A miocardite aguda é uma entidade frequentemente subdiagnosticada e com uma evolução que nem sempre é benigna, pelo que o seu diagnóstico se torna mandatório.
Apresenta-se o caso de uma mulher de 62 anos, com dor precordial anginosa após evento de stress emocional, associada a elevação do segmento ST no eletrocardiograma, cujo cateterismo cardíaco de urgência mostrou artérias coronárias normais e balonização apical do ventrículo esquerdo, sugestivo da síndroma de takotsubo. Contudo, a ressonância magnética cardíaca mostrou lesões compatíveis com miocardite aguda, revelando, assim, este diagnóstico.
Destacamos a dificuldade diagnóstica no doente com dor torácica, elevação de troponina e artérias coronárias normais, em que a ressonância magnética cardíaca assume um papel fundamental no diagnóstico diferencial.
Acute myocarditis is often misdiagnosed, and its evolution is not always benign; correct and prompt diagnosis is therefore essential.
We report the case of a 62-year-old woman with chest pain after a stressful event and ST-segment elevation on the electrocardiogram, in whom urgent cardiac catheterization showed normal coronary arteries and left ventricular apical ballooning, suggesting takotsubo syndrome. However, cardiac magnetic resonance imaging showed lesions typical of acute myocarditis, thus suggesting this diagnosis.
We highlight the diagnostic difficulty in patients with chest pain, elevated troponin and normal coronary arteries, and the key role of cardiac magnetic resonance in differential diagnosis.
Nos doentes admitidos no Serviço de Urgência (SU) com dor precordial, o diagnóstico diferencial entre etiologia cardíaca isquémica e não isquémica pode ser um desafio. O diagnóstico diferencial é baseado na história clínica e em exames complementares de diagnóstico1.
Os doentes com lesões coronárias hemodinamicamente significativas são identificados no cateterismo cardíaco, comprovando a etiologia isquémica. Em aberto fica o diagnóstico definitivo de doentes com síndroma coronária aguda e artérias coronárias angiograficamente normais: miocardite aguda, síndroma de takotsubo (ST) ou isquémia miocárdica com artérias coronárias normais, e que apresentam características distintas na ressonância magnética cardíaca (RMC)2.
A RMC é um exame não invasivo que permite uma caracterização morfológica única, incluindo a nível tecidular. Este exame identifica, localiza e distingue a etiologia das lesões miocárdicas, nomeadamente diferenciando inflamação de isquémia1.
A primeira descrição da utilização RMC no diagnóstico de miocardite aguda remonta a 1991, com os trabalhos de Gagliardi et al. em crianças com o diagnóstico de miocardite3. A RMC caracteriza o miocárdio através das sequências ponderadas em T1 e T2 e, porque na miocardite aguda ativa a lesão dos miócitos está associada a edema extracelular e interticial, é possível a sua visualização como áreas de hiperintensidade do sinal miocárdico nas sequências em T24. Por outro lado, mediante a utilização de agente de contraste paramagnético, uma lesão miocárdica irreversível pode ser identificada pela sequência de RMC de realce tardio em doentes com miocardite, distinguindo-a da ST. Estas lesões podem ser passíveis de biópsia, demonstrando a presença de focos de miocardite aguda ativa. Assim, para além da identificação do tipo de lesão, a RMC pode identificar o melhor local para biópsia endomiocárdica5.
Uma ampla investigação também tem sido levada a cabo para uma melhor caracterização da ST. Os trabalhos de Eitel e de Koeth, et al. mostraram edema focal nas ponderações de T2 em relação aos segmentos com alterações da cinética segmentar, mas sem alterações miocárdicas na sequência de realce tardio nesta patologia6,7.
A isquémia miocárdica com artérias coronárias angiograficamente normais exibe na RMC um defeito de perfusão miocárdica nas sequências com eco de gradiente ou de SSFP ponderadas em T1, com evidência de realce tardio na mesma localização, com localização transmural ou subendocárdica, no caso de ocorrer necrose. A localização deste padrão de necrose correlaciona-se com as alterações da cinética segmentar, permitindo o diagnóstico de enfarte do miocárdio na ausência de lesões coronárias2.
Caso clínicoApresenta-se o caso duma mulher de 62 anos, que, após discussão familiar, referiu dor precordial anginosa e inaugural. Não apresentava fatores de risco para doença cardiovascular. Destacava-se apenas como diagnóstico prévio: degenerescência macular relacionada com a idade. Negava qualquer patologia ou terapêutica recente.
Recorreu ao SU por persistência de dor com 8 horas de duração, encontrando-se hemodinamicamente estável e sem manifestações de insuficiência cardíaca. O eletrocardiograma (ECG) mostrava ritmo sinusal com elevação do segmento ST em DI e aVL e infradesnivelamento do segmento ST em DIII e aVF (Fig. 1). O ecocardiograma transtorácico efetuado no SU revelou acinésia com ectasia apical e dos segmentos parietais meso-apicais do ventrículo esquerdo, sem derrame pericárdico (Fig. 2).
