O enfarte agudo do miocárdio (EAM) continua a ser uma das principais causas de morbilidade e mortalidade a nível mundial1. Após um EAM, o miocárdio lesado é substituído por tecido fibrótico, com consequente redução da capacidade contráctil e remodelagem ventricular que pode conduzir ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca2.
Classicamente, o coração humano era considerado um órgão pós‐mitótico sem qualquer capacidade regenerativa. No entanto, este paradigma foi revolucionado, principalmente com o estudo de Quaini et al., publicado no N Engl J Med em 2002, que identificou células cardíacas com cromossoma Y em corações de dadores do sexo feminino transplantados em doentes do sexo masculino3. Este importante estudo mostrou existir regeneração cardíaca no adulto, demonstrando que é possível células estaminais migrarem do recetor para o coração transplantado e originar células cardíacas3,4.
Ao longo das últimas duas décadas, vários estudos com células estaminais têm mostrado resultados promissores na regeneração cardíaca quer em modelos animais quer em estudos clínicos5–7.
As células estaminais mesenquimatosas (MSC) são um tipo de células estaminais adultas, não hematopoiéticas, derivadas da medula óssea, com capacidade de autorrenovação, proliferação e multidiferenciação no meio apropriado. Podem diferenciar‐se num número limitado de tipos celulares da linhagem mesodérmica, incluindo osteócitos, condrócitos, adipócitos, miócitos, células endoteliais e estroma medular8. Estas células estaminais podem ser isoladas da medula óssea, mas também do tecido adiposo, placenta, sangue do cordão umbilical e geleia de Wharton9–11. As MSC têm sido das células estaminais mais estudadas e testadas em ensaios clínicos12. A preferência por estas células estaminais pode ser justificada por algumas das suas vantagens, nomeadamente a facilidade de colheita, expansão e modificação genética in vitro, e ainda, o baixo risco de tumorogenicidade e de imunogenicidade12,13.
Tem sido sugerido que as MSC têm a capacidade de se enxertarem no tecido hospedeiro, diferenciando‐se em células vasculares endoteliais (ação direta) e principalmente capacidade de estimular o recrutamento doutras células estaminais endógenas (ação parácrina)13. Da ação das MSC resultam diversos efeitos cardíacos benéficos, como melhoria da perfusão, redução da fibrose e inflamação, aumento da contração regional e global do ventrículo esquerdo (VE) e redução do volume telessistólico do VE, melhorando a função ventricular esquerda pós‐EAM6,14‐16.
Estes benefícios da terapia com MSC no EAM foram explorados em ensaios clínicos de fase I e II, com resultados promissores. Uma metanálise publicada em 2017, que incluiu 34 ensaios clínicos, com 2307 doentes com EAM, demonstrou que os doentes que recebem transplantação de MSC apresentam uma melhoria significativa da função sistólica do VE e diminuição dos volumes do VE5. Outra metanálise de 28 ensaios clínicos, com 1938 doentes com EAM com supra ST, mostrou que a melhoria da função sistólica do VE associada à terapia com MSC se mantém a longo prazo7.
Apesar dos resultados promissores dos estudos iniciais da terapia celular em doentes com EAM, há ainda várias dificuldades que fazem com que o benefício terapêutico seja insatisfatório. Uma das dificuldades é a baixa taxa de adesão, retenção, diferenciação e sobrevivência das células num meio isquémico hostil6. Estudos prévios apontam para que apenas 3% das MSC transplantadas permaneçam na área marginal do enfarte do miocárdio 24 horas após a sua administração sistémica e para que a proporção de células que sobrevive após uma semana seja inferior a 1%17. Por outro lado, o aumento da função sistólica VE associado à terapia com MSC em doentes com EAM é modesto18.
Seria importante desenvolver estratégias que melhorassem o miocroambiente do miocárdio hospedeiro, de forma a melhorar a sobrevivência e função das MSC transplantadas.
