxa de mortalidade. É reconhecido que os doentes incluídos em scores clínicos mais elevados são aqueles que mais beneficiam de uma intervenção mais precoce7–9. No entanto, é a estes a quem mais frequentemente se impõem tempos pré‐intervenção mais prolongados, porque são também a estes que estão associadas as condições menos favoráveis em termos de segurança e eficácia, relativamente à realização de procedimentos invasivos. De algumas destas condições destaco o sexo feminino, a idade avançada, o compromisso da função renal e a anemia, entre outros. Somos, por isso, tentados a tratar menos vezes estes doentes, por serem «demasiado» doentes ou porque o risco do procedimento é demasiado alto!
Portanto, muitos dos resultados obtidos em grupos de doentes consecutivos, não clarificam bem esta variável de conjunto, por muito que estejam bem identificadas individualmente cada uma das variáveis envolvidas e já referidas.
A avaliação por subgrupos, de acordo com scores e a variável – tempo de intervenção –, poderiam ajudar a discriminar melhor o envolvimento de cada uma das formas de intervenção (farmacológica ou outra), no impacto clínico e prognóstico das estratégias terapêuticas selecionadas.
A segunda condição prende‐se com o facto de se ter ou não realizado revascularização completa no contexto da doença multivaso que, na publicação referida, corresponde a quase metade dos doentes incluídos em cada um dos grupos em estudo.
É reconhecida a importância da revascularização completa imediata ou estadiada na diminuição das taxas de necessidade de nova revascularização em doentes com STEMI, embora não haja uma evidência robusta que essa diminuição se estenda às taxas de mortalidade e de reenfarte10,11. Não foi ainda identificada a sua relevância na taxa de mortalidade como end point isolado, embora o tenha sido quando incluída em end points compostos12,13.
A evidência científica disponível apoia também a revascularização completa no âmbito do NSTEMI14. Por outro lado, informação recente propõe a realização de revascularização completa em procedimento único, uma vez que o procedimento estadiado se associa a uma mais elevada taxa de MACCE15.
No artigo de Gonzales‐Cambeiro et al.2 não temos conhecimento do número de doentes a quem foi realizada revascularização completa e, portanto, essa condição poderá ter enviesado os resultados. É também reconhecido que aqueles que mais beneficiam de revascularização mais completa, são aqueles em quem mais frequentemente é difícil concretizá‐la: doença de três vasos, doença difusa, atingimento do tronco comum da coronária esquerda, disfunção ventricular esquerda, entre outras.
Assim, é nos grupos mais complexos que surgem, tal como na estratégia de definição do tempo de intervenção, as maiores dificuldades na concretização das atitudes definidas como as mais adequadas na prática clínica, de acordo com o estado da arte atual.
Em terceiro lugar, uma reflexão sobre a TAA, tão importante neste subgrupo de doentes: NSTEMI e PCI.
Sabemos da informação apresentada pelos autores2 que a maioria dos doentes estava a cumprir TAA dupla, com AAS e clopidogrel à data da alta hospitalar, mas não sabemos que percentagem dos doentes cumpriu os 12 meses estipulados, quantos a interromperam precocemente e quantos a mantiveram após os 12 meses do procedimento índex. É sabido como as primeiras duas situações podem ter impacto no prognóstico e como a terceira, à luz da informação mais recente16, pode vir a ter um impacto positivo sobre o prognóstico em grupos selecionados de doentes com risco isquémico elevado e baixo risco hemorrágico.
Por último, uma referência ao elemento diferenciador associado à definição do prognóstico: a função ventricular esquerda.
Como podemos verificar analisando com detalhe os números do artigo de Gonzales‐Cambeiro et al.2, os doentes no seu conjunto apresentavam uma fração de ejeção média do ventrículo esquerdo (FEVE) preservada, superior a 50%, tendo apenas uma pequena percentagem de doentes FEVE inferior ou igual a 40% (inferior a 10% dos doentes após emparelhamento). Parece‐nos, por este facto, que as taxas de mortalidade observadas (cerca de 16% no grupo não tratado e quase 12% no grupo tratado), inferiores aos cerca de 22% de esperados1, possam ter a ver com esta condição associada à FEVE preservada.
Apesar de tudo, seria de esperar que a intervenção farmacológica com IECA/ARA fosse menos efetiva neste grupo de doentes com FEVE conservada.
No entanto, não conhecemos as percentagens de reenfarte ou de target lesion failure (TLF) no follow‐up e, por isso, não sabemos de que forma é que estas condições possam ter interferido no prognóstico e modulado os resultados.
A intervenção terapêutica sobre o NSTEMI continua a encerrar muitas incertezas e algumas limitações, devidas essencialmente à heterogeneidade da sua apresentação e evolução clínica. Avanços científicos que ajudem a tratar melhor esta entidade são particularmente importantes, tendo em conta o seu mau prognóstico. Três anos após o acontecimento índex, cerca de 22% dos doentes com NSTEMI terá falecido1. Vale a pena refletir sobre isto!
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.