A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome definida por sinais e sintomas resultantes de uma anomalia da estrutura ou da função cardíaca1.
Na base da anomalia estrutural e/ou da função cardíaca está a remodelagem ventricular, um processo fisiopatológico, comum aos vários tipos de IC no qual a dimensão, forma e função ventricular são reguladas por fatores mecânicos, neuro‐humorais e genéticos. Esta alteração da arquitetura ventricular, derivada da combinação de hipertrofia patológica dos miócitos, apoptose, proliferação de miofibroblastos e fibrose intersticial, foi inicialmente reconhecida na sequência do enfarte agudo do miocárdio, e posteriormente generalizada perante uma variedade de noxas cardíacas agudas e crónicas, capazes de provocarem alterações semelhantes, incluindo a hipertensão arterial, a miocardite, a doença valvular, entre outros insultos cardíacos2–4.
Quaisquer destas agressões desencadeiam respostas dos vários sistemas neuro‐humorais – sistema adrenérgico, renina‐angiotensina‐aldosterona (R‐A‐A) – inicialmente protetoras que, ao persistirem, agravam e perpetuam as anomalias que modificam a estrutura e função cardíaca, aumentam o consumo energético do coração já em falência e estimulam, de forma persistente, as vias de proliferação miocárdica, com consequente mal adaptação cardíaca5.
Tornou‐se evidente que um número crescente de vias e mecanismos de proliferação celular e molecular participam na regulação da arquitetura cardíaca e da composição molecular do miocárdio, e condicionam disfunção sistólica e/ou diastólica ventricular, na base de dois fenótipos diferentes de IC. De uma forma simplificada, a dilatação ventricular com disfunção sistólica é causada pelo aumento do número de sarcómeros em série, enquanto a hipertrofia é devida à adição de sarcómeros em paralelo, resultantes, muito provavelmente, da ativação de diferentes vias de proliferação cardíaca6,7.
A importância destas respostas neuro‐humorais e de as antagonizarmos tornou‐se evidente quando os fármacos dirigidos ao alívio hemodinâmico na IC com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) deprimida demonstraram efeitos inesperados na sobrevida dos doentes, relacionados com a capacidade dos mesmos modificarem os aspetos mal adaptativos resultantes do perpetuar da estimulação neuro‐humoral. Prevenir, atrasar ou até reverter o processo da remodelagem ventricular tornou‐se, assim, um alvo terapêutico no âmbito da IC e da disfunção sistólica ventricular8–13.
A remodelagem reversa, conceito que traduz o restauro funcional e estrutural do coração, ganhou popularidade não só após as descrições de recuperação cardíaca sob tratamento farmacológico moderno da IC, como no contexto da implantação de dispositivos de ressincronização cardíaca (CRT) e após a revascularização miocárdica e/ou a cirurgia valvular atempada. Nalgumas circunstâncias ocorre espontaneamente.
A capacidade de vias de proliferação diferentes levarem a fenótipos diferentes de IC, com a adição de sarcómeros em série na disfunção sistólica ventricular ou em paralelo na disfunção diastólica, poderá explicar porque é que os fármacos que melhoram o prognóstico da IC com FEVE deprimida não mostraram ter o mesmo benefício na IC com FEVE normal.
No que à terapêutica farmacológica diz respeito, os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (i‐ECA), os bloqueadores adrenérgicos, os antagonistas dos recetores dos mineralocorticoides, a ivabradina mostraram diminuir a dilatação ventricular e melhorar ou até normalizar a disfunção sistólica na IC com FEVE deprimida e melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dos doentes, a curto e longo prazo8–13. A hiperatividade adrenérgica parece ter um papel mais relevante na remodelagem que o sistema R‐A‐A. Os estudos têm demonstrado que os bloqueadores adrenérgicos promovem uma remodelagem reversa mais intensa que os i‐ECA, a atestar da maior importância da ativação adrenérgica que da estimulação do sistema R‐A‐A na remodelagem ventricular, pelo menos nos doentes mais sintomáticos9.
Também a terapêutica de ressincronização cardíaca promove a remodelagem reversa do ventrículo esquerdo, com redução dos volumes telessitólico e telediastólico, normalização da forma e melhoria da função cardíaca, processo que se correlaciona com um melhor prognóstico14–16.
A somar aos resultados dos grandes estudos aleatorizados, a repercussão da remodelagem reversa na IC com FEVE deprimida foi avaliada numa meta‐análise que envolveu 69766 doentes de 30 estudos aleatorizados, demonstrando uma diminuição em 49% na mortalidade global dos doentes que melhoraram a FEVE versus os que a não melhoraram17. Um aumento médio de 5% na FEVE levou a uma redução relativa da mortalidade em 14% (OR: 0,86; IC: 0,77‐0,96; p‐0,013). Por cada aumento absoluto da FEVE em 5% o doente que sofreu remodelagem reversa teve 4,9 vezes menos hipóteses de morrer que aquele que não reverteu a remodelagem17. O mesmo se verificou com a diminuição dos volumes ventriculares17.
Sabendo que a remodelagem reversa se associa a um melhor prognóstico nos doentes com IC e FEVE deprimida, tornou‐se crucial perceber os mecanismos subjacentes e identificar subgrupos de doentes para os quais o processo possa ser relevante18.
O fenómeno de remodelagem reversa levanta, contudo, vários desafios nomeadamente como identificar e definir o conceito, quais os preditores independentes de remodelagem reversa ou como se correlaciona com o prognóstico da síndrome nos diferentes tipos de IC.
É assim indiscutível a pertinência do estudo de Amorim et al. publicado neste número da revista: «Prevalência, preditores e prognóstico da remodelagem reversa na miocardiopatia dilatada idiopática»19. A remodelagem do ventrículo esquerdo tem um papel preponderante na fisiopatologia da cardiomiopatia dilatada idiopática. Sendo que uma percentagem dos doentes com cardiomiopatia dilatada sofre remodelagem reversa sob terapêutica otimizada, identificá‐los tornou‐se primordial.
A prevalência e os preditores de remodelagem reversa nos doentes com cardiomiopatia dilatada são controversos e a comparação entre os estudos difícil por disparidade de critérios na definição de remodelagem reversa, heterogeneidade das populações estudadas, tratamento e tempo do seguimento diferentes. A maioria das séries incluiu populações heterogéneas com percentagens variáveis de miocardiopatia dilatada secundária a causas reversíveis – taquimiocardiopatia, miocardites virais, tóxicas – a condicionarem remodelagem reversa em 30‐60% dos doentes com miocardiopatia dilatada quando tratados com bloqueadores neuro‐hormonais18,19,21. Amorim et al. estudaram uma população homogénea de doentes com miocardiopatia dilatada idiopática, acrescentando conhecimento aos dados já publicados19.
A definição e o diagnóstico de remodelagem reversa também incorrem em alguns problemas metodológicos. Enquanto a FEVE é a forma mais simples e eficiente de estratificar o risco na prática clínica diária, a regressão do diâmetro diastólico do VE é o principal indicador fisiológico de remodelagem reversa. O diâmetro sistólico do VE é um parâmetro que integra ambos os aspetos de dimensão do VE e função sistólica. A ecocardiografia é a técnica mais utilizada quer nos estudos quer na prática clínica, contudo, alguns autores estudam o diâmetro/volume telediastólico, outros privilegiam o volume telessistólico, outros ainda a FEVE. Um aumento da FEVE em 15%, utilizado como critério de remodelagem reversa nalguns estudos, poderá, todavia, ter um significado diferente no doente que passa de 15 para 30% (aumento em 100%) e naquele que passa de 30 para 45% (aumento em 50%). No estudo de Amorim et al. foi escolhida uma definição mais consensual de remodelagem reversa, combinando um aumento da FEVE de 10% com a diminuição do diâmetro telediastólico do VE que resulta numa prevalência de remodelagem reversa de 34,5% sob terapêutica médica otimizada, num período de 22,6 meses, com melhoria da classe funcional, do BNP e mortalidade nula19.
O reconhecimento de variáveis eventualmente capazes de predizer a reversão da remodelagem ventricular terá implicações clínicas muito relevantes. Permitirá definir o prognóstico dos doentes com cardiomiopatia dilatada e identificar aqueles com maior probabilidade de recuperarem função ventricular sob terapêutica médica otimizada, apenas. O reconhecimento precoce de preditores de remodelagem reversa poderá assim identificar grupos de doentes com excelente prognóstico, nos quais a implantação de dispositivos e/ou o transplante cardíaco poderão com segurança ser adiados, em detrimento de outros que sendo de maior risco, deverão ser tratados mais agressivamente, numa perspetiva de medicina individualizada, moderna, com preocupações de custo‐efetividade. A Sociedade Europeia de Cardiologia recomenda, para os potenciais candidatos a CRT, um período de observação de três meses, sob terapêutica médica otimizada, recomendação que poderá ter que ser revista de acordo com o acima exposto1. O reconhecimento de preditores clínicos e laboratoriais simples e consensuais de remodelagem reversa, de fácil aplicação à prática clínica diária, será ainda muito útil para identificar os doentes de maior risco, nomeadamente ao nível dos cuidados primários de saúde, para uma referenciação adequada dos que irão necessitar de cuidados mais especializados.
Amorim et al. identificaram de forma consistente, corroborando os resultados de outros estudos, os seguintes preditores de remodelagem reversa, nesta população com miocardiopatia dilatada idiopática: a doença menos avançada, a presença de hipertensão arterial ligeira, fibrilhação auricular, hipertrofia ventricular esquerda (no ECG), ausência de bloqueio de ramo esquerdo, menor duração do QRS, maior hematócrito, menor VED índex, melhor eficiência de oxigénio no pico do exercício, uso de IECA/ARA‐II e uso de doses máximas de IECA/ARA‐II e bloqueadores‐β12,19–23. Na análise multivariada o uso de doses máximas de IECA/ARA‐II foi um preditor independente de remodelagem reversa. Já a presença ou extensão do realce tardio na RMN cardíaca não foi preditora de remodelagem reversa do ventrículo esquerdo no estudo de Amorim et al., contrariamente ao reportado noutros trabalhos19,20,24,25. Esta discrepância poderá, tal como sugerem os autores, estar relacionada com o número reduzido de doentes estudados por esta técnica de imagem.
Apesar de unânimes na demonstração de que a remodelagem reversa do ventrículo esquerdo é um preditor de bom prognóstico, os autores reconhecem que é um processo heterogéneo cujas implicações clínicas poderão variar com o tempo. Recentemente Banno et al. reportaram que a incidência de eventos – reospitalização por IC e morte– triplicou nos doentes que não remodelaram e que, quando a remodelagem reversa do ventrículo esquerdo ocorreu precocemente (até aos 400 dias), o prognóstico foi melhor do que quando esta se deu tardiamente26. Também Ruiz‐Zamora et al. reportaram a remodelagem reversa precoce e a completa normalização da FEVE como preditores de melhor prognóstico18. O processo de remodelagem reversa e as suas consequências a longo prazo ainda não estão totalmente esclarecidos. Ocorre mais habitualmente até aos dois‐três anos, mas alguns doentes sofrem remodelagem reversa muitos anos após o diagnóstico. Alguns autores identificaram preditores diferentes para a remodelagem reversa precoce e tardia11,16.
Longe de dominarmos todos os mecanismos da remodelagem e da remodelagem reversa, muitas são ainda as questões pendentes a merecer mais investigação, nomeadamente quais os preditores mais eficientes e consensuais nos vários tipos de miocardiopatia dilatada, utilidade de scores de risco, a duração da remodelagem reversa, quando ocorre ou a atitude mais correta quanto à manutenção ou não da terapêutica standard quando a FEVE normaliza… ainda muita margem para investigação!
Conflito de interessesA autora declara não haver conflito de interesses.