Os benefícios cardiovasculares do exercício físico aeróbico têm sido amplamente demonstrados. O exercício físico regular não só diminui a incidência de eventos coronários como também aumenta a sobrevida após um EAM19,20. No contexto de EAM, a cardioproteção associada ao exercício físico pode ser justificada não só pela redução de fatores de risco convencionais como a dislipidémia e a hipertensão arterial, mas também pela melhoria da função endotelial e pela indução de precondicionamento19.
Neste trabalho em análise os autores demonstram que a combinação do exercício físico com a terapia com MSC tem um efeito sinérgico na melhoria da remodelagem da matriz extracelular e na função VE de ratos com EAM, sugerindo que o exercício físico aeróbico pode ser uma estratégia para tornar o microambiente isquémico mais favorável à ação das MSC21.
Neste estudo animal, Freitas et al. comparam 4 grupos: 1) ratos com enfarte, sedentários, submetidos a administração de MSC autólogas (obtidas a partir da medula óssea e administradas por via intravenosa); 2) ratos com enfarte, submetidos a um programa de treino físico de 12 semanas (iniciado 24 horas após o EAM); 3) ratos com enfarte, submetidos a um programa de treino físico de 12 semanas e administração de MSC autólogas; 4) grupo controlo (ratos com enfarte sedentários)21. Os autores verificaram que os grupos do treino físico, da terapia com MSC e das duas intervenções combinadas apresentavam menor área de enfarte e melhor função sistólica VE do que o grupo controlo, sendo o efeito na redução da área de enfarte mais acentuado no grupo da combinação de terapia com MSC e exercício físico. Os autores também constataram que o exercício físico se associou a redução da acumulação de colagénio, redução da expressão de α‐actina e aumento do ratio α/β da cadeia leve de miosina no VE, principalmente quando combinado com a terapia com MSC21. Estes efeitos podem explicar o benefício adicional do exercício físico na melhoria da função cardíaca.
Os mecanismos pelos quais as MSC melhoram a reparação cardíaca ainda não estão bem esclarecidos. No entanto, a evidência mais recente questiona a existência de ação direta destas células estaminais e aponta para que o seu mecanismo de ação seja essencialmente parácrino22. Este trabalho corrobora a hipótese do benefício das MSC residir exclusivamente na sua ação indireta, uma vez que estas células não foram detetadas no coração dos ratos submetidos à administração de MSC. De facto, a melhoria da função cardíaca perante a ausência de retenção de MSC aponta para que o efeito terapêutico destas células resulte da estimulação dos processos de reparação endógena via sinalização parácrina. Estudos prévios demonstram que as MSC libertam vários citocinas parácrinas (como o fator‐1 derivado das células estromais (SDF‐1), fator de crescimento vascular endotelial (VEGF), o fator de crescimento dos hepatócitos (HGF), fator de crescimento insulina‐like (IGF), miRNAs e exossomas13. Como resultado da libertação destes fatores solúveis, as MSC desempenham um forte efeito proangiogénico, estimulando a ação de células estaminais cardíacas endógenas, têm também efeitos anti‐inflamatórios e antifibróticos por inibição da proliferação de fibroblastos e redução da deposição de colagénio, estabilizando a matriz extracelular13. Neste estudo os autores verificam que a deposição de colagénio no VE é significativamente inferior não apenas nos animais submetidos à terapia com MSC como também nos animais submetidos ao programa de treino físico e principalmente no grupo da combinação de terapias.
A terapia com células estaminais é uma abordagem a explorar para minimização da perda celular e a remodelagem ventricular após o EAM. No entanto, apesar da evidência confirmar a segurança destas terapias no homem, o efeito terapêutico verificado com a terapia com MSC isoladamente tem sido modesto. A combinação do exercício físico aeróbico com a terapia celular pode conseguir, através dum sinergismo de ação, amplificar o benefício da terapia com MSC na prevenção da remodelagem ventricular adversa e na evolução para insuficiência cardíaca.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflito de interesses.