Ecocardiograma transtorácico, apical 4 câmaras, com ectasia e acinésia apical e dos segmentos médios do ventrículo esquerdo. A linha vermelha contorna o endocárdio cardíaco e define uma linha que se assemelha ao contorno de um takotsubo, isto é, vaso com que se capturava o polvo na pesca.
Realizou cateterismo cardíaco de urgência sob anticoagulação e dupla antiagregação com ácido acetilsalicílico e clopidogrel. As artérias coronárias eram angiograficamente normais e não foi documentado vasospasmo. A ventriculografia mostrava acinésia com balonização dos segmentos apicais, com compromisso moderado da função sistólica global (fração de ejeção de 42%) (Fig. 3). Houve elevação dos biomarcadores de necrose miocárdica, com valor máximo de troponina I de 6,45 ng/mL e de CK- MB massa de 27,1 ug/dL com um CK total de 248 ug/dL. A PCR era de 0,2mg/dL. Durante o internamento, manteve-se sem dor precordial, o ECG evoluiu com inversão generalizada da onda T (Fig. 4), acompanhada de recuperação progressiva das alterações da cinética segmentar do ventrículo esquerdo. Manteve terapêutica com dupla antiagregação, anticoagulação, inibidor da enzima de conversão da angiotensina (captopril 6,25mg, 8/8 horas) e estatina (atorvastatina 10mg/d). Não tolerou terapêutica betabloqueante por bradicárdia sintomática.
Tendo em conta o quadro clínico e os exames complementares de diagnóstico, foi colocada a hipótese da ST. Tratando-se de um diagnóstico de exclusão, foram efetuados: doseamento de catecolaminas na urina de 24 h, TC das glândulas suprarrenais, serologia para vírus cardiotrópicos (Adenovírus, Coxsackie, CMV, Echovirus, EBV,VHZ, HSV 1 e 2, Parvovirus B19, Influenza, VHC, VIH) em 2 determinações, apesar de IgM negativa, e o painel de autoimunidade, todos normais. A RMC foi efetuada ao 7.° dia de evolução e revelou: ventrículo esquerdo não dilatado, nem hipertrofiado, já sem alterações da cinética segmentar com boa função sistólica global, mas com hiperintensidade do sinal miocárdico pela sequência de turbo spin-echo ponderada em T2, localizada na parede lateral e ainda realce tardio após gadolíneo, localizado na camada subepicárdica da mesma parede lateral (Fig. 5). O ventrículo direito não mostrava alterações.
Estes aspetos eram compatíveis com miocardite aguda com envolvimento da parede lateral do ventrículo esquerdo, o que estava de acordo com as alterações eletrocardiográficas, embora as alterações da cinética segmentar na apresentação fossem compatíveis com a ST.
Manteve-se medicada com captopril e associou-se ibuprofeno 400mg 8/8 h. Verificou-se recuperação total das alterações segmentares, da função sistólica global do ventrículo esquerdo e normalização do padrão eletrocardiográfico, pelo que teve alta ao 10.° dia, com o diagnóstico de miocardite aguda.
Manteve-se em acompanhamento em consulta e, nos 12 meses seguintes, não apresentou manifestações de insuficiência cardíaca, nem recorrência de angor, sendo o ecocardiograma transtorácico normal.
DiscussãoA ST, também designada por síndrome de balonização apical transitória, broken heart syndrome ou disfunção transitória do ventrículo esquerdo após stress emocional ou físico, é uma entidade relativamente recente, descrita pela primeira vez em 1990 e só reconhecida como entidade nosológica independente em 2001. Está incluída nas síndromes da miocardiopatia de stress e tem uma prevalência aproximada de 2% entre os casos que inicialmente se apresentam como síndromas coronárias agudas8.
Abrange preferencialmente uma população de mulheres pós-menopausa, surgindo geralmente após stress físico ou emocional e com elevação ligeira de biomarcadores de necrose miocárdica. Numa tentativa de uniformização do diagnóstico da ST, foram elaborados, em 2004, critérios pela Mayo Clinic e que foram modificados em 2007. Incluem: 1) acinésia, hipocinésia ou discinésia transitória dos segmentos médios, com ou sem envolvimento apical do ventrículo esquerdo, correspondendo as alterações da cinética segmentar a mais de um território arterial coronário; 2) ausência de doença aterosclerótica obstrutiva ou rotura aguda de placa que justifique o quadro; 3) alterações eletrocardiográficas de novo (elevação do segmento ST, inversão generalizada da onda T) ou elevação de troponina; 4) ausência de feocromocitoma, miocardite, miocardiopatia hipertrófica, hemorragia intracraniana e traumatismo craniano recente. Os 4 critérios têm de estar presentes em simultâneo8. Existem outras variantes morfológicas de acordo com as alterações da cinética segmentar8.
Tipicamente, os doentes com ST não apresentam realce tardio na RMC, demonstrando a ausência de necrose miocárdica isquémica, embora em alguns doentes a biópsia endomiocárdica na fase aguda da ST mostre infiltrado inflamatório ligeiro e necrose em banda de contração, típica da cardiotoxicidade mediada por catecolaminas, em reduzida extensão e muitas vezes negligenciável8. Tal, justifica a recuperação funcional completa e relativamente rápida, como no caso presente.
O caso apresentado é o de uma mulher pós-menopausa, que, na sequência de uma situação de stress, desenvolve um quadro clínico, eletrocardiográfico e laboratorial compatível com enfarte agudo do miocárdio com elevação do segmento ST. Contudo, o ecocardiograma transtorácico apontava, pelas alterações segmentares do ventrículo esquerdo, para uma possível ST, o que, associado à ausência de fatores de risco cardiovascular, tornava o diagnóstico de enfarte menos provável. O cateterismo coronário de urgência excluiu doença coronária e mostrou uma ventriculografia típica duma ST, tornando este o principal diagnóstico.
Foram eliminadas outras causas de miocardiopatias de stress como: o feocromocitoma, a administração exógena de substâncias catecolaminérgicas e as lesões intracranianas agudas8.
A ST é um diagnóstico de exclusão, sendo mandatório o diagnóstico diferencial com miocardite.
Embora não existisse sintomatologia sugestiva de infeção viral prévia, e sabendo que têm uma baixa acuidade diagnóstica, foram efetuadas serologias para vírus cardiotrópicos e também o painel de autoimunidade, com resultados negativos. A marcha diagnóstica prosseguiu com a realização de RMC, considerada atualmente o exame de diagnóstico não invasivo de eleição para o diagnóstico de miocardite9.
O edema miocárdico expectável na ST6, associado à evidência de lesão irreversível na mesma localização, tão característico de miocardite aguda5, foi determinante para o diagnóstico. Uma vez que, tipicamente, não ocorre necrose na ST, ou, se ocorre lesão, esta é negligenciável e residual. A localização subepicárdica do edema é também característica de miocardite aguda. No presente caso, verificou-se ligeira subida de marcadores, como é expectável na miocardite. Não foi possível identificar a etiologia subjacente, nomeadamente a possível etiologia viral, com frequência só identificável através do estudo por polymerase chain reaction no material de biópsia miocárdica.
O diagnóstico final deste caso foi, surpreendente, miocardite aguda que se apresentou com clínica, ecocardiograma e cateterismo cardíaco de uma ST. Existe relatado um caso que reúne tanto os critérios de diagnóstico da Mayo Clinic para a ST, como os de miocardite aguda por biópsia pelos critérios de Dallas10. Tal contribui para reforçar a necessidade da realização de RMC nos doentes com diagnóstico inicial provável da ST e ponderar a necessidade de biópsia endomiocárdica.
No presente caso, a biópsia endomiocárdica não foi efetuada. Na realidade, apesar do papel crescente da RMC, a biópsia, segundo os critérios de Dallas, é considerada ainda o gold-standard11. Define miocardite numa base anátomo-patológica e não clínica: infiltrado inflamatório celular com necrose dos miócitos12. Contudo, a biópsia endomiocárdica é um procedimento invasivo que não está isento de complicações, com baixa sensibilidade e baixo valor preditivo negativo, pelo menos em parte devido ao habitual caráter focal da miocardite5. Neste sentido, as últimas recomendações preconizam que se realize apenas nos doentes com rápida deterioração da função cardíaca e que não respondam ao tratamento médico convencional13, sendo hoje em dia raramente utilizada.
A RMC, ao permitir identificar o edema e a lesão miocárdica pela sequência de realce tardio, veio possibilitar o diagnóstico tecidular não-invasivo de miocardite aguda, como mostram os resultados do estudo da realização de biópsia endomiocárdica guiada pela RMC e dirigida às lesões evidentes neste exame. É um meio de diagnóstico valioso, que permite a avaliação e a monitorização da progressão ou regressão desta doença inflamatória cardíaca5.
Apesar da evolução diagnóstica, a miocardite aguda continua a ser subdiagnosticada, talvez pela dificuldade do reconhecimento clínico no seu início5. Estudos prospetivos post-mortem implicaram a miocardite em 8,6% a 12% dos casos de morte súbita nos adultos jovens, tendo sido identificada como causa de miocardiopatia dilatada em 9% dos casos12, pelo que o seu correto diagnóstico é fundamental.
No estado atual da arte, a RMC assume um papel fundamental nos quadros de dor torácica, elevação de troponina e artérias coronárias normais, permitindo o rigor do diagnóstico.
ConclusãoReportamos um caso raro de ocorrência de miocardite aguda com apresentação como uma ST, numa mulher pós-menopáusica e sem fatores de risco cardiovasculares.
Realça-se a importância da RMC no diagnóstico diferencial das síndromas coronárias agudas com artérias coronárias angiograficamente normais.